sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

"Mal de Amor", de Anna Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça

Toda pena de amor, por mais que doa,
no próprio amor encontra recompensa.
As lágrimas que causa a indiferença,
seca-as depressa uma palavra boa.

A mão que fere, o ferro que agrilhoa,
obstáculos não são que amor não vença.
Amor transforma em luz a treva densa.
Por um sorriso amor tudo perdoa.

Ai de quem muito amar não sendo amado,
e depois de sofrer tanta amargura,
pela mão que o feriu não for curado.

Noutra parte há de em vão buscar ventura.
Fica-lhe o coração despedaçado,
que o mal de amor só nesse amor tem cura.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

"A Coffin is a small Domain", de Emily Dickinson

Hoje, 10 de Dezembro, mas em 1830, nascia Emily Dickinson, que para quem me conhece um tanto já deve saber quem quem ela é.
Digo "quem ela é" e não "quem ela foi", porque quem é lembrado não morre a última morte. Seu corpo já se foi, mas seu nome e seu trabalho ainda estão vivos.
Ela escreveu na paz tumultuada de sua solidão preferida sobre morte e imortalidade, mas em raros momentos de maneira sombria ou melancólica. Ao contrário - a certeza da morte e a promessa de uma vida para a alma a motivavam a escrever sobre aquelas pequenas alegrias que inundam o dia e que, se pudéssemos tão facilmente perceber, nos paralisariam por causar perplexidade. A abelha, uma flor, uma flecha, a visita de um mercador, um sonho estranho, um anel... O que passa batido para uns foi imortalizado por ela em alguns versos escritos além das regras da língua inglesa e sob o uso indomável de seus travessões. E ela também falava desses pensamentos insuspeitos que nos ocorrem quando a mente arranja um tempo livre, não importa com o que estivermos nos ocupando. Como seria a vida no Brasil, como é tentar lembrar um sentimento que já se esqueceu, o que representa encarar os próprios medos, ou o que um balão espera de sua passagem pelo mundo.
Viveu, escreveu, foi assaltada por tristezas com as mortes de entes queridos e amigos que vieram tão rápidas uma após a outra. Mas, como essas linhas exibidas querem fazer mostrar, através de mim e das minhas palavras metidas, assim como através de outros tantos, ela continuará vivendo.



A Coffin—is a small Domain,
Yet able to contain
A Citizen of Paradise
In it diminished Plane.

A Grave—is a restricted Breadth—
Yet ampler than the Sun—
And all the Seas He populates
And Lands He looks upon

To Him who on its small Repose
Bestows a single Friend—
Circumference without Relief—
Or Estimate—or End—



Um caixão é reino pequenino,
Mas pode conter
Um Cidadão do Paraíso
No seu mundo diminuto.

Um túmulo é largura restrita
Mas é mais amplo que o Sol
E todos os mares que ele povoa
E as terras que ele vigia.

Para aquele que ao pequeno descanso
Confere um único amigo
Há circunferência sem remédio
Ou estimativa, ou fim.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

As a Warrior of sorts

I've never thought myself as a Warrior. As an Asatru-oriented pagan I often see myself at odds firstly because I'm Brazilian (and that's enough for some people abroad to claim I'm not supposed to be Asatruar) but mostly because I don't think I fit in this "warrior culture" mold that comes up with the Heathen Hammer.

Turned out I can see myself as a warrior of sorts. When I graduated I didn't make vows about fighting, but it turns out it is all about fighting, about enduring, about outthinking and outlasting, about never giving up. I am a teacher. I am not a marine, not a navy officer, not an unsung fireman or policeman, not a pilot. I can't even ride a bike.

But I took up a mantle of responsability many shared before and that now I share with countless many too. I realized that at some point in my journey I felt that it was up to me, as it must have been up to many alongside, to make a stand against this terrible monster, this terrible enemy. I picked up a fight not against a monster of myths, not against an enemy group, not against a foreign threat. I've chosen to fight ignorance, the mother of all monsters, and denounce it wherever I find it festering.

While I don't physically put myself to the test of blood and sweat, while I don't hear bullets and cuts, I do put myself to the test. I strive to endure, sometimes feeling all alone, against an overwhelming tide of ill news that show up that we are driving ourselves as a race towards disrepair and cataclysm. But I harbor hope and I don't give up, I try my best to remain sharp in mind and stalwart in heart. With each word and gesture, through my actions, I seek to make something good prevail amidst displays of ignorance beyond count.

Like many before me, like the many I stand among, and like many will do in days to come, I've chosen to fight trouble before it takes up a hideous form. I've chosen, perhaps, to dedicate a lifetime fighting ignorance, misinformation, intollerance, oppression... Evil lurking within in all its forms. I've chosen to take up a fight not against an enemy without, not against some enemy beyond, but against the enemy within.

That, I know, is a fight that can never be won, but must always be fought. I strive to be not one to give up. There can't be victory, or so it seems, so I will fight for as long as my nows come with the passing time.

There is a Hall far ahead where Warriors can drink, but there are many Halls more, and on some I think I might be welcome. Down here, far from the stars, it's easy to feel alone and ignored. But there are silent ties that bind us together with the Aloft ones, and I know I must speak because they hear.

I carry no cutting blade, I carry no projectiles to puncture flesh and bone, but I am not unnarmed. Wit and tongue and hand suffice for now.

And on this precise now I must rest, for tomorrow another sort-of-a-fight starts again. I can't lose ground. What I rallied must be thought. Ignorance stirs, but so do countless wills to lead our minds and hearts to prevail against it.

Skal!

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Sobre a Vontade

O ser humano é sempre capaz de mais. De fazer um prédio mais durável, um remédio mais eficaz, uma máquina mais poderosa, uma descoberta mais impactante, a arte mais rica. Mas para isso é preciso tentar. A alegria de descobrir e conquistar não é para quem cruza os braços ou se apassiva diante da vida e dos desafios infinitos que ela oferece, ou que toma a tagarelice por ação.

É infinitamente mais fácil ser número do que ser gente. É muito mais confortável e menos desgastante ser aquele que espera do que aquele que faz, e ser aquele que ganha do que aquele que conquista. É mais fácil viver com a programação básica da preguiça e do medo do que desbravar os desafios da vida a base de coragem e sonhos. Paixão, talvez seja isso que falte para quem não se sente desafiado a viver intensamente. Aquela vontade de mudança, um desvario capaz de tirar o vivente da zona de conforto.

Barcos ancorados estão seguros nos portos, mas não foi para isso que os barcos foram feitos. Pode-se passar toda uma vida boa com o mínimo, ou lutar-se para conquistar muito mais. Perdendo ou ganhando, o que importa é a luta. É o caminho que faz crescer, pois a meta sempre pode mudar. Viagem é viagem por causa do caminho, não por causa do destino.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Sometimes it feels like I'm a rotten tree still upright but already dead. Thin and hollow. My roots suck nothing from the ground, and my trees have fallen and withered away long ago. My flowers and my fruit lay crumbling to dust before me as dreams dashed and hopes crashed.
Yet people take my verticality for a sign that I'm alive, and I can fool myself agreeing with them. I just forgot to fall down. The sap is still.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

"Forever is composed of Nows", de Emily Dickinson

Forever – is composed of Nows –
‘Tis not a different time –
Except for Infiniteness –
And Latitude of Home –

From this – experienced Here –
Remove the Dates – to These –
Let Months dissolve in further Months –
And Years – exhale in Years –

Without Debate – or Pause –
Or Celebrated Days –
No different Our Years would be
From Anno Dominies –




"Para Sempre" – é composto de Agoras –
Não são tempos diferentes –
Senão pela Infinitude –
E Latitude do Lar –

Desse – Aqui vivenciado –
Remova-se as Datas – e tem-se Aquele –
Dissolvam-se os Meses em Meses por vir –
E Anos – exalem em Anos –

Sem Debate – ou Pausa –
Ou Dias de Celebração –
Em nada difeririam Nossos Anos
De Annis Domini –

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Vazão

Opinião não é leito de rio. É o próprio rio.
O leito é o que a gente cava com voz,
É liberdade que brota do ar puxado,
Que ganha a garganta e a boca é foz.

Opinião é coisa límpida se é fluída.
Estanque, é água de brejo de bichos.
Se flui da boca e ganha a paragem,
Oferta água e mata sede de ideias.

Opinião é água que corra veloz.
Parada não é boa amiga de vela.
Que corra desatada no degelo da razão,
Ou tímida contida no sussurro cabido.

Opinião não é água que se possa vender.
(Sabe-se hoje dos males da água engarrafada)
É bem comum que faz bem em se guardar,
Mas que deve-se ver fluir e não achar que é gastar.

Opinião corra solta em leito cavado por vontades,
Que role pedras de razão, esses coágulos de chão,
E que seja viva, que abrigue vida, que dê a vida.
Que desague e desamargue um oceano final

domingo, 17 de agosto de 2014

I wish I could feel a thing. Yet I can't.
Seems like people are raw emotion encased in skin and I am the only one with something fleshy beneath the surface.

But when I think about myself I can't truly consider I'm whole. There are parts of me, I used to say, there were too cracked and broken to form a grain.

