domingo, 30 de junho de 2013

Emily Dickinson's

A charm invests a face
Imperfectly beheld.
The lady dare not lift her veil 
For fear it be dispelled.

But peers beyond her mesh,
And wishes, and denies, 
'Lest interview annul a want
That image satisfies.


***


Come slowly, Eden!
lips unused to thee,
Bashful, sip thy jasmines,
As the fainting bee,

Reaching late his flower,
Round her chamber hums,
Counts his nectars --enters,
And is lost in balms!

sexta-feira, 28 de junho de 2013

As Rosas e o Punhal, Crônica I, parte IV


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Preâmbulo
Meu coração não conhece a paz. Apenas lembra-se da inviolabilidade, não podendo reconhecer esta porque eu era criança ainda quando meu coração era inviolado. Quando passei a entender das coisas do mundo, crescida, já estava violado o meu coração. Colocaram nos meus cárdios músculos mais coisas do que se pode aceitar no resto da carne – colocaram pregos, colocaram dores, muitas, e colocaram grilhões, estacas de madeira, o gume frio de várias lâminas e balas com pólvora queimando. Ele bate furado desde tão cedo em minha longa vida que não posso nem imaginar nas minhas noites mais embriagadas o que é ter um coração inteiro.
O pior, contudo, não foi essa sucessão de violências assaltando-me a casa do meu sangue. Não, nem posso dizer que tudo isso o enfraqueceu para o que sofro agora, pois meu coração é incólume como pode ser incólume uma ruína do mundo antigo. Digo que o pior foi a última coisa aqui, no meu seio, colocada. Eu sou lembrada disso, desnecessariamente, quando debruço-me ousadamente sobre o parapeito do castelo e vejo os homens lá embaixo acampados, esperando minha morte. Eu sou lembrada disso, desnecessariamente, quando olho pela janela aberta das câmaras aqui frias e vejo um exército ao meu redor.
Colocaram ausência em meu coração, e essa é a pior das dores que um peito pode sofrer.
– Cartas da Dama no Castelo de Quartalonge, décimo sétimo dia do cerco

V
i tantas coisas aterradoras, assombrosas, pavorosas e asquerosas que é, devo dizer, muito difícil me aturdir ou causar incômodo. Incomodam-me as moscas, incomodam-me os tolos, incomodam-me os imorais, mas não me incomoda a cena terrível da ferida aberta, do sangue perdido, das vísceras espalhadas. Mas o que Elão de Varraquêz, aquele estranho homem do norte, fizera aos bárbaros, confesso, causou-me inquietação.
   Tombar pela espada ou pela lança, flechado até, pode ser um fim mais significativo do que tombar pelos dentes do inimigo. Não que eu tenha me apiedado daquela escória, pois não desejaria a eles fim diferente da morte, mas a forma como acontecem os crimes e os atos são de uma esfera completamente apartada dos crimes e dos atos em si, uma vez perpetrados. Analisa-se a carne tenra do cordeiro de modo em tudo diferente do modo como se vê o animal sendo abatido pelo cutelo impiedoso. Vê-se a pérola com apreço, encara-se a ostra gosmenta com desprezo.
   É da sorte das pessoas refletir a morte, embora seja da de poucas de fato realizá-la. Por isso as guerras sempre dão errado. Mas eu não sou um homem qualquer, e tão rápido quanto me enojou a cena da degola daqueles bárbaros pelos dentes de meu sedento companheiro de viagem, igualmente rápido ocultamos seus corpos por trás de pedras altas e cobrimos seu sangue ruim com a neve que caía aos montes do céu de inverno.
   – Tu nem mesmo usas do ferro para tirar a vida dos inimigos – disse-me Elão, e ele de repente mostrou-se mais aberto á conversa. O sangue dos bárbaros aquecera-lhe a garganta de um modo todo especial que lhe aveludou a voz, tornando-a amigável e perigosa. Também ele parecia mais saudável, o viço tomava conta de sua face de maneira muito sutil. Continuou falando-me – Eu vi como tiraste dos bárbaros o sangue e como raspaste dos ossos deles a carne fazendo flutuar as pedras como se fossem um turbilhão de facas.

   – Eu confio na minha mão que maneja a espada com igual afinco com que confio em meus dons de feiticeiro. Acaso negas que uma muito bem completa a outra no ofício de vencer?

