domingo, 25 de maio de 2014

De Porre

Quando a porta bate na aorta
A gente finge que se importa.
Mas dor só alguma dor exorta;
Ser sincero demais: entorta.

sábado, 17 de maio de 2014

"What though the radiance which was once so bright", de William Wordsworth

What though the radiance which was once so bright
Be now for ever taken from my sight,
Though nothing can bring back the hour
Of splendour in the grass, of glory in the flower;
We will grieve not, rather find
Strength in what remains behind;
In the primal sympathy
Which having been must ever be;
In the soothing thoughts that spring
Out of human suffering;
In the faith that looks through death,
In years that bring the philosophic mind.



RIP the illustrious souls: Gone, never forgotten

DIO
Sr. Felício

sexta-feira, 9 de maio de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Três, Parte III


Nasceu no olvido de dores.
Cresceu no cuidar dos irmãos.
Concebeu sob o céu estrelado.
Amou nos salões que sonhou.
Lutou na guerra com sonhos.
Partiu sob olhares saudosos.
– Inscrições no memorial do túmulo de Mana Fiogris, em Falssal, sul do reino de Albeia.


U
ma moça, talvez não sabendo ela o tipo de homem que eu era, perguntou-se em meio a muito quanta gentileza cabe no homem. Eu nunca parei para pensar uma boa resposta, e ao escrever estas linhas, tendo passado tantos anos desde que dei-me conta do olvido do pensar de tal resposta, ainda encontro-me em oblívio deleitoso e suspeito porque inocente demais: Não quero pensar sobre isso, porque pensar é ter que chegar pelo menos perto de uma resposta, e isto não quero. Não me apraz. Não me traz paz.

Não quero saber se nos corações, ou em qualquer outro local que digam haver um espaço para emoção e sabedoria, há um limite para quantidades de boas ações que auxiliem aquele que necessita voltar a crer na bondade da criatura humana. Em muitas linhas que escrevi denunciei nossa vileza, vilipendiei nossa caridade pois veste-se com trapos um monstro egoísta e falso, e mascara-se com ouro um mentiroso. Em muitas linhas que escrevi expus ao mundo a face má e cruel das gentes que somos, e como são maus e indiferentes os nossos corações.

Mas nas linhas que os olhos agora respeitados leem, ou nas palavras que ouvidos amigos captam, fique aqui registrado meu mais profundo amor e respeito pela dignidade, pela bondade e pelo altruísmo humano: falhamos miseravelmente em muitos momentos no ato de cuidar de quem se deixou dobrar por dores e tristezas, pelo fardo fatídico do tempo e prende-se pelo grilhão de um destino, mas há tantas horas para tantas almas que em sua grandeza demonstram abnegação e intensa generosidade de tal modo e com tamanha força que concluo do alto da segurança de meus anos de andança e pensamento que a caridade é um artifício dos fracos e ignorantes, mas uma virtude conquistada dos fortes e uma arma daquele que na vida é campeão.

O afogado não ensina o marinheiro a remar e cuidar das velas; o morto não pode falar ao aprendiz de boticário sobre cura e veneno. O faminto, seco em sua pele, não pode ensinar o pobre a fazer pão, e nem o cego pode ensinar a astronomia. Não se pode dar aquilo que não se tem, e por esta verdade vivem as civilizações desde muito cedo no mundo. Mas também não se pode dar aquilo que não se é, aquilo que não se conquista, aquilo que não se defende. O rei bom cede a parcela aos humildes, e dá um potro o fazendeiro generoso a um visitante agradável. Dá-se bons conselhos a quem tem a boa fé de os buscar, e oferece-se apoio em mão e braço forte ao que demonstra a Inteligência de a isto recorrer.

É da sorte do homem ser aquilo que defende, dar aquilo que é. E porque aqueles homens-monstro eram homens também, vi neles tanta crueldade e tanta maldade que me foi de pouco espanto ver entre eles presteza em ser hospitaleiro, na diligência de serem gentis. Eu adentrara os domínios de Kor-i-Sûm'Bar sob suas juras de hospitalidade, e tão logo eu cruzara os portões de seu grande forte, eu estava posto diante de uma tenda que se estendia com tantas outras ao longo da borda de um aclive que vigiava a praça baixa do grande forte.