And then I learned a new maxim - That I should be like water. Water is never cracked or broken. Water flows. To be like water is to flow away. Seep. And while tamed by a recipient, it's all about flow and expansion down at the essential level.

But not I think about myself and I realize that a cracked piece is easier to repair then stained water is easier to purify.

People think about a magical reboot button for their relationships, for their mistakes... But the only true magical thing of life is the vast, interconnected and terribly complex fabric of fate. Were that reboot button pressed before, newer and better relationships would never be.

In fact, when there comes a time when a reboot option is available, I think people seldom embrace it. They seldom believe it. Most of times, it seems it's because too much time has passed and the fingers are too crooked to press the button, or the paths have diverged so much that there are two strangers talking oddities about a past feeling. Trying to live through memories. I must believe it is not always this, but most of times it shows up as the plain truth. Sometimes people who were so intimate and bound become strangers one to the other. That feeling that bound them becomes strange. The relationship they built becomes strange. The very nature of their fondness gets freaky.

I think water feels. I just can't feel a thing like I felt on days before. It's weird.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014



A gente vê no jornal nacional a história de um jovem de 19 anos que se abateu pela falta de estudo e pelo desemprego e jogou a toalha. Uma mulher lá pelos seus 30 ou 40 que se reinventou para o mercado de trabalho e hoje dá aula em curso técnico. Uma jovem que está obstinada em ser a melhor naquilo que decidiu fazer, e viu que se cumpriu a promessa que fez à mãe - que um dia estaria dando entrevista.
Então vêm as notícias de policial de unidade pacificadora que estupra mulheres da favela, entre elas uma menor. E a corregedoria investigando a morte de dois pichadores nas mãos da polícia.
Então vem na cabeça aquele turbilhão de ideias - a guerra lá longe, os jovens que não dão valor à formação e depois não têm e nem se dão o apoio necessário para se situar nesse mundo, e os problemas da violência, a política corrupta, a polícia sucateada, a falta de atenção aos problemas dos outros, aquele monte de gente que vem comentar as coisas só pra mostrar que aprendeu a botar a culpa nessa ou naquela pessoa, nesse ou naquele comportamento, nesse ou naquele partido... Cada manifestação de ódio não embasado sendo uma ofensa contra a herança que temos hoje de tantas gerações de conhecimento e de palavras.
E só o que impede a loucura de espalhar mais galhos é aquela voz de playback que fica na cabeça "Não, não dá pra se deixar a alarmar por essas notícias horríveis. O mundo não é o lugar ruim que as pessoas de crítica má querem fazer parecer que é. A humanidade não é tão podre quanto a mente seletiva de quem é seco e incapaz de se conectar a todos faz pensar que é. O ser humano é mais do que isso. Vai ser sempre mais. A humanidade inteira é mais do que todos esses erros, toda essa violência, toda essa falta de humildade, todo esse amontoado de julgamentos e de intolerância, de medo e de tristezas. O ser humano é mais do que isso, é capaz de bem mais do que isso. É por isso que eu levanto todo dia ao invés de ficar em casa sem falar de adjetivos e Goethe, ou de morfossintaxe e que Atmosphere significa atmosfera."
Meus Deuses, eu não vou perder jamais a esperança nas pessoas. Não dá pra perder a esperança numa coisa que a gente é. A humanidade é capaz de mais, de ser melhor. E enquanto eu ver um ou outro ser humano mostrando que é capaz disso, e que eu também posso ser capaz disso, então valerá a pena passar por toda essa revoada de notícias más. Porque vale a pena lutar cada dia para construir futuros melhores para pessoas melhores, e o mundo não seria a mesma coisa se a gente não tivesse quase uma meia hora reservada só para poder falar de Romantismo e rir de risos.
E se tiver incêndio, e se tudo queimar, então vamos fazer um luau perto do fogo e tomar uns gorós. Somos aquilo que defendemos.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Recapitulando

Já quis que voltassem; partiram.
Já quis catarse; dormi.
Já fui atrás; disseram não.
Já quis deixar; fiquei.

Já quis puxar; deixei.
Já quis partir; nem fui.
Já quis voltar; não deu.
Já quis falar; ouvi.

Já tentei negar; chorei.
Já pensei ferir; não ousei.
Já quis dizer; fizemos amor.
Já quis lembrar; ignorei.

Já estive a par; fui embora.
Já quis participar; fechei a porta.
Já quis mudar; tentei.
Já fui em paz; mudei.

Já desejei paz; fiquei surdo.
Já tentei consertar; acabou o tempo.
Já fui de rir; comecei a lembrar.
Já quis passar; voltei.

Já tentei romper; sorriram.
Já consegui avançar; me aconselham.
Já tentei escrever; emudeci.
Já quis acordar; sonhei.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

"Tristeza", de Aureliano Lessa

Dizes que meu amor te encanta a vida
Teus alvos dias, teus noturnos sonhos:
Mas tens a face de prazer tingida,
Teus lábios são risonhos!

Não podem florescer o amor e o riso
Nos mesmos lábios da paixão o fogo
Mata as rosas do rosto, de improviso
Gera a tristeza logo.

Olha: minh’alma é pálida e tristonha.
Minha fronte é nublada e sempre aflita.
Entretanto, uma imagem, bem risonha
Dentro em minh’alma habita.

Mas esse ermo sorrir que tenho n’alma.
Não é como da aurora o riso ardente:
É o sorrir da estrela em noite calma.
Brilhando docemente.

Ah! se me queres a teus pés prostrado.
Troca o riso por pálida beleza:
Mulher! torna-te o anjo que hei sonhado.
Um anjo de tristeza!

domingo, 13 de julho de 2014

Impressão Dissolvida

Contemplo com horror certa e estranha nova graça de mandar. Olho com dúvida e temor minhas mãos vazias - as lágrimas que cá despencam não fazem ficâncias e vão-se descerimoniais mãos abaixo, salgando a minha pele quente e encharcando-me com o que vaza de meus olhos ao não mais morar em mim. Corre uma memória líquida, diluída, salgada e dúctil na essência, furiosa e intempestiva no querer cair.

E meus olhos - enchentes em vazão, represas rudes e ruinosas, mãos
entreabertas que deixam escapar as águas - estatelam-se no chão como semente de erva daninha, de mato ruim, de planta que não se quer.

E meus dedos - lascas de ossos cobertas com carne que vacila e teme ou não crê - procuram por um fogo na noite ou por velas acesas que se possa apagar.

E minha boca - um ninho aberto de aves já idas da estação - treme sozinha no espasmo medido que chamo de rosto.

Vão, minhas lágrimas. Meus olhos, órfãos de sal, minhas faces, viúvas com dó, os meus pelos, bichos sem dono, e meu queixo, o penhasco de onde pulam as lágrimas: Minhas memórias suicidas, não-remidas, diluídas, dissolvidas.


sexta-feira, 11 de julho de 2014

Os Vidrilhos da Moça que Corre

         Nem incêndio sobre todo o ouro que habita as colinas cavadas de Dur-Ulrrúrias poderia comparar-se ao fulgor do rosto dela quando a ilumina a fronte o sol da manhã – um amante em chamas que se posta diante dela debruçado no firmamento a vê-la passar, a contar, cantarolar, trançando miçangas em couro sob a luz de alvorada.

         Nem todas as estrelas que deslizam no golfo negro entre as nebulosas do céu poderiam fazer-lhe ao charme particular um par quando ela dança e bate o pé descalço sobre a grama viva – um tapete de sedas e cerdas que se agrada ao espalhar-se sob ela para que ela o possa pisar, e para que sobre o dorso de verdes o corpo dela possa rolar, ou simplesmente sobe em verdes nas pedras para vê-la passar, a contar, cantarolar, trançando miçangas em couro cercada de grama.

         Nem todas as aves que habitam cantando a Mata do Corvo poderiam ganhar, em beleza, na música que ela cante ao desdobrar os lençóis da casa da mãe ou ao a lavar panos brancos na beira do rio – uma fita longa de prata do céu que serpenteia como um gato folgado aos mimos que a voz dela causa, o afago audível da garganta dela que se ouve ao vê-la passar, a contar, cantarolar, trançando miçangas em couro à beira do rio.

         E nem todo o ouro se ofertado a reis, nem as estrelas se ofertadas aos sábios, nem as aves da Mata do Corvo se ofertadas às damas podem comprar a graça do sorriso dela, da alma dela, do canto dela, do cheiro dela, da corrida dela, do quadril dela, da dança dela, do pé dela, das mãos dela; que dedilham, que tocam, que contam, que balançam em dança conforme ela passa, conforme ela conta, cantarola, trança miçangas tão longe de mim.

terça-feira, 24 de junho de 2014

As Asas do Pai

Enquanto desponta em mim uma vontade que antes nunca tive e se fortalece um instinto reconhecível, escrevo:


     Um dia, ela, proibida pela mãe de ir à escola sem o uniforme, chegou no meu escritório procurando um livro novo para ler, um que fosse "de gente grande". Chamei ela para perto, sentei-a no meu colo. Tão pequena, tão humana, tão já-gente.