   – Tratemo-nos por você.

   E ele fez uma reverência deveras cortês e refinada diante de minha pessoa. Eu retribui, um pouco fria e duramente.
   – Vamos, lá vem aqueles cuja vida deve findar. – e dizendo isso eu fiz Elão recuar para o alto de um rochedo de topo chato. Retirei-me para perto dos corpos dos bárbaros tombados, ficando oculto por trás das pedras.

   Por sortes Elão tivera a sede de sangue momentaneamente aplacada. Vimos róis de bárbaros fortes passando diante de nossos olhos, desfilando com seus espólios – traziam as quinquilharias, ferramentas e armas roubadas das terras planas, e traziam filas de prisioneiros como se trouxessem arrastados peixes na vara ou bestas caçadas.
   Elão certamente pensou como eu e resolveu não atacar. Era suicídio fazê-lo. Uma centena e meia, quase, de inimigos que com as forças dos braços e mãos nuas poderiam quebrar um osso.

   Mas toda aquela turba movia-se a velocidades inconstantes, de modo que mais um grupo de bárbaros seguiu a centena e meia que passou, sendo esta o grande grupo. Era um grupo de saqueadores atrasado, e vinha com passo apertado, esperando alcançar os demais. Encontraram, no caminho, dois estranhos barrando-lhes a passagem: um estranho tinha vestes castanhas e colete de couro, capuz sobre a cabeça ocultando o rosto com sombras, e o sabre estava na mão. O outro era eu, as roupas de couro negro contrastando com a neve.
   Os bárbaros disseram algo em sua língua. Falaram de morte e surpresa, de mais morte e diversão. Algo sobre audácia. Nunca me preocupei em aprender a língua de uma estirpe que eu sabia que logo estaria extinta e nada deixaria de impressionante como legado para o mundo.
   Carregaram, largando prisioneiros e saque. Vieram com machados e clavas, as armas de preferência daquela gente. Elão foi ao seu encontro enquanto meu poder se empilhava, crescendo, e minha visão focava-se em meus inimigos de tal modo que só minha mente conseguia perceber o resto do mundo.
   E no espaço de tempo em que Elão decepou os braços dos bárbaros com uma força profana, fazendo seu aço afiado partir ossos com facilidade estranha, eu estava atento às torrentes inconstantes da Magia, a Arte falava-me por musas de fogo e vento que me agitavam as ideias e acariciavam-me as mãos com seus seios de chama e sutis ventres de vendaval.
   Ordenei que a escória queimasse. O sangue nas veias daquela gente ardeu como água do caldeirão, e ferveu suas veias, ferveu sua carne, esquentou seus ossos melhor que qualquer casaco. A pele descolava-se do músculo de maneira a revelar a humanidade frágil por baixo dela. Quantos assim tombaram somavam dezena.
   Sei que Elão conjurou-me um olhar de lamentação pelo sangue perdido. Ele precisava daquilo. Então tirei Altala da bainha. Seu ferro negro tinha tanta sede quanto meu companheiro de jornada, e as runas marcadas em sua folha faiscaram o vermelho do momento da sua forjadura.

   O resto daqueles ímpios caiu assim por nossa perícia. Não foi por menos que deixamos seus insultos, que proferiam aos berros salivantes a todo momento – cortamos línguas e cortamos braços, cortamos pescoços e perfuramos corações. A pilha de agonizantes seria de melhor valia para ver a lonjura do que o rochedo de onde Elão descera para pôr-se ao meu lado na estrada diante dos bárbaros que antes acreditavam ser possível seu regresso para casa.
   Dispensei um olhar de soltura aos prisioneiros dos bárbaros, e uma vez sem suas amarras fugiram pelo mesmo caminho que antes o levava ao abatedouro.

   – Os patifes são muitos. – disse-me Elão, olhando montanha acima.

   – Sim, as tribos todas estão reunidas para o solstício. É inverno nas montanhas, mas sabem ser verão no resto do mundo.

   – Sei que há um plano em sua mente. Sei que envolve morte e esforço. – e Elão abaixou-se para apanhar um dos bárbaros que agonizava sofregamente – Beberei à nossa vitória, e então seguiremos montanha acima.