O vento que cortava a colina era intenso e impiedoso em sua corrida contra o calor do sangue, mas eu detive Azandre do lado de fora da panaria ao puxá-lo pelo ombro e dar-lhe meu aviso:
“Falo agora contigo como se nem fosse meu aprendiz, meu favorito nas horas de reflexão e de agir com tato. Farás bem em ser diplomático com tua própria dor, meu caro Azandre, porque se aqui fora o frio corta a carne e gela o osso, a cena que há lá dentro cortar-te-á a paz e roubará o calor do teu coração.”

Ele não fez o esforço necessário para me entender, mas vi que tentara. Era obediente e espero o suficiente para ter tentado fazê-lo, mas estava demasiado desesperado para lograr êxito. Ele correu para dentro da tenda, e enquanto ele estava lá eu perguntei ao melhor curandeiro daquela gente o que acontecia:
“Como chegou até vocês uma mulher e como ela foi ferida?” e apertei o cabo da lança para advertir que não era apenas por curiosidade que eu perguntava – eu exigia verdade. O homem-monstro olhou com desprezo frio o meu gesto mínimo de ameaça.

“Podes pensar que atiramos nela ao saquear uma vila ou ao deixarmos que ela se aproximasse demais de nossas terras. Mas não. Kor-i-Sûm'Bar em pessoa encontrou-a jazendo no frio das colinas, seus lábios esfolados pelo vento e pelo choro. Ela estava só no ermo, e tememos que fosse bruxa que conjura encantos para obter sustento onde não há suprimento. Flechada ela já estava, e o veneno em sua flecha é desconhecido. Guardamos a seta matadora para que tu mesmo pudesses identificar seu fabrico.”

Virei-me para a vista do pátio e observei apenas a lonjura de minhas próprias lembranças. Assuntos de flecha e veneno, de bruxa e de choro... palavras que carregaram o foco de minha mente sempre presente para longe.

Eu, com cada pelo de meu corpo sendo ainda escuro, em nada lembrando a prata a mim dada pelo tempo, cheguei a uma vila qualquer em um reino úmido e nublado. Eu, com a companhia vazia de aprendizes ou guardas, errando sozinho pelos caminhos que mal e mal ainda buscava forjar, encaminhei-me a uma hospedaria que, naquele reino, era também prostíbulo. Lá me foi oferecida refeição decente, o banho revigorante e, como eu dera um pagamento alto em moedas estrangeiras, uma moça muito nova e de cabelos tão negros que se os corvos pousassem em seus ombros brancos eu os diria gralhas cinzas.

Mana era seu nome. Órfã desde que sabia responder perguntas, única responsável pelo casal de irmãos, crianças que adotara conforme cumpria a tarefa autoimposta de amadurecer. Isso porque o tio e a tia, únicos parentes vivos, forçavam-na à prostituição para pagar sua estadia.
E que flor rara era seu coração naquele charco imundo em que fora transplantada. Ela era um fino fio de pele boa e sedosa sobre a ferida infectada. Era um braço de água clara na poça estanque e suja. Um brilhante lapidado na pedraria ruim. Seu coração era sofrido, e sua mente acompanhava isso. Era fraca da vontade, sem esperança e convicção para ver além e pensar no avançado dos planos, mas era de extrema humanidade no ato de se doar. O fazia até fisicamente porque ela se deixava vender por ela e também pela irmã, criança demais, no pensamento dela, para ser dada aos passantes como prostituta crescida.

Eu ouvi sua história. Seu nome era Mana. Dei a ela a refeição que viera para me servir, e dei ao corpo cansado dela as águas do banho que ela preparara para mim. Na cama em que ajeitara os lençóis para me satisfazer, eu a satisfiz com toda a urgência e todo o temor em meu ser em ser capaz de dar-lhe paz e prazer. Apavorou-me a ideia de não a deixar com a satisfação plena, ainda que fugaz, do corpo seduzido. Eu me entreguei a ela de tal modo que seu corpo faminto não objetou em aceitar, de tal modo que sua humildade não achou educado recusar, de tal modo que sua gentileza viu-se honrada em aceitar e abusar.