"Você não tem que crescer agora. Ler não vai fazer você crescer, esticar, só vai fazer você virar uma pessoa melhor. Mas você ainda assim não vai poder ir pra escola sem uniforme."

"Mas todo mundo que vai pra escola vai sem uniforme."

"Isso é o que você vê, passarinha, mas você não vê o resto."

     Ela olhou para mim com aqueles olhos de quem não entendeu, mas no fundo daquelas cores claras eu via a teimosia da mãe dela tentando esconder a dúvida sob a meiguice e a boniteza.
"Se você nunca voar um pouco mais longe, se nunca abrir um pouco mais as asas, nunca vai saber onde termina a gaiola e começa o céu. Enquanto não fizer isso, vai ver sempre ver o céu e nunca verá as barras, ou nunca verá as barras mas verá sempre o céu."

     Ela baixou a cabeça para meus papéis espalhados na mesa. Tenho certeza que estava lembrando de algum texto que tivesse lido que ajudasse a entender o que eu quis dizer - sendo um pai malvado, adoro metaforizar.

     No dia seguinte ela foi sem o uniforme por baixo do casaco. Pelo que a diretora informou, desfilou nos corredores da escola com aquela blusa que, apesar de nada chamativa, não era do uniforme.

   Ela e eu fomos cúmplices naquela traquinagem. Enquanto a mãe dela falava e gesticulava descrevendo meus círculos pela sala, eu, no sofá, olhei para ela e encontrei seus olhos. Foi a primeira vez que vi tanta felicidade, tanto contentamento, tanto orgulho nos olhos da minha filha. Eu me enchi de alegria por aquele pequeno ato de rebeldia, de um orgulho cheio de bobeira e amor por ela.

     Nunca mais ela quis ir sem uniforme para a escola, mas também nunca mais ela foi a mesma. Ela estava mais contente consigo, mais feliz em vestir aqueles trajes padrão. Ela não havia perdido o céu, sabia disso. Descobrira por conta própria.

     Crescem tão rápido, esses passarinhos.


domingo, 22 de junho de 2014

Constelar:::O Decadente

Sou o assomo místico e decadente em mim. Sou o que não presta em mim, sou o que não dá pra salvar de mim mesmo. Sou a parte de mim que está em decadência, sou apenas lembrança do resto de mim, que morreu, foi sequestrado ou se perdeu. Sou o que sobrou, um restolho, ou sou aquilo que ficou porque ninguém quis, nem eu. Sou a soma de restos, um conjunto de fragmentos, um amontoado de partes que funcionam em dissonância. Ilhas sóbrias e sombrias num mar de álcool, nuvens azuis ou sem cor no firmamento verde, um arrebol vermelho que nunca desponta, terras perdidas na imensidão vazia. Sou o silêncio de muitas vozes que competem entre si, o silêncio perdido de poucas razões quando compito por uma atenção genérica e maioritária dentro de mim, que agrade a mim. O lado bom, e há, é que esse templo em escombros, essa ruína em ruínas, não é simples estrela no vazio. Pela lógica de luz que fique no vácuo, sou constelação.
Constelo: constelam, minhas partes, todas juntas.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Mentirosamente

Desde antigamente, a minha mente, quando mente, mente sem que a antiga atente para a mente - não a minha, que mente, mas para a sua, que sente. E a minha, que é antiga, e mente, antigamente dava-se a mentir o que sente, porque se sente, mente. A mente que mente sente que antigamente a mente sentia o que hoje mente, não sente.

Mas se a minha mente novamente sente que mente, talvez seja o ente, doente, que agitadamente atenta para a mente que, quando antigamente, se punha contente no que sofre do que sente, ou quando sente que mente. Só, a mente, mente somente quando sente que novamente sofre silente, sem que se agite a mente com o que sente, somente se sente.

E a mente, antigamente ou no presente, mente se sente. Porque se sente, mente; e se mente, sente.

Acertadamente.
Silenciosamente.
Encarecidamente.

Acerta a mente, silencia a mente, encarece a mente.

Dolorosa mente...

domingo, 25 de maio de 2014

De Porre

Quando a porta bate na aorta
A gente finge que se importa.
Mas dor só alguma dor exorta;
Ser sincero demais: entorta.

sábado, 17 de maio de 2014

"What though the radiance which was once so bright", de William Wordsworth

What though the radiance which was once so bright
Be now for ever taken from my sight,
Though nothing can bring back the hour
Of splendour in the grass, of glory in the flower;
We will grieve not, rather find
Strength in what remains behind;
In the primal sympathy
Which having been must ever be;
In the soothing thoughts that spring
Out of human suffering;
In the faith that looks through death,
In years that bring the philosophic mind.



RIP the illustrious souls: Gone, never forgotten

DIO
Sr. Felício

sexta-feira, 9 de maio de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Três, Parte III


Nasceu no olvido de dores.
Cresceu no cuidar dos irmãos.
Concebeu sob o céu estrelado.
Amou nos salões que sonhou.
Lutou na guerra com sonhos.
Partiu sob olhares saudosos.
– Inscrições no memorial do túmulo de Mana Fiogris, em Falssal, sul do reino de Albeia.


U
ma moça, talvez não sabendo ela o tipo de homem que eu era, perguntou-se em meio a muito quanta gentileza cabe no homem. Eu nunca parei para pensar uma boa resposta, e ao escrever estas linhas, tendo passado tantos anos desde que dei-me conta do olvido do pensar de tal resposta, ainda encontro-me em oblívio deleitoso e suspeito porque inocente demais: Não quero pensar sobre isso, porque pensar é ter que chegar pelo menos perto de uma resposta, e isto não quero. Não me apraz. Não me traz paz.

Não quero saber se nos corações, ou em qualquer outro local que digam haver um espaço para emoção e sabedoria, há um limite para quantidades de boas ações que auxiliem aquele que necessita voltar a crer na bondade da criatura humana. Em muitas linhas que escrevi denunciei nossa vileza, vilipendiei nossa caridade pois veste-se com trapos um monstro egoísta e falso, e mascara-se com ouro um mentiroso. Em muitas linhas que escrevi expus ao mundo a face má e cruel das gentes que somos, e como são maus e indiferentes os nossos corações.

Mas nas linhas que os olhos agora respeitados leem, ou nas palavras que ouvidos amigos captam, fique aqui registrado meu mais profundo amor e respeito pela dignidade, pela bondade e pelo altruísmo humano: falhamos miseravelmente em muitos momentos no ato de cuidar de quem se deixou dobrar por dores e tristezas, pelo fardo fatídico do tempo e prende-se pelo grilhão de um destino, mas há tantas horas para tantas almas que em sua grandeza demonstram abnegação e intensa generosidade de tal modo e com tamanha força que concluo do alto da segurança de meus anos de andança e pensamento que a caridade é um artifício dos fracos e ignorantes, mas uma virtude conquistada dos fortes e uma arma daquele que na vida é campeão.

O afogado não ensina o marinheiro a remar e cuidar das velas; o morto não pode falar ao aprendiz de boticário sobre cura e veneno. O faminto, seco em sua pele, não pode ensinar o pobre a fazer pão, e nem o cego pode ensinar a astronomia. Não se pode dar aquilo que não se tem, e por esta verdade vivem as civilizações desde muito cedo no mundo. Mas também não se pode dar aquilo que não se é, aquilo que não se conquista, aquilo que não se defende. O rei bom cede a parcela aos humildes, e dá um potro o fazendeiro generoso a um visitante agradável. Dá-se bons conselhos a quem tem a boa fé de os buscar, e oferece-se apoio em mão e braço forte ao que demonstra a Inteligência de a isto recorrer.

É da sorte do homem ser aquilo que defende, dar aquilo que é. E porque aqueles homens-monstro eram homens também, vi neles tanta crueldade e tanta maldade que me foi de pouco espanto ver entre eles presteza em ser hospitaleiro, na diligência de serem gentis. Eu adentrara os domínios de Kor-i-Sûm'Bar sob suas juras de hospitalidade, e tão logo eu cruzara os portões de seu grande forte, eu estava posto diante de uma tenda que se estendia com tantas outras ao longo da borda de um aclive que vigiava a praça baixa do grande forte.

O vento que cortava a colina era intenso e impiedoso em sua corrida contra o calor do sangue, mas eu detive Azandre do lado de fora da panaria ao puxá-lo pelo ombro e dar-lhe meu aviso:
“Falo agora contigo como se nem fosse meu aprendiz, meu favorito nas horas de reflexão e de agir com tato. Farás bem em ser diplomático com tua própria dor, meu caro Azandre, porque se aqui fora o frio corta a carne e gela o osso, a cena que há lá dentro cortar-te-á a paz e roubará o calor do teu coração.”

Ele não fez o esforço necessário para me entender, mas vi que tentara. Era obediente e espero o suficiente para ter tentado fazê-lo, mas estava demasiado desesperado para lograr êxito. Ele correu para dentro da tenda, e enquanto ele estava lá eu perguntei ao melhor curandeiro daquela gente o que acontecia:
“Como chegou até vocês uma mulher e como ela foi ferida?” e apertei o cabo da lança para advertir que não era apenas por curiosidade que eu perguntava – eu exigia verdade. O homem-monstro olhou com desprezo frio o meu gesto mínimo de ameaça.