   Dei as costas para a cena sugerida pelos barulhos de pele se rasgando e gritos de horror sofrido. Caminhei montanha acima, sabendo que logo Elão poderia me alcançar.

   Se era uma hecatombe que os bárbaros queriam ter, eles a teriam. Aliás, desde minha subida às montanhas, ume hecatombe continuariam tendo.


   Eu só não queria ter encontrado o inferno no alto das montanhas...

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Campfire Stories

Tell me again of that lonely soul whose best friends were its own room's walls,
Then tell me of that man whose selfishness made of him a hoarder of himself.

Tell me, then, of that lady whose brow was so dark and cold stars from afar nested on it.
Tell me o tell me of those children whose joy was so strong their agony was laughter.

Tell me again, then, of that troubled kid whose stranged ways lead her to oblivion!
Tell me o tell me of that lad whose shadow was so nigh he could feel touched and gasping.

O tell me, tell me again of those people whose mirth was so contagious their pox was fun.
Tell me, tell me tell me of that creature whose form was so free it could not be seen.

Tell me, then, of those people whose poison was so keen their voice was hissing,
And tell me of those two whose hands were so safe their embrace was shackles.

Tell me, my dear, of those men and women so far and brave their history became true.
Tell me, o tell me my dear, of songs long heard and lost whose echo clings to beauty.

Then tell me, my dear, of those troubles whose troubles were troublesome peace,
And tell me of that long-felt peace whose peace was a trouble of peaceful trouble.

And then, my dear, tell me of something new whose face I've known for sure.
And then, my dear, sing me an old rhyme whose sound is all unknown to me.

Then perhaps finally you'll use some listening.
Then perhaps finally we'll know some truth.

Tell me again of reason.
Tell me again of it all.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

"There is only one sun", de Marina Tsvetaeva

There is only one sun - but it travels the world everyday.
The sun is all mine and I won't ever give it away!

I will share not an hour of warmth, not a beam of its light!
I'll let cities perish in the constant, unchangeable night!

I will hold it up with my hands, till it ceases to turn!
I don't care if my hands, lips and heart must get burned!

Let it vanish in darkness and rusghint, I'll follow its way!
My darling, my sunlight! I won't ever give you away!

-- Marina Tsvetaeva, translated by Andrey Kneller

As Rosas e o Punhal, I, parte III

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Preâmbulo
A filha de minha irmã já era velha quando eu nasci. Como pode, deviam se perguntar os meus vizinhos, como pode um casal de velhos cuidar de uma criança? Como pode uma velha de útero empoeirado dar a luz e como pode ela amamentar com um seio murcho que já devia ter secado? E o velho, como pode tê-la impregnado quando mal aguenta levantar uma enxada ou forcado? Mas eu fui bem cuidado, sim, e meus pais velhos me deram o que restava de amor neles. Morreram, logicamente, bem antes do que o filho pode esperar ou aguentar ver os pais morrerem, mas não fiquei mal no mundo. Minha infância fora singular, e minha juventude era, para mim, então, um espetáculo de possibilidades que desfilavam diante de meus olhos, as mais finas e caras cortesãs que, dispensadas pelos nobres falidos, ofertam seios e risos a mim, diante do rei.
- Elão de Varraquêz, Memórias



M
atar muitos homens é fácil. Matar um homem é fácil. Matar é fácil. Basta fazer a ponta da lança aparecer do outro lado do peito do oponente e o serviço está, diga-se de passagem, feito. Não que eu seja dado à matança, mas Varyn é conhecido também pela mão inescapável. Jamais tive de poupar um inimigo miserável em tempo de guerra, nem tive de deter minhas armas diante de um oponente infame. Conheço a misericórdia, contudo, aprendi-a muitas vezes em minha vida embora tão pouco eu tenha sentido dela. Sentir e sentido, inclusive, são palavras muito mais malignas do que a ideia inglória e o pensamento mórbido podem supor. Há tempos e mundos em que a piedade é o pior dos castigos ou o primeiro passo para a derrocada maior, quando a morte limpa é a única portadora do alívio verdadeiro.