Eu parti, e ainda era eu incapaz de libertar aquela jovem de seu sofrimento. Estava eu em um momento de minha vida em que minha alma estava eclipsada, a um tempo em que toda a Arte me abandonara quase que por completo e que eu não me lembrava de quase nada do que eu era ou poderia ser. E ela me fez prometer cumprir minha promessa como se fossem necessários sua ameaça e seu choro para que eu de fato o fizesse: Levei Bruna e Irgeu comigo, um em cada uma de minhas mãos, para longe daquele lugar horroroso. A menina eu deixei sob a guarda das Rosas, e ela saberia usar o aço de tal modo que jamais ousariam dobrar a ela como dobraram sua irmã. O menino eu levara para Fárgia, e ele ficou no colégio naval e mercante do reino após assinarem ali um contrato em que se comprometiam em fazer dele homem competente ou, pelo menos, homem bem-suprido de chances de sucesso.

Demorou muito até eu saber que Mana estava grávida. Ela bebia o chá de sombra-da-noite e comia o micelo das capas-de-monge, mas engravidara. Eu a impregnara. Ela baixara as resistências todas de seu ser quando eu espraiei meu corpo de homem sobre seu corpo de mulher, a onda deitando-se na praia, e de tal modo foi sua entrega que minha semente chegou ao foco feminino onde reside em forma de carne a esperança das vidas possíveis. Eu a impregnara. Ela o sabia: assim que ficara grávida, expulsaram-na do prostíbulo seu tio e tia. Mas ela sentia a criança ainda diminuta em seu ventre a guiando nos pensamentos e nos sonhos, e a todo instante rimava em sua mente de modo que suas palavras a levassem em meu encalço.

Encontrou-me, enfim, quando eu voltava para o norte. Já então ela tinha o volume da nova vida sob o preto apagado do vestido fino e surrado pela viagem. Uma jovem mãe, sozinha e abandonada de todas as maneiras possíveis senão pelo seu filho que ainda não viera e pela esperança que acende a menor vela no salão escuro da vida.

Ela era tão jovem. Eu tinha minha alma apagada, não sabia nem mesmo quem era o Varyn de que todos falavam à minha passagem. Mas no meu desmemorio eu cuidei dela. Fiz o parto de nosso filho em uma choupana pobre e meio abandonada, numa noite fria e estrelada. Houve tanto encanto naquele ato de nós três nos abraçarmos que os feitiços mais velhos em mim se partiram e novos foram feitos. Eu recobrei minha memória e Mana estava mudada, algo de mágico entranhara-se nela, preenchendo com a essência mais pura e forte da Arte as lacunas que a dor e a tristeza haviam aberto em sua alma. Foi o dia em que ela parou de envelhecer e em que ela encontrara toda a força que precisava para deixar definitivamente a vítima tornar-se a heroína de sua própria vida.

Eu me lembro daquela noite, quando ela e eu ficamos abraçados a Virgílio, nosso filho. Uma criatura tão pequena não podia ser tão perfeita. Mas era. Nascera das dores tristes porém apaziguadas de Mina, e de meu desmemorio confortado pela confiança. Se algum dia houvesse mal naquele menino, seria suprido pela mão randômica mas incomensuravelmente sábia e certeira do destino. Ficamos em silêncio no ato de ver o filho sugar do seio da mãe o sustendo branco para a vida, e aquele silêncio estrelado durou horas, o resto da noite inteira. Foi a noite mais feliz de minha vida.

“Ela o chama, Varyn, meu mestre.” E Azandre se retirou com passos destroçados e o rosto desatado em choro de irreparações.

Eu passei pelo couro e pela pele da tenda, e foi como se eu entrasse no passado perdido. Confundi-me: Entrava eu no futuro de dor.
Estirada sobre pelegos no chão, uma mulher em trajes negros amargava os últimos suspiros sobre um xale roxo. Ela ainda era tão linda, imutável em sua beleza encantada. Fios de prata misturavam-se ao negro de seu cabelo, como se fosse o trabalho de aranhas fiandeiras sobre o próprio céu noturno. Se um dia conhecemos nosso filho, ela superara as dores do passado e conhecera o amor sincero e avassalador em Azandre, um pupilo, e desde cedo eu sabia que aquela união seria verdadeira, porém passageira. Ali findava-se, completo na fatalidade, outro agouro meu.