“Podes pensar que atiramos nela ao saquear uma vila ou ao deixarmos que ela se aproximasse demais de nossas terras. Mas não. Kor-i-Sûm'Bar em pessoa encontrou-a jazendo no frio das colinas, seus lábios esfolados pelo vento e pelo choro. Ela estava só no ermo, e tememos que fosse bruxa que conjura encantos para obter sustento onde não há suprimento. Flechada ela já estava, e o veneno em sua flecha é desconhecido. Guardamos a seta matadora para que tu mesmo pudesses identificar seu fabrico.”

Virei-me para a vista do pátio e observei apenas a lonjura de minhas próprias lembranças. Assuntos de flecha e veneno, de bruxa e de choro... palavras que carregaram o foco de minha mente sempre presente para longe.

Eu, com cada pelo de meu corpo sendo ainda escuro, em nada lembrando a prata a mim dada pelo tempo, cheguei a uma vila qualquer em um reino úmido e nublado. Eu, com a companhia vazia de aprendizes ou guardas, errando sozinho pelos caminhos que mal e mal ainda buscava forjar, encaminhei-me a uma hospedaria que, naquele reino, era também prostíbulo. Lá me foi oferecida refeição decente, o banho revigorante e, como eu dera um pagamento alto em moedas estrangeiras, uma moça muito nova e de cabelos tão negros que se os corvos pousassem em seus ombros brancos eu os diria gralhas cinzas.

Mana era seu nome. Órfã desde que sabia responder perguntas, única responsável pelo casal de irmãos, crianças que adotara conforme cumpria a tarefa autoimposta de amadurecer. Isso porque o tio e a tia, únicos parentes vivos, forçavam-na à prostituição para pagar sua estadia.
E que flor rara era seu coração naquele charco imundo em que fora transplantada. Ela era um fino fio de pele boa e sedosa sobre a ferida infectada. Era um braço de água clara na poça estanque e suja. Um brilhante lapidado na pedraria ruim. Seu coração era sofrido, e sua mente acompanhava isso. Era fraca da vontade, sem esperança e convicção para ver além e pensar no avançado dos planos, mas era de extrema humanidade no ato de se doar. O fazia até fisicamente porque ela se deixava vender por ela e também pela irmã, criança demais, no pensamento dela, para ser dada aos passantes como prostituta crescida.

Eu ouvi sua história. Seu nome era Mana. Dei a ela a refeição que viera para me servir, e dei ao corpo cansado dela as águas do banho que ela preparara para mim. Na cama em que ajeitara os lençóis para me satisfazer, eu a satisfiz com toda a urgência e todo o temor em meu ser em ser capaz de dar-lhe paz e prazer. Apavorou-me a ideia de não a deixar com a satisfação plena, ainda que fugaz, do corpo seduzido. Eu me entreguei a ela de tal modo que seu corpo faminto não objetou em aceitar, de tal modo que sua humildade não achou educado recusar, de tal modo que sua gentileza viu-se honrada em aceitar e abusar.

Eu parti, e ainda era eu incapaz de libertar aquela jovem de seu sofrimento. Estava eu em um momento de minha vida em que minha alma estava eclipsada, a um tempo em que toda a Arte me abandonara quase que por completo e que eu não me lembrava de quase nada do que eu era ou poderia ser. E ela me fez prometer cumprir minha promessa como se fossem necessários sua ameaça e seu choro para que eu de fato o fizesse: Levei Bruna e Irgeu comigo, um em cada uma de minhas mãos, para longe daquele lugar horroroso. A menina eu deixei sob a guarda das Rosas, e ela saberia usar o aço de tal modo que jamais ousariam dobrar a ela como dobraram sua irmã. O menino eu levara para Fárgia, e ele ficou no colégio naval e mercante do reino após assinarem ali um contrato em que se comprometiam em fazer dele homem competente ou, pelo menos, homem bem-suprido de chances de sucesso.

Demorou muito até eu saber que Mana estava grávida. Ela bebia o chá de sombra-da-noite e comia o micelo das capas-de-monge, mas engravidara. Eu a impregnara. Ela baixara as resistências todas de seu ser quando eu espraiei meu corpo de homem sobre seu corpo de mulher, a onda deitando-se na praia, e de tal modo foi sua entrega que minha semente chegou ao foco feminino onde reside em forma de carne a esperança das vidas possíveis. Eu a impregnara. Ela o sabia: assim que ficara grávida, expulsaram-na do prostíbulo seu tio e tia. Mas ela sentia a criança ainda diminuta em seu ventre a guiando nos pensamentos e nos sonhos, e a todo instante rimava em sua mente de modo que suas palavras a levassem em meu encalço.

Encontrou-me, enfim, quando eu voltava para o norte. Já então ela tinha o volume da nova vida sob o preto apagado do vestido fino e surrado pela viagem. Uma jovem mãe, sozinha e abandonada de todas as maneiras possíveis senão pelo seu filho que ainda não viera e pela esperança que acende a menor vela no salão escuro da vida.

Ela era tão jovem. Eu tinha minha alma apagada, não sabia nem mesmo quem era o Varyn de que todos falavam à minha passagem. Mas no meu desmemorio eu cuidei dela. Fiz o parto de nosso filho em uma choupana pobre e meio abandonada, numa noite fria e estrelada. Houve tanto encanto naquele ato de nós três nos abraçarmos que os feitiços mais velhos em mim se partiram e novos foram feitos. Eu recobrei minha memória e Mana estava mudada, algo de mágico entranhara-se nela, preenchendo com a essência mais pura e forte da Arte as lacunas que a dor e a tristeza haviam aberto em sua alma. Foi o dia em que ela parou de envelhecer e em que ela encontrara toda a força que precisava para deixar definitivamente a vítima tornar-se a heroína de sua própria vida.

Eu me lembro daquela noite, quando ela e eu ficamos abraçados a Virgílio, nosso filho. Uma criatura tão pequena não podia ser tão perfeita. Mas era. Nascera das dores tristes porém apaziguadas de Mina, e de meu desmemorio confortado pela confiança. Se algum dia houvesse mal naquele menino, seria suprido pela mão randômica mas incomensuravelmente sábia e certeira do destino. Ficamos em silêncio no ato de ver o filho sugar do seio da mãe o sustendo branco para a vida, e aquele silêncio estrelado durou horas, o resto da noite inteira. Foi a noite mais feliz de minha vida.

“Ela o chama, Varyn, meu mestre.” E Azandre se retirou com passos destroçados e o rosto desatado em choro de irreparações.

Eu passei pelo couro e pela pele da tenda, e foi como se eu entrasse no passado perdido. Confundi-me: Entrava eu no futuro de dor.
Estirada sobre pelegos no chão, uma mulher em trajes negros amargava os últimos suspiros sobre um xale roxo. Ela ainda era tão linda, imutável em sua beleza encantada. Fios de prata misturavam-se ao negro de seu cabelo, como se fosse o trabalho de aranhas fiandeiras sobre o próprio céu noturno. Se um dia conhecemos nosso filho, ela superara as dores do passado e conhecera o amor sincero e avassalador em Azandre, um pupilo, e desde cedo eu sabia que aquela união seria verdadeira, porém passageira. Ali findava-se, completo na fatalidade, outro agouro meu.

“Depois que nosso filho morreu, ainda tão cedo, eu pensei que jamais eu sentiria de novo meu peito queimar com a força da vida.” Ela sorria aliviada porque sabia que podia falar comigo direto em pensamentos, pois sua voz já havia morrido dentro do peito sofrido.

“Mas conhecestes Azandre, que mostrou-te amor desde o começo do amor. Foi diferente do que tiveste de mim. Tiveste dele e nele a promessa de uma vida tão boa e feliz que pareceu-te um crime pensar que tal felicidade pudesse um dia fazer-se maior.”

“E ainda assim, meu caro, em diversos momentos fez-se maior. Vi Bruna trançar nos cabelos negros as fitas vermelhas e brancas das Rosas, e sei que ninguém jamais a ferirá mais do que ela pode ferir alguém. O aço canta nas mãos dela. E Irgeu cruza o mar interno de tal modo que as águas entregam-se a ele como amantes. Lembro-me bem de quando ele atracou trazendo pela mão sua esposa, mãe de seu filho. O parto dela foi sobre as ondas mais altas do interno. Foi belo.”

“É belo porque ainda ocorre. São fatos que conhecem ainda agora o toque do tempo quando este passa em forma de presente.” E como falávamos de mente quieta para mente quieta, em nossos sofrimentos, tudo era silencioso. Abri para ela janelas no espaço, e através delas ela pôde ver sua irmã, alta e taluda, forte e sagaz, praticando contra o ar as voltas de sua arma de aço dobrado, e no olhar duro e resoluto dela brilhava a centelha inegável da liberdade e da confiança, de tal modo que Mana viu-se vingada. Nunca fariam dela a mulher vítima e submissa que um dia Mana tivera de ser.