   Mas não era o que acontecia em tal ocasião. Matar os bárbaros que aprisionavam os aldeões de Auglandoc tornara-se, em algum tempo de andança silenciosa, uma questão maior do que minha mente podia supor. Eu sabia que estava preparando-me não para um banho de sangue contra os rudes e vis habitantes das montanhas, mas para um passo além do limiar que separava minha vida antes da surpresa de minha vida depois de aceito o desafio – os primeiros passos, eu já havia os dado, e eu estava aceitando aquele desafio cujo vulto tempestuoso ainda era apenas uma imagem fugaz em minha mente.

   Nada comparada, esta imagem fugaz, com a bem distinta imagem de dezenas de homens armados, da estirpe de maior altura, atando com cordas seus prisioneiros sem distingui-los das ovelhas e cabras que roubavam também. Estavam juntando os espólios de outra vila queimada. Levaram somente os plebeus e trabalhadores braçais que ali se abrigavam – o nobre, dono daquela vila, este eles queimaram vivo e amarram-lhe o corpo em uma estaca que ergueram no meio do terreno incendiado.

   Quando os bárbaros finalmente aprontaram sua turba para partir em direção a um novo destino, eu olhei para o homem ao meu lado. Ele os observava com os olhos de um corvo, ou de um lobo que espreita. Ele queria sentir em sua própria pele o calor do sangue dos bárbaros como se isso fosse aplacar aquele frio imenso que lhe assolava a alma de tal modo que eu podia senti-lo enrijecendo-me o senso de tranquilidade. Fazia inverno naquele homem, gelo e frio silencioso estavam soterrando o vazio onde devia ficar sua alma exposta.

   – Sabe que não sou mais homem do que tu, que também não é dos mais normais. – Disse-me ele, para minha surpresa. Mas minha face é quieta e sendo assim em nada imita minha mente ou meu coração, que foram pegos despreparados por tais palavras.

   – Tu vês em minha mente algo que, de fato, não fiz questão de esconder. Como podes ler-me os pensamentos com essa facilidade?

   – Diante do perigo, o homem transcende a humanidade. Temos nós, os dois, pouca humanidade para transcender, pois grande parte do que somos não é humano que chegue para ser humanidade.

   As palavras dele teriam confundido a muitos, mesmo a meus pupilos, tão bem treinados, mesmo a tantos homens e mulheres ilustres e eruditos a quem conheci em anos de andança. Para entender aquelas palavras era necessária uma distinção das coisas e das pessoas que não se tem pela leitura, nem se ganha pela audição, tampouco se adquire pela barganha. Eu sabia bem do que falava ele porque muito eu sofrera, porque muito eu andara, porque muito eu perdera. As revoluções da roda do mundo atropelaram várias vezes meu coração, soterrando-me as dores nos sulcos que abria para continuar as evoluções do tempo.
   – Eu sou um mudador, é verdade. Mudo coisas e pessoas, e aquilo que vi e fiz me difere tanto dos outros homens que entre eles sinto-me um intruso, um estranho, um passante. Por que tu sentes isso, homem do norte, e porque não vejo ao certo o que há em tua alma, que nem parece haver?

   – Tu és Varyn. Que outro sábio da Convocação dos Vários Caminhos andaria assim, sozinho e sem garbo, trajado como viajante comum, sem medo da estrada? Tua fama é grande, ó mago, e vai até onde o vento norte não conhece paredes que lhe barrem a corrida, nas terras selvagens onde o jugo do inverno parece infindo e onde é crime acender fogueiras. Sabes tu quem eu sou?

   – Tudo o que entendo de heráldica e de história não me permite reconhecer-te. O que queres em troca de me dar teu nome?

   – A ajuda em minha mais nova empresa: a de ceifar a vida de todos esses bárbaros que agora vão. Olha-os atravessando a ponte que logo vão derrubar.

   Eu considerei a oferta do homem com o misto da intriga e da indiferença. Ele não era um homem comum, mas não me despertava tanta curiosidade como, por um momento, eu esperava que o tivesse feito. Derramar sangue de bárbaros não era minha missão ali, e já não era de minha vontade inquieta tudo aquilo de caçar e libertar pessoas inocentes das mãos rudes da violência.

