sexta-feira, 28 de junho de 2013

As Rosas e o Punhal, Crônica I, parte IV


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Preâmbulo
Meu coração não conhece a paz. Apenas lembra-se da inviolabilidade, não podendo reconhecer esta porque eu era criança ainda quando meu coração era inviolado. Quando passei a entender das coisas do mundo, crescida, já estava violado o meu coração. Colocaram nos meus cárdios músculos mais coisas do que se pode aceitar no resto da carne – colocaram pregos, colocaram dores, muitas, e colocaram grilhões, estacas de madeira, o gume frio de várias lâminas e balas com pólvora queimando. Ele bate furado desde tão cedo em minha longa vida que não posso nem imaginar nas minhas noites mais embriagadas o que é ter um coração inteiro.
O pior, contudo, não foi essa sucessão de violências assaltando-me a casa do meu sangue. Não, nem posso dizer que tudo isso o enfraqueceu para o que sofro agora, pois meu coração é incólume como pode ser incólume uma ruína do mundo antigo. Digo que o pior foi a última coisa aqui, no meu seio, colocada. Eu sou lembrada disso, desnecessariamente, quando debruço-me ousadamente sobre o parapeito do castelo e vejo os homens lá embaixo acampados, esperando minha morte. Eu sou lembrada disso, desnecessariamente, quando olho pela janela aberta das câmaras aqui frias e vejo um exército ao meu redor.
Colocaram ausência em meu coração, e essa é a pior das dores que um peito pode sofrer.
– Cartas da Dama no Castelo de Quartalonge, décimo sétimo dia do cerco

V
i tantas coisas aterradoras, assombrosas, pavorosas e asquerosas que é, devo dizer, muito difícil me aturdir ou causar incômodo. Incomodam-me as moscas, incomodam-me os tolos, incomodam-me os imorais, mas não me incomoda a cena terrível da ferida aberta, do sangue perdido, das vísceras espalhadas. Mas o que Elão de Varraquêz, aquele estranho homem do norte, fizera aos bárbaros, confesso, causou-me inquietação.
   Tombar pela espada ou pela lança, flechado até, pode ser um fim mais significativo do que tombar pelos dentes do inimigo. Não que eu tenha me apiedado daquela escória, pois não desejaria a eles fim diferente da morte, mas a forma como acontecem os crimes e os atos são de uma esfera completamente apartada dos crimes e dos atos em si, uma vez perpetrados. Analisa-se a carne tenra do cordeiro de modo em tudo diferente do modo como se vê o animal sendo abatido pelo cutelo impiedoso. Vê-se a pérola com apreço, encara-se a ostra gosmenta com desprezo.
   É da sorte das pessoas refletir a morte, embora seja da de poucas de fato realizá-la. Por isso as guerras sempre dão errado. Mas eu não sou um homem qualquer, e tão rápido quanto me enojou a cena da degola daqueles bárbaros pelos dentes de meu sedento companheiro de viagem, igualmente rápido ocultamos seus corpos por trás de pedras altas e cobrimos seu sangue ruim com a neve que caía aos montes do céu de inverno.
   – Tu nem mesmo usas do ferro para tirar a vida dos inimigos – disse-me Elão, e ele de repente mostrou-se mais aberto á conversa. O sangue dos bárbaros aquecera-lhe a garganta de um modo todo especial que lhe aveludou a voz, tornando-a amigável e perigosa. Também ele parecia mais saudável, o viço tomava conta de sua face de maneira muito sutil. Continuou falando-me – Eu vi como tiraste dos bárbaros o sangue e como raspaste dos ossos deles a carne fazendo flutuar as pedras como se fossem um turbilhão de facas.

   – Eu confio na minha mão que maneja a espada com igual afinco com que confio em meus dons de feiticeiro. Acaso negas que uma muito bem completa a outra no ofício de vencer?

   – Tratemo-nos por você.

   E ele fez uma reverência deveras cortês e refinada diante de minha pessoa. Eu retribui, um pouco fria e duramente.
   – Vamos, lá vem aqueles cuja vida deve findar. – e dizendo isso eu fiz Elão recuar para o alto de um rochedo de topo chato. Retirei-me para perto dos corpos dos bárbaros tombados, ficando oculto por trás das pedras.

   Por sortes Elão tivera a sede de sangue momentaneamente aplacada. Vimos róis de bárbaros fortes passando diante de nossos olhos, desfilando com