Pela outra janela ela viu Irgeu negociando a compra de arpões novos, mas ele conhecera uma mulher que barganhava ainda melhor que ele. Onde estava o sobrinho de Mana a janela não mostrou, mas era uma criança forte e feliz, isso sabíamos.

Fechei aquelas janelas porque ela começou a chorar, e nem seu choro produziu som.
“Morro agora, Varyn. Espero haver mais do que sombras e esquecimento na vida tumular, pois muito gostaria eu de rever Virgílio, nosso filho partido cedo.”

Tomei a mão dela na minha.
“Não há mais nada que prenda você a um mundo sofrido, Mana. Tudo aquilo pelo que você lutou foi conquistado. Não há derrota em você. O veneno e a flecha simplesmente servem de desculpa. É hora de aceitar que não há mais batalhas para serem lutadas. Nada mais para se garantir. A felicidade de seus irmãos, a liberdade de sua alma e de sua carne, a felicidade de seus dias... Tudo isso veio. Não há vergonha ou pesar em partir.”

“Queria ter tido tempo de carregar mais vida dentro de mim. Deixar-me impregnar por Azandre. Eu teria feito um filho lindo, ou a mais bela e forte das mulheres deste mundo. Em meu ventre eu teria trançado a carne de tal modo que a criança seria desta era o maior legado... Mas meu ventre perecerá envenenado, como todo meu corpo...”

“Mas não como sua alma. A dignidade não morre envenenada, nem a liberdade se fere com flechas. Você parte inteira, íntegra em cada componente.”

Ela cessara o choro. Sorria. Preparava-se para partir. Que raro é este, o dom de preparar a ida derradeira. Eu devia sair.
“Você é gentil, Varyn. Não sei dizer quanta gentileza cabe em você.”

Beijei-lhe a testa porque morria com ela a última parte viva de minha memória mais preciosa, mais amada. Levantei-me, sorri também.

Azandre ficou com ela na tenda. Seria ele a testemunha de seu último suspiro.

O vento invernal estava mudo em minha cabeça. Eu escutava apenas minha voz, mas ainda falava apenas nos meus pensamentos.

“Mana foi flechada.” E eu tinha em minhas mãos a flecha que roubara a vida dela.

“Ela foi emboscada na carreira urgente que fez em vir até aqui para avisar a mim...” E eu vislumbrei a armadilha que fizera ela ter de sair da segurança para vir até mim.

E tudo que pudesse ter som ficou mudo.
“Ela será vingada.”

Pensei comigo que a pira dela seria uma chama singela diante do fogaréu que engoliria seus assassinos.

sábado, 26 de abril de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Três, Parte II

Homem vem, homem vai. Kor-i-Sûm'Bar fica.
Homem nasce, homem morre, Kor-i-Sûm'Bar cresce.
Povo de homem planta, povo de homem constrói. Povo de Kor-i-Sûm'Bar pilha, povo de Kor-i-Sûm'Bar queima.
Homem se arma, homem se cobre de aço. Kor-i-Sûm'Bar mata, Kor-i-Sûm'Bar se cobre de sangue.
Inverno vem, homem fica. Inverno vem, Kor-i-Sûm'Bar ataca.
Kor-i-Sûm'Bar mata. Homem morre.
Inverno vai, povo de homem morre. Inverno vai, povo de Kor-i-Sûm'Bar fica.
Inverno vai, povo de homem nasce. Inverno vai, povo de Kor-i-Sûm'Bar cresce.
– Pictogramas bélicos traduzidos de velinos nas Colinas de Forragem, anexos de "Sobre os Homens-Monstro", escrito por Featta, o Gago.


Q
 uem sabe dizer onde a humanidade começa e termina dentro do homem? Via de regras, associar um ato à noção de "humano" serve tanto para enaltecer quanto depreciar: Deu aquela senhora uma moeda ao mendigo feridento, dirão que seu ato foi humano. O irmão avarento apunhale seu próprio irmão por causa de herança, dirão que é do ser humano agir assim. Ser humano é ser monstro ou é ser virtuoso? Digo eu, sem maiores problemas, que ser humano é ser inconstante; É ser a nau que leva mercenários para melhor perpetrar a barbárie, e ser a nau que leva os refugiados para longe do conflito para auxiliar os que sofrem.

   Ser humano é não saber ser direito, não saber interpretar facilmente. Somos, ainda, deveras limitados em nossa compreensão de atos e fazeres até mesmo corriqueiros. Não sabemos, afinal, o que achamos que é certo ou o que é errado. Sabemos apenas que fazemos, e se alguém nos pergunta depois, pode-se encontrar conforto ou alívio ou contrição no conselho vindo de outro ou de nossa própria mente no dizer que fizemos aquilo que achávamos que era direito fazer. Se de fato o é, se de fato o foi, digam as horas.

   Ser humano é ser vítima constante da aflição. Estávamos Azandre, um mercador néscio e eu, Varyn, riscando as paragens quietas das Terras Algeíades em minha quadriga de ferro puxada por cavalos negros. As bestas quadrúpedes, tão mais amigas do homem que o cão por terem de acompanhá-lo na batalha, bafejavam o calor de seus corpos em nuvens imensas de vapor conforme aumentava o frio que regelava os músculos de homem e cavalo.
   A quadriga era de ferro, mas leve como a de madeira porque fora dobrada sob martelos cheios de encanto e runas, cujos cabos eram de madeira nobre e retirada do coração de florestas já dizimadas. Cada peça saiu do fogo azulado das forjas dos Magos e foi esfriada em água fria do gelo derretido, tenho refletida na superfície a luz das estrelas além.
   Estrelas essas que eram visíveis nas crinas esvoaçantes dos cavalos, em seus dorsos e flancos, pois era noite em sua pelagem de tal modo que pareciam estilhas do céu noturno. Também eles eram mais Magia do que besta, animais feitos de sangue, carne, osso e também da Arte, desenhados e paridos para melhor servir aos interesses da Convocação. Eles corriam tão velozmente puxando nossos pesos e mesmo assim ultrapassariam os mais saudáveis dos cavalos selvagens das Algeíades, famosos por suas carreiras imbatíveis.

   A viagem, em terreno irregular pelas colinas, foi ficando mais fácil porque as Colinas de Forragem eram circundadas por campinas extensas de onde brotavam as elevações que davam nome ao local. Como toda a grama das Algeíades, a cor do chão era de um verde pouco agradável, de uma monotonia quebrada apenas pelo branco gelado e salpicado das flores da tundra.
   Encimando muitas daquelas colinas estavam ruínas de fortes ou postos de vigia de outrora, e muitas destas estavam ocupadas por novos donos: os homens-monstro que habitavam o Norte, uma estirpe selvagem cuja pele era couro e cujo sangue era verde e frio. Eram homens horrendos à distância, pouco menos que bestas de perto: saíam de suas bocas os dentes, grandes e afiados em demasia, e seus narizes eram pequenos, obra de pouco faro. As orelhas eram quase grudadas à cabeça, evitando assim o frio cortante, e os olhos eram grandes e escuros, mostrando a selvageria acima da mandíbula pronunciada do crânio.

   E se as faces eram desprovidas de qualquer chance de beleza humana, pois à parecência de bestas também estava associada a abundância de ângulos retos e a ausência de curvas suaves, o corpo era ainda mais espantoso: os músculos duros como pedra pareciam naturais, pois não havia um de corpo fraco ou moloide entre seus números. Eram de largura superior à dos homens mais fortes, e sua altura superava a de muitas estirpes dos reinos de gente. Com a mão nua, pinça de aço, podiam quebrar o pulso ou o pescoço humano como se fosse por gracejo distraído. Que útero tão monstruoso poderá ter parido primeiro aquela gente, que já foi humana um dia?

   Mas quem fazia essa pergunta eram os mais simples, ignorantes da verdade ancestral: Eram aqueles seres, ogros do Norte, o que restou de experimentos torpes há muito esquecidos. Gente dada às magias do sangue e da carne uniram na cópula tantas espécies diferentes que por fim houve o parto de uma linhagem numerosa do que seria a gênese dos homens-monstro. Aqueles orcos eram selvagens e brutos, mas um diaforam responsáveis pela proteção de tantas cidades e vilas humanas que ninguém ousaria pensar-lhes mal se soubessem a verdade.
   Só que tal verdade foi esquecida pelos homens, enterrada na cova funda da ingratidão; e o que a vergonha dos homens fez com essa verdade, o orgulho, a vergonha e o ódio justo dos homens-monstro fez melhor. Não mais suas gerações novas lembravam do passado de servidão à raça que os espezinhava desde que se lembravam.

   Porém nem sempre as coisas foram tão amargas. Se de tempos em tempos eles atacavam vilas, aldeias e caravanas, queimando, matando e pilhando, em outros tempos comerciavam e estavam abertos ao diálogo. Suspeitam os cientistas de feras e monstros entre os Mudadores que esse comportamento de paz e interesse é intercalado com períodos de violência de acordo com ciclos estabelecidos no sangue dessas criaturas, que por não plantarem e pouco inventarem pegam o que precisam de quem o tem. A geração pafícifica e cultural sobrevive com o que a geração violenta pilhou e deixou de herança, além de caçar seu sutento e fabricar apenas as armas que usam com presteza e as tendas e barracões de pele animal onde se abrigam do frio.