   Mas em minha mente ecoavam sussurros de futuro e gritavam para meus sentidos mais quietos as vozes do portento e do augúrio. Varyn, o agoureiro. É assim que me chamam aqueles com mais estudo e mais coragem, com mais visão e impulsividade – as virtudes que mais estimo. O futuro me falava como uma amante sussurrando uma jura dúbia de amor ao pé do ouvido. Se eu seguisse aquele homem de alma marcada eu estaria pondo-me perto de um destino de tão grande tribulação e possibilidade que meus feitos ecoariam durante anos a fio sobre terras mais vastas do que a vontade dos homens de conhecê-las sempre fora.
   Conhecendo-me como só eu conheço, vi-me diante de uma possibilidade que eu não podia deixar passar.

   – Eles vão agora para o leste. Buscarão as demais aldeias de pescadores no pântano, nos poços de argila. Voltarão para suas montanhas em pouco tempo, pois executarão seus rituais profanos antes mesmo do ocaso deste sol. Eles celebrarão o solstício, exaltando seus deuses do sol e do sangue com sacrifícios desde a primeira hora do novo dia até o ápice do sol de verão. Vamos esperá-los nas montanhas, por onde terão de passar aos poucos por causa das passagens estreitas.

   – Para as montanhas, então – dizia-me ele, de novo. Os bárbaros sanguinários foram para o sul e depois para o leste enquanto nós fomos para o norte e depois para o oeste. Nosso reencontro, contudo, não tardaria, e em nada seria agradável.


   Matar é fácil. Se um dia duvidei disso como penso ter duvidado, naquele tempo e neste eu padecia de certezas. Não havia espaço para a dúvida entre minha mão e o punho da espada ou a haste da lança, nem havia espaço para a dúvida no intervalo entre o gume e o pescoço ou o peito de meu inimigo. Altala, a lâmina que matara tantos reis, era a espada que em meu cinto lembrava aos poderosos – quando eu punha-me diante deles em audiências e missões como porta-voz – que mesmo a vida dos soberanos é frágil e que mesmo seu sangue vaza fácil.

   O que estava me causando apreensão e estranhamento enquanto estávamos no frio das montanhas, esperando os bárbaros atravessarem um desfiladeiro ladeado por altas escarpas, não era a ideia de ter de combater uma força de bárbaros tão grande como aquela que viria. O que me causava estranha apreensão era a sanha daquele homem estranho em matá-los tão avidamente; e o que me assolava a calma habitual com estranhamento apreensivo era a força que ele estava fazendo, cada vez mais visível porque crescente, de não desembestar com raiva para cima de mim. Ele queria matar, e esse desejo o sufocava, enchia-o de desespero como se alguém o impedisse de respirar ou o privasse de água e alimento quando tinha sede e fome.

   Ouvi passos. Ele os ouvira antes. Senti o cheiro de suor seco e sangue cru. Ele os sentira antes. Os bárbaros vinham pela passagem, seus cheiros e ruídos atormentavam meus sentidos e a paisagem.
   Doze. Era um grupo pequeno, apenas, precediam a vasta hoste que descera das montanhas porque, ao certo, tinham mais pressa em voltar e menos desejo em puxar os prisioneiros. Não vinham apressados pela falta de saque, contudo, pois atrasavam-lhes quilos de tesouros roubados nas vilas.

   Apertei uma de minhas mãos no cabo da espada. Estávamos em um desnível que nos ocultava perfeitamente de um grupo tão pequeno e despreocupado. Eles estavam confiantes, jamais esperariam um ataque em suas próprias terras. Ainda mais de modo tão selvagem como estava por vir.

   Pois antes mesmo que uma estratégia se formasse em minha mente, antes mesmo que eu preparasse os músculos e tendões para a batalha, veio aos olhos de minha mente uma visão escurecida pela fatalidade – a morte sorria sobre aquele lugar, ela esticou um braço preto e longo em direção aos presentes e fez seu gesto pavoroso de quem chama para perto de si um número qualquer de futuros cadáveres.

   Meu companheiro de viagem estatelava-se sobre os bárbaros com a espada em punho. Ele tinha no rosto a cólera de uma besta, a frieza de um assassino e nada de seu bom senso, a afoiteza do louco e a sede de um condenado. Logo ele deixou a espada enterrada na carne dura do bárbaro mais alto, os outros cinco que ele deixara de pé ele estava matando com os dentes – arrancava-lhes a carne da garganta com mordida tão pavorosa que não penso descrever nem em voz.