“Depois que nosso filho morreu, ainda tão cedo, eu pensei que jamais eu sentiria de novo meu peito queimar com a força da vida.” Ela sorria aliviada porque sabia que podia falar comigo direto em pensamentos, pois sua voz já havia morrido dentro do peito sofrido.

“Mas conhecestes Azandre, que mostrou-te amor desde o começo do amor. Foi diferente do que tiveste de mim. Tiveste dele e nele a promessa de uma vida tão boa e feliz que pareceu-te um crime pensar que tal felicidade pudesse um dia fazer-se maior.”

“E ainda assim, meu caro, em diversos momentos fez-se maior. Vi Bruna trançar nos cabelos negros as fitas vermelhas e brancas das Rosas, e sei que ninguém jamais a ferirá mais do que ela pode ferir alguém. O aço canta nas mãos dela. E Irgeu cruza o mar interno de tal modo que as águas entregam-se a ele como amantes. Lembro-me bem de quando ele atracou trazendo pela mão sua esposa, mãe de seu filho. O parto dela foi sobre as ondas mais altas do interno. Foi belo.”

“É belo porque ainda ocorre. São fatos que conhecem ainda agora o toque do tempo quando este passa em forma de presente.” E como falávamos de mente quieta para mente quieta, em nossos sofrimentos, tudo era silencioso. Abri para ela janelas no espaço, e através delas ela pôde ver sua irmã, alta e taluda, forte e sagaz, praticando contra o ar as voltas de sua arma de aço dobrado, e no olhar duro e resoluto dela brilhava a centelha inegável da liberdade e da confiança, de tal modo que Mana viu-se vingada. Nunca fariam dela a mulher vítima e submissa que um dia Mana tivera de ser.

Pela outra janela ela viu Irgeu negociando a compra de arpões novos, mas ele conhecera uma mulher que barganhava ainda melhor que ele. Onde estava o sobrinho de Mana a janela não mostrou, mas era uma criança forte e feliz, isso sabíamos.

Fechei aquelas janelas porque ela começou a chorar, e nem seu choro produziu som.
“Morro agora, Varyn. Espero haver mais do que sombras e esquecimento na vida tumular, pois muito gostaria eu de rever Virgílio, nosso filho partido cedo.”

Tomei a mão dela na minha.
“Não há mais nada que prenda você a um mundo sofrido, Mana. Tudo aquilo pelo que você lutou foi conquistado. Não há derrota em você. O veneno e a flecha simplesmente servem de desculpa. É hora de aceitar que não há mais batalhas para serem lutadas. Nada mais para se garantir. A felicidade de seus irmãos, a liberdade de sua alma e de sua carne, a felicidade de seus dias... Tudo isso veio. Não há vergonha ou pesar em partir.”

“Queria ter tido tempo de carregar mais vida dentro de mim. Deixar-me impregnar por Azandre. Eu teria feito um filho lindo, ou a mais bela e forte das mulheres deste mundo. Em meu ventre eu teria trançado a carne de tal modo que a criança seria desta era o maior legado... Mas meu ventre perecerá envenenado, como todo meu corpo...”

“Mas não como sua alma. A dignidade não morre envenenada, nem a liberdade se fere com flechas. Você parte inteira, íntegra em cada componente.”

Ela cessara o choro. Sorria. Preparava-se para partir. Que raro é este, o dom de preparar a ida derradeira. Eu devia sair.
“Você é gentil, Varyn. Não sei dizer quanta gentileza cabe em você.”

Beijei-lhe a testa porque morria com ela a última parte viva de minha memória mais preciosa, mais amada. Levantei-me, sorri também.

Azandre ficou com ela na tenda. Seria ele a testemunha de seu último suspiro.

O vento invernal estava mudo em minha cabeça. Eu escutava apenas minha voz, mas ainda falava apenas nos meus pensamentos.

“Mana foi flechada.” E eu tinha em minhas mãos a flecha que roubara a vida dela.

“Ela foi emboscada na carreira urgente que fez em vir até aqui para avisar a mim...” E eu vislumbrei a armadilha que fizera ela ter de sair da segurança para vir até mim.

E tudo que pudesse ter som ficou mudo.
“Ela será vingada.”

Pensei comigo que a pira dela seria uma chama singela diante do fogaréu que engoliria seus assassinos.