   Até o acampamento de uma das tribos daquela gente monstro que nos levou o mercador assustado e trêmulo. meus cavalos não precisavam de comando ou chicote - apenas o meu pensar os guiava, se eu segurasse as rédeas. A quadriga subiu por um aclive tortuoso, em zigue-zague, até o portão de madeira e ossos enormes que permitia o acesso a um forte de homens-monstro.
   Postos empoleirados acima do portão estavam três monstros: harpias que vieram do sul há tanto tempo que deviam estar já acostumadas ao frio. Tinham bocas enormes cujos dentes eram tantos, como agulhas, que suas línguas eram couro grosso após tantas cicatrizações necessárias. As cabeças calvas eram feias, da base do crânio redondo pendiam mechas de cabelo seboso e cinzento. As asas eram negras, imensas, e braços raquíticos as uniam ao poleiro acima do portão, estando desse modo agarradas a um tronco fino e firme com seus dedos longos terminando em garras de navalha.
   "Olha, olha a carne que vem tão preste até o portão dos monstros-homem!" disseram as três, em coro. Suas vozes faziam mal a quem ouvia e matariam os sensíveis pássaros canoros de tão feias e estridentes "Olha, olha que lá vem um coração bom e quente para cada uma de nossas bocas famintas!"

   Os cavalos empinaram todos ameaçadores, batendo no ar seus cascos de fender crânios, com ferraduras de partir ossos. Escoicearam o vento, e sua violência possante fez as monstras horrendas ganharem os céus como morcegos enormes, apenas para voltarem ao poleiro depois de grasnarem assustadas.
   "Eia, eia que estes cavalos têm estrelas no pelo. Eia, eia que há um Mudador com a mão esqueda nas rédeas, e ele tem na mão direita uma lança que fende corações!"

   E tanto estardalhaço chamou os ocupantes do forte para a paliçada, e de cima das torres do portão eles apontaram para nós olhos monstruosos e flechas de ferro.
   "Quem é que aqui vem, até Kor-i-Sûm'Bar, senhor de crânio largo e língua vermelha, rei de flechas e senhor de fortes?" Inquiriam as harpias com voz de gralha.

   Fiz a quadriga virar, de modo que bati com a lança no portão. O eco da pancada foi muito mais alto e fez vibrar as toras muito mais que qualquer um que visse meu gesto poderia julgar possível.
   "Bate ao teu portão Varyn, o Agoureiro. Abra a porta para mim, gente de Kor-i-Sûm'Bar, que venho eu atrás de uma mulher ferida de morte!" e o pesar em minha voz escapou tão rápido que eu não pude detê-lo, e foi o suficiente para fazer manchar de negro e murchar a casca das madeiras do portão e amarelar os ossos enormes que faziam-lhe o arco. Penas feias e negras caíram das asas das harpias, que de novo falaram:

   "Ai, que vêm um coração envenenado de tristeza para matar-nos com pesar! Ai, que nossos dentes quebrariam roendo seus ossos pesarosos, ferindo-nos com tristeza! Ai!" E saíram voando para longe, e não voltaram. Ao invés disso levantaram os portões, e diante de mim e de minha companhia estava posto um homem-monstro enorme e ameaçador de tantas maneiras que meus cavalos começaram a patear nervosos o chão e Azandre levou a mão à espada. O mercador que nos guiara tremia.

   "Kor-i-Sûm'Bar! Kor-i-Sûm'Bar" Gritavam vozes indistintas que vinham de dentro do forte. Nem soube eu dizer se eram só de sua gente ou se também eram vozes da colina, que também temia seu senhor. Louvavam-no como se adula uma fera imensa no escrever - mais por medo do que por admiração.

    "Várias flechas voaram de sua mão, Varyn, e lanças de fogo crivaram meu povo há muitos anos quando, a cavalo, você derrubou o pai de meu pai em batalha. Odeio aquele que matou meus ancestrais, e lutaria para ver cortada a sua garganta se a hora fosse outra."

   Sem me mover na quadriga, eu respondi:
   "Que seja essa hora de grande valia, Kor-i-Sûm'Bar, Senhor do Portão das Harpias, pois senão ponha de lado seus préstimos, arme-se com ferro e lembranças e vem, luta pelo corte em meu pescoço, que ei-lo aqui proferindo e aquecendo o vento das Algeíades!"

   O silêncio que veio foi tão pesado que apenas o vento silenciava o bater acelerado de tantos corações. Um cavalo riscou o chão quando Kor-i-Sûm'Bar deu um par de passos para trás, estendendo o braço imenso:
"A hora é de grande valia, e hoje respeito Varyn, o dos cavalos negros, o amigo de nosso povo que o salvou da fome ao mandar para cá as caravanas de pão e de carne salgada, evitando assim que saqueássemos as redondezas já pilhadas e que tivéssemos de passar o inverno roendo ossos e madeira de cupins. É por este mérito, e por amar quem auxilia meu povo que eu o levarei até a tenda onde falece aquela que chamou seu nome antes do veneno maligno roubar-lhe tanto da voz!"

   Encaminhei a quadriga para dentro do forte. A passo lento, para que Kor-i-Sûm'Bar nos acompanhasse, e com ele, dezenove guerreiros de sua gente, armados sobretudo com o pavor que suas silhuetas selvagens impunham. Era sabido por muitos que o cheiro daquela gente também causava pavor, e que suas vozes também, e que também apovoravam mais ao mostrarem-se numerosos. Que terror devia tomar conta dos simplórios ao verem descer das colinas, ao seu encalço, uma turba daqueles orcos pavorosos.

   Mas estávamos ali como convidados de grande urgência. Kor-i-Sûm'Bar ofertou-me sua hospitalidade, e desse modo eu sabia que estávamos todos em chão seguro. Ele esperava assim pagar uma dívida que sua tribo tinha para comigo, e só então eu lembrei que de fato eu enviara para as Algeíades carroções e bois carregados de mantimetos invernais para que os saques parassem. Tributo ao monstro, eis aí uma das mais antigas coisas que acontecem quando o humano e a besta se encontram.

   Se o tributo pago era coisa humana, no que tange o certo ou o errado, as horas diriam. E se era humano o ato que levava à morte lenta e agoniada de Mana, as horas o diriam. E quantos de nós ali presentes chorariam sua morte, eu já posso atalhar: Azandre estava tomado pelo medo de perder a noiva. Eu, contudo, perdia uma amante do tempo passado.
   A mãe de um filho meu estava, talvez, prestes a se unir a ele no sono dos que para as tumbas vão...   

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Outro trecho continuando outro trecho

Acho que transávamos todo dia, ou quase todo dia. Com o tempo foi ficando natural a gente pular as preliminares. Eu que percebi isso. Aquela urgência, aquele já se encontrar com desejo querendo ser satisfeito. Aquele blusão de lã era meio folgado, e se deixava os pulsos e as mãos dela mais cobertos de pano, vez ou outra deixava o ombro escapar pela gola.

Bicho no cio só tem um desejo. Necessidade fácil de entender, de uma coisa. Gente no cio não se preocupa com mais nada. Era o nosso caso em uma relação, não num caso, mas eu não sou de criar caso por um caso de cio na relação de um casal sem caso. A gente era casal, porque casal acasala. Faz casa ou faz casal. A gente se atracava. Um com o outro, um no outro, os dois no colchão.

Meu apartamento era um mar fundo. Ali a gente se afundava. No colchão, que ficava no chão, a gente se atracava. Se ancorava.
Perdi meu apartamento. Deixei para trás o colchão. Fiquei derivando.
Um divã é um rio raso, mas eu ando calado, e de calado baixo. Sem problemas.

Mas eu não me atraco com a morena. Com ela eu não acasalo: nem casa, nem casal. É uma relação médico-paciente com ocasionais intervenções carnais de cunho transformador. Ela, me conhecendo, eu, talvez, me curando. Mas é pouca cumplicidade pra muita terapia. Pouco tesão pra tanto Lato sensu sensual.

Na cama dela, baixa e longa e sutil como um divã que tome proporções mais gigantescas que meu ego - um divã para dois, um divã de casal - a gente se analisa. Mas aí tem a urgência não em começar, mas em terminar. A gente se beija querendo desgrudar, mas como somos simétricos e complementares de um modo meio capenga, temos o mesmo ponto de equilíbrio e ao nos soltarmos em cima a gente se prende embaixo. E se desprende embaixo mas se cola em beijos em cima. Sempre na urgência de gostar, de se fartar, mas de logo acabar com essa gangorra de coerências. Porque por mais que ela queira me entender e me desvendar, ela é gente e gente tem medo do que pode encontrar. Gente quer saber, mesmo tendo medo de entender. Ela quer descobrir como funciona um ciclo de águas bebendo apenas a chuva.