   Tive de fazer muito pouco, mais o tive, para que pudesse saber o nome daquele homem desgraçado. Eu manipulei os nomes e as vontades da pedra e do fogo, e fiz lascas do granito das montanhas girarem tão rápido pelo ar que atravessaram os bárbaros que ainda restavam como se fossem flechas contra o papel. As lascas afiadas flutuaram acima do chão e fizeram dos homens que restavam uma nuvem indistinta de sangue e pedaços que espalharam-se pela neve assim que o furacão de pedra e vontade mais forte desfez-se quando cessei minha encantação.

   O meu companheiro novo de viagem estava me observando. O capuz encobrira metade de seu rosto, e pela sombra deste capuz escapava um brilho mortiço e diabólico de um dos olhos, que estava à mostra. Sua boca, seu queixo, seu pescoço, lavados na água vermelha que correra nos canais de seus inimigos mortos, armavam-se em um sorriso maníaco e apavorante por causa do modo como seus dentes tingidos de vermelho apareciam enquanto falou-me:
   – Sou Elão de Varraquêz. Vim do norte e para o norte logo pretendo voltar. Não agora, há mais bárbaros para matar. Obrigado pela ajuda.

   Eu dera o passo derradeiro em direção a um novo capítulo no livro de minha vida. Aquele passo do qual não há escapatória – ou se dá esse passo, ou se retrocede por muito tempo. Eu estava, então, diante de uma nova jornada.


   – Limpe sua boca ao falar comigo – Disse-lhe eu, sentindo menos respeito por ele – Procure sua espada e prepare-se. – eu escutava, sabendo assim que melhor ainda ele escutava, as centenas de bárbaros vindo pelo desfiladeiro – Nossos inimigos vem vindo com os prisioneiros. Hora de encarar o riso e o aceno da morte... vampiro.

sábado, 8 de junho de 2013

As Rosas e o Punhal - I, parte II

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Preâmbulo
As ruínas estão vazias. Não há mais nada de novo nos mapas do Sul. Os caçadores de tesouro roubam, ou morreram de fome. Eu possuo relíquias, algumas, e todas me são muito estimadas. Guardo-as com o zelo com o qual se guarda em casa os filhos das mazelas da rua e guardo-as com o ciúme com o qual se tranca em pesadas arcas tesouros que me incitam toda a avidez.
Se há tesouros maiores no mundo, não quero saber. Basta apenas qualquer coisa que eu possa ter entre as mãos, sentir o peso, esconder, trancar. Todo o resto está condenado ao silêncio pavoroso e patético que sobrevém a um instante de caos e delírio. A relíquia não – ela nasceu para o silêncio e, entre as idas e vindas das guerras e da história, em silêncio irredutível ela se mantém.
- Varyn



Q
 uem diria que, com o tempo, o silêncio se mostraria teimoso. Eu não sou um homem de palavras, delas não sou companheiro bom. Sou comedido até em meu comedimento, de modo que evito dar sopro àquilo que, se no olvido do silêncio, não faria diferença ou não conheceria a falta que faz. Desse modo, pouco daquela jornada desde o bosque com neve e sangue até as soleiras das portas dos gigantes pode ser narrado por mim, pois houve quase nenhuma troca de palavras entre aquele homem estranho com quem me deparei em minha andança por Auglandoc.
   Disse que saímos do bosque com neve e sangue, onde lá derrubamos os bárbaros, e seguimos em direção às terras planas e quietas perto dos grandes rios, passando pelas pedras enormes e postas de pé por mãos esquecidas e estranhas, pedra em pé chamadas de portas dos gigantes pelos locais. Ali, naquela região, havia um número grande de vilas de pescadores e fazendas, embora a maioria tivesse sido saqueada ou abandonada em virtude dos eventos que antecederam e se seguiram à destruição de Deltim e o morticínio autorado dentro de seus muros.

   Tanto quanto pouco falo, ando muito. Ando em demasia. Perco-me em passos esparsos e confino-me nas vastidões do mundo. Minha alma esparziu-se pelas terras que pisei tal como as tranças de minhas esposas um dia esparziram-se em meu peito, com igual carinho e afoiteza. Assim sendo, acompanhar-me o passo era proeza para o homem comum, que é homem dado a não caminhar e contentar-se com cadeiras e sobejos.