E se eu, antes com a branquela, tinha aquela urgência em começar uma transa e gostava quando parecia que a gente nunca mais ia conseguir terminar de se mexer em sintonia, ficando sempre naquele motocontínuo caótico, agora eu estou vivendo a urgência de terminar logo. Porque quem já gostou da perpetuidade só se ferra com a rotina. Quem viveu em movimentos progressivos e infinitos se dá mal com um zigue-zague efêmero e apressado.

Até que, no fim de ambas as coisas, o que me restava e o que me resta acabam por ser silêncios tão diferentes que eu não sei, nunca, o que dizer. Silêncios ora seguidos por um violão, agora seguidos pelo ventilador de teto. Eu fico com mulheres que não me ajudam a saber que homem que eu sou.

terça-feira, 22 de abril de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Três, Parte I


Crônica Terceira – Do tempo em que Azandre reconheceu o amor e o desespero tão próximos, duas vezes; E de como os assuntos com a Casa de Stabellir tornaram-se nefastos e maus.
Datação – Últimos dias de Fevereiro, Norte das Colinas de Forragem, terras dos selvagens de Kor-i-Sûm'Bar.
Arquivo – Pessoal
Segue-se agora o relato de acontecimentos de sonhos e terror, mistérios desvelados e maravilha, como contados por mim, Varyn, Cronista-Mor-e-Primeiro e Agente de Campo da Convocação dos Vários Caminhos, Arquimestre no Conselho e homem há muito vivendo.



*
*3*
*



O
 sábio desconfia do libelo de sangue. O sábio é, antes de tudo, cauteloso demais para se colocar sabedor de toda a verdade e precavido o suficiente para não ser ignorante. Assim, por segurança e humildade muito necessárias, pergunta, questiona. Por serenidade e por orgulho, contempla, analisa. É da sorte dos que pensam e no pensar se demoram querer desconfiar até as últimas minúcias antes de declarar confiança de algum tipo.

   Que há mortos que caminham entre os vivos, esta é uma constatação aterradora sobretudo porque é real, e triste. Que alguns deles operam encantos, habitam a espreita sob os espelhos d'água dos lagos, assombram o pó ou gemem incorpóreos além do túmulo, isso também passe por real, pois o que vi não fantasio com o tom da mentira.
   E há os mortos que, para manterem saudáveis as carnes malditas, aguam-nas com o sangue de vivos de um ou outro jeito.

   Acaricia as veias da amante o amador, mas não é o sangue seu objetivo, e sim que seja este sangue mais ligeiro, corando a pele e atiçando a amada. Há, neste caso, a certeza necessária da presença das carnes vivas e amáveis entre a veia e a superfície, por onde passam os dedos dedicados em uma carícia que até as mãos mais rudes e cruéis podem executar se guiadas pelo sentimento sensível das paixões.
   Há, contudo, aquele monstro cuja carícia requer dentes e dispensa as mãos, e ignora a pele rasgando a carne. Um tipo de beijo que exige caminho livre entre a boca e a veia, que dá ao sangue a opção de correr por leito mais ávido e externo que não leve ao coração sempre exigente, mas ao ventre sempre faminto.


   Estava eu em mais uma missão a mando da Convocação dos Vários Caminhos. Era do interesse do Conselho de Guerra que limpássemos o nordeste das Terras Algeíades para que por ali pudessem vir os reforços do sul e do oeste, para que estes encurralassem nas montanhas as tropas que se por ali não fossem detidas, marchariam sobre Fárgia e Corcaresse. Eu há muito já vinha avisando que as turbas inimigas teriam passagem livre para atacar Deltim, em Auglandoc, mas meus avisos vinham sido ignorados desde que a vitória sobre o inimigo avizinhava.

   Os exércitos de Corcaresse e de Nudâmia estavam há mais de meio ano em guerras de vai-e-vem contra as hostes de homens do norte que desciam das terras glaciais portando as bandeiras de seus senhores cruéis. Os reforços mercenários que a Convocação contratou e os guerreiros desconjuntados que eu mesmo reuni nas Terras Algeíades foram de grande ajuda para a campanha de derrota dos invasores. Lutávamos então contra as hostes de Serpo de Uma-Mão e de Vailirendaro, o Infanticida. Os dois haviam feito aliança para tomar as Algeíades e o norte de Nudâmia. Haviam arrasado mais de quinze vilas e trinta aldeias ao longo do longo tempo de campanha. Chegaram a tomar duas cidades, mas foram expulsos quando os reinos ao sul começaram a reunir e enviar tropas para repeli-los.

   Homem sujo e vil, Serpo fora um rico mercador de Fárgia que muito aprendera em suas viagens, homem com o qual eu mesmo conversara muito em tempos idos, quando as estrelas mostravam-se mais alegres nos céus sobre os rios. Mas é dos homens perder a sabedoria muito facilmente quando sua bestialidade é mais bem-alimentada e quista do que sua racionalidade e reflexão, de modo que na altura em que estava eu emerso na campanha de livramento das Algeíades, não mais eu reconhecia o bom mercador com quem um dia conversei. Serpo tornara-se um bárbaro cruel e devoto apenas do frio sem cor e esfaimado do norte. Ele comandava mercenários, corsários de péssima fama e inglória, e em meio a saques de terras antes pacíficas ele perdera uma de suas mãos quando tentou violar uma donzela das Algeíades, anos atrás. Ele nunca esqueceu a ferida, mas aquela menina que o cortou ainda vive, desejando desesperadamente cortar a outra mão para fazer par ao membro que ela decepou quando criança.

   Mas não falarei agora dos feitos desta mulher, que agora anda armada com espada de aço e armadura das Rosas. Falo agora de Vailirendaro, aliado de Serpo na má empreitada de tomar as Terras Algeíades. Este adquirira para si várias alcunhas cuja associação seria insulto mortal para o homem decente em seus feitos. Ele matara seu pai quando criança ainda e deu destino parecido à mãe quando esta voltou da guerra. Sua índole era extremamente cruel desde cedo, talvez desde sempre, se amargasse no útero materno o fel da vida por vir. E nos eventos cercando o ato de nascer é que ele já ganhara a alcunha de infanticida: Viram o ventre materno parir gêmeos, um estrangulado no fio da vida que o ligara à mãe, o outro segurando o cordão do enforcamento sem chorar, como se tivesse sido ele o algoz de tão pequena vida. Vailirendaro nascera já com o assassinato escrito na fronte, e mesmo que do fratricídio precoce fosse inocente, dos que se seguiram não foi: matou cada irmão, bastardo ou não, e não me atrevo a dizer os fins que deu até mesmo às crianças de colo que arrancou dos braços das mães. Ferveu o próprio filho em caldeirão, atirando-o em um quando o julgou fraco, matando também a mãe por acusá-la de ter gasto em vão sua semente.

   Este homem de avérneas ações está marcado para morrer pela mão de um homem justo e inocente, assim profetizo eu ao escrever estas linhas.

   Acontece que em tal momento, quando organizávamos o último assalto contra as hostes de Serpo e Vailirendaro, chegou ao acampamento uma notícia horrível demais para que eu aceitasse que outra verdade triste cumpria-se sem que eu antes tivesse tido visão sobre o acontecimento dela. Estava eu, então, na companhia de Azandre e de Sarão, meus discípulos mais velhos, cuja pouca idade diferia entre um e outro por apenas um ano mal completo. Eles estavam emersos no tempo da guerra, e o primeiro estava frio e resoluto como o aço forjado para a matança, enquanto o outro tremia convulsivo sob sua pele, exigindo a toda hora a carreira e estalar dos músculos para que houvesse ação.

    Por isso eu mandara Sarão para as linhas de frente, com setenta homens mercenários. Não era dele o comando, contudo, pois Sarão é o soldado da linha de frente que enterra a lança ou gira o machado com a boca aberta e o pescoço estendido para melhor sentir o sangue arrancado do inimigo. Azandre é que mostrava os dons do estrategista e do comandante, mas então ele estava comigo no acampamento principal das tropas do fronte. Na tenda maior estivemos ele, eu e os sete generais, buscando liberar aquela região toda do flagelo cruel vindo do norte. Durante toda a reunião Azandre permaneceu calado, mas eu lia em seus pensamentos meticulosos e reservados que ele pensava melhor que muitos dos melhores estrategistas presentes. Em ver que ele não demonstrava toda a sua sabedoria através dos olhos resolutos e que ainda assim ele sobrepujava a muitos homens velhos em sua perspicácia, eu enchi-me de orgulho.

   Acontece que ao fim da reunião voltamos à nossa tenda de campanha, e lá esperava um mensageiro de improvisos: homem assustado mas de passo largo e firme, era um mercador trajando peles e couro e cheirando a gordura e estrada.
“Senhor Varyn, é de urgência que venha comigo, senhor!” Lembro-me eu melhor dos gestos e olhar desesperados e claudicantes do homem do que de suas palavras que apenas tentavam dar cor ao seu tormento “Mana está ferida. Flechada. Envenenada. Morre, senhor, hoje ao anoitecer.”

   A armadura protege bem o homem e não denuncia sua tremedeira do medo, e pouco muda se ele está paralisado em espanto ou terror. Mas foi a mão que deixou cair o florete e a boca que soltou palavras desoladas que denunciou a fenda aberta no espírito de Azandre:
“Minha noiva... Minha noiva morre...”