   Mas o homem que eu encontrara no bosque caminhava comigo. Não me acompanhava – de fato, pura e simplesmente, caminhava comigo. Seguíamos lado a lado, coisa que não acontece em minhas andanças a menos que eu o queira. Eu soube no meio da jornada pelas terras quietas que ele seria capaz de ultrapassar meu passo quando quisesse.

   Falamos de portento e maldição, de tristezas e esperança – sempre tão pouca, o luxo dos homens. Foi quando atentei-o, desnecessariamente, para a urgência do silêncio: estávamos próximos a uma vila ribeirinha que ardia em chamas. Desnecessariamente, digo-o, porque o homem passava tanto tempo quanto possível em silêncio. Suas palavras, quando ele as proferia, eram quase sempre para a obstinação que mostrara em querer eliminar os bárbaros que haviam descido das montanhas para roubar gente das terras planas.

   Ouvimos gritos e choro, urros e risos. As criações gritavam e as labaredas rugiam como bestas. Os escombros tomando forma pelo fogo abafaram nossos passos furtivos para trás das pedras que nos ocultaram enquanto observamos o encontro entre as gentes da montanha e da planície.

   Uma fila longa de homens e mulheres atados uns aos outros por laços de corda nos pescoços e tornozelos seguia em desespero e sangue a direção que apontavam as lanças e braços de sujeitos altos e fortes. Eram os prisioneiros dos bárbaros, seriam dali a pouco sacrificados como cordeiros de abate para as divindades irascíveis daquele povo rude. Que pode o homem fazer pelo ódio e pelo medo, e que pode o homem fazer contra o ódio e o medo?

   A decisão do homem ao meu lado me espantou – ele fez menção de abandonar nosso ponto de vantagem e atacar os bárbaros sem cerimônia. Não o detive senão a muito a custo: ele estava tomado pela vontade inegável de derramar mais sangue, e isso não me pareceu bom em um companheiro de viagem, mesmo que um tão fugaz. Disse-lhe do caminho que teriam de fazer até voltar às montanhas, de como estariam lentos, porém mais numerosos, e de como seria mais fácil emboscá-los nas alturas. A cada palavra, contudo, amaldiçoava-me um pouco por tê-lo trazido até ali, enquanto satisfazia-me conhecer a violência que nele se mostrava abertamente e sem detenções.

   Se andamos durante hora até chegar ali, pareceu-me tempo mais infindo aquele que levei para dissuadi-lo do ataque imediato. Ao fim, minhas palavras o dobraram. Ele aquiesceu. Ele sentou-se. Ele pensou. Fiz outro homem aquiescer, parar e pensar. Que mais posso querer dessa vida senão esse tipo de ato? Agrado os inúmeros futuros por vir ao permitir a reflexão necessária para que o melhor dos destinos tome forma.

   – Você está me manipulando para que salvemos o maior número possível de miseráveis das mãos dessa gentalha. – disse-me ele enquanto eu mesmo já estava absorto em reflexão.

   – Miseráveis, sim, mas miseráveis inocentes. Não é de meu feitio ser cruel como parece ser para ti. – e eu pus-me diante dele de modo a não ocultar minha decisão. Ele não podia sentir medo ou infirmeza em mim.

   – Guarde sua língua na bainha da boca. Vamos às montanhas então, seguindo esses patifes. Quanto mais deles tombarem por minha mão, mais sereno ficarei sabendo que os refugiados do norte não serão massacrados por eles.

   Eu aproveitei e olhei mais uma vez no fundo dos olhos daquele homem, cavando-lhe a mente com dons insuspeitos. Não havia uma alma ali, onde devia ficar – por trás daquela máscara de carne e osso e sangue que todos vestimos. Vendeu-a? Perdeu-a? Nunca a teve?


   Dali a três horas, quando vimo-nos nas estradas estreitas e geladas das montanhas, eu obtive minha resposta quanto à natureza da alma do homem que eu já guiava pela região. Sua alma não era nem faltante, nem quebrada, nem mascateada. Era negra, invisível aos meus olhos, que são acostumados a perderem-se na escuridão. E o que consegui ver além encheu-me de apreensão, asco... e pena.