   E minha quadriga negra partiu veloz em direção a uma tenda cercada por monstros onde uma jovem jazia estirada com uma haste mortal enfeando-lhe o seio branco e fazendo esfriar seu sangue quente.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O Prontuário

"Comece pelo começo."

"Tenho me sentido em vãos, doutora."

"Claustrofobia do pensamento. Mas você tem um ego agorafóbico. Você tem plano de saúde?"

"Nunca fiz planos: Se os faço, não os cumpro."

"Como se sente?"

"O amigo preocupado do meu ego. Preocupado com meu ego, aquele drogado..."

"O que você vê aqui neste cartão?"

O teste foi esse:
"A sílaba tônica do martelo, se eu falo, martelo a minha língua. Se em pensamento, martelo minha mente, e se escrevo, martelo descontente."

Doses diárias de catarse: Recomendação médica. Foi o resultado do diagnóstico. Tenho que desintoxicar. Uma emoção intensa a cada quatro horas.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Um outro trecho

Eu sempre amei aquele jeito como ela se despia ou se vestia. Ela é daquelas mulheres que ficam lindas quando estão vestidas de bagunça. Levantava, jogava aquele blusão de lã sobre o corpo, já estava linda. Ela adorava ficar descalça no chão de madeira, e se saía, saía de sandálias ou com aquelas sapatilhas que deixavam à mostra os pés branquinhos e o cordão trançado de crina de cavalo e couro que ela usava no tornozelo esquerdo.

Tenho e sou agora de uma morena magra e alta, a pele dela é que nem qualquer verso de poema que usa as palavras "cobre" ou "castanho" para elogiar uma beleza mestiça. Tendo sido já devidamente apresentada por escritores essa pele, descrevo mais. O cabelo dela não é liso e castanho que nem o da outra, mas sim aquela juba linda e armada, imponente como uma nuvem teimosa que ficasse dourada porque está entre a testa suave e o sol. O rosto é lindo; colinas africanas onde o viço de uma selva cruza com a simplicidade ostentada da savana. Os olhos, oliva, e o sorriso o leite branco da leoa, mas doce como a carne sem pecados do mamão.

Ela se veste elegante, usa vestidos de poucos tons de uma mesma cor, e se não são de estamparia abstrata, são floridos; e se têm flores ela é um canteiro de terra fértil onde só não germinou vida nas leras de seus braços e pernas e no rosto onde a natureza plantou apenas uma graça nobre.

Só que ainda me marcou mais a minha branquela do tempo em que eu trabalhava perto do porto. Eu saía do meu turno e engolia aquele vento frio e lá estava ela, olhando o mar de cima do trapiche. Ela aparecia junto com o sol, quando começava a manhã. Trazia um café para mim, logo ela já tinha que ir pro trabalho. Pesquisadora.

Sempre que me perguntarem vou dizer que não, negar pra sempre... Mas coração de homem é mesmo vagabundo. É sempre vagabundo. Se alguma vez você perguntar a um homem feito se ele se acha um vagabundo de coração, talvez ele negue. Sabe por quê? Porque ele sabe que é.

Eu estou com quem me sustenta. Ando nutrido com os frutos da terra. Mas degredado eu canto uma canção do exílio volta e meia para aquela violeira do blusão de lã, de cabelo castanho e longo, de sobrancelha grossa, pele branca e de gestos letárgicos. As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas, porque a morena e eu temos as noites de folga só pra folguear, e nossas várzeas têm mais flores porque ela usa vestido florido. Mas me lembro de umas noites onde o céu tinha mais vida, mesmo que estrela pareça coisa quieta, de longe.

Eu estou morando na toca do leão. Eu a chamo a morena de Nemeia. Ela ri porque é mestra em Estudos Mitológicos e Psicologia Arquetípica Jungiana. Ela sabe das coisas melhor que eu, não importa o que. Ao menos parece, porque a mim ela não entende. Por isso ela está comigo. Porque ela não me entende. Enquanto me analisa, me prende. Enquanto me desvenda, me conquista. Se ela olhasse para mim e soubesse o que eu penso, voltaria a ser tranquila e poderia ser solteira.

Ela não entende, na verdade, como eu consegui, destruído, construir uma casa em cima das ruínas do templo grego que eu fui, pelo qual ela se interessa. Bem verdade - nem sou casa nem fui templo; Eu sou é um quarto-sala ou quitinete erguida nas coxas por cima de uma hermida, e só. Mas ela talvez entenda isso, as partes, não compreende é a forma total. Vê o mármore da ruína, vê a argamassa do quartinho, mas não entende a amálgama.

Enquanto eu não falar, ela nunca vai entender.
No tempo em que eu era algo antes de ruína eu bebia libações. Tinha música do violão que ela gostava de tocar no colchão, quase sem roupa, meio estirada sobre aquele blusão de lã, e a gente não rezava, mas vivia de joelhos.

Só que passou o tempo desse meu paganismo e agora eu moro num divã. E não que eu não queira me entender também: Eu me entendo. Me entendi. Me entediei. Talvez por isso eu não queira que a Nemeia me entenda. Me fareje e me estrangule. Não precisa. Não dá. Não vale a análise.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Passagens

Passei algum tempo pensando na Rainha das Estrelas, e por perto sempre esteve a Dama da Terra. E nesse enleio eu também fui elemento consolidado – uma coisa de vento ou memória pairando entre as duas, e entre elas, e talvez também tenha sido um ermo de submundo nos subterrâneos da terra, clamando por vida e cor, ou cujas brechas observavam e queriam a luz fria e branca das estrelas ao longe.

Uma eu vejo nas correntes do céu, entre o cerúleo da lonjura e o branco da distância, e está posta além do alcance mas castiga os olhos.
Outra está posta entre flores e caules, nua, e a casca das árvores é sua pele tão macia por onde o orvalho não escorre - prefere se agarrar e secar a ter de deixar.

Uma está com a vista voltada para a escuridão dos céus além, cada vez mais distantes e vazios. Pensa com a presteza da estrela, e ela é esperança cuja luz ainda vaga depois de morto o coração que irradia.
Outra está sob aves canoras e entre as frutas que amadurecem, e ao seu redor as plantas se enroscam como se fosse normal haver vida. Ela apenas escuta o pólen e sente o gosto da canção, o perfume dos meus toques e observa, na paz de seus olhos fechados, a tranquilidade.

E minhas mãos, estranhas porque sujas de tinta, ora mancham folhas verdes como se quisessem escrever direto na natureza ao invés de se contentarem em descrevê-la, citando montanhas e paz.
E minhas mãos, estranhas porque sujas de tinta e sal, ora escurecem-me a vista quando limpo os olhos, e por um instante tudo o que vejo é preto.

Uma árvore coroada de estrelas. Uma colina orvalhada encimada pelo espelho do firmamento, onde uma nuvem de prata esteja cercada por estrelas. A união de céu e terra é um tanto fugaz, e em nada contentadora.

Estarei sempre eu, um horizonte, cortando ao meio algo que une a terra boa com o ar superior.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Silence is the dearest companion of all.

Silence is the dearest companion of all.
It asks nothing of a Being
that wouldn't be willingly given

A Song or two, and loud screams,
Some meaningless laughter and whining,
And then silence would again be company.

segunda-feira, 24 de março de 2014

A Pluralidade do Sujeito

   Percebi que o que tenho vivido é o Idiota. O Eu, aquele de hábito, virou recluso e fechou-se de tal modo que eu não o encontro mais. Não sei mais dele, ou sei lá, de mim. Não me manda carta, não me escreve nem para dizer se está vivo. Apenas escuto falar a seu respeito quando o Escritor passa e deixa bilhetes ou pistas que me remetam a mim. Isso porque não me mando carta, não me escrevo nem para me dizer se estou vivo.

   O Recluso, não sei se pobre coitado ou querido e estimado amigo que partiu, deixa suas marcas também. Indeléveis até o próximo tempo de inconstâncias. Agorafobia. Que fim para mim.

   O Idiota é que tem que tocar a vida. Trabalha. Toma café. Fala. Tem vivido há mais de ano. Aprendeu a lidar com o relógio e com a boca e com a cama, mas não se pode exigir calor do inverno ou lambidas fiéis de uma cobra letárgica. Porque é essencialmente Idiota, ele, eu, não que o inverno ou as cobras sejam idiotas. O Idiota sou eu.

   O Escritor, eis-me aqui mediando um conflito estranho. Uma guerra de ausências. Uma face para a qual os outros dois não parecem ligar. Não me incomoda isso. O desprezo, podem queixar-se alguns, é um fardo amargo e perturbador, mas alguém precisa ter por legado o esquecimento. Alguém precisa herdar a indiferença. Alguém precisa ser o corredor, pois o mundo está cheio de quintais e grandes salões.

   Sou mais de um, e todos eus não nos comunico.



"Mad Man", arte de Sakimi chan
[http://sakimichan.deviantart.com/]
[https://www.facebook.com/pages/Sakimi-chan/1409836239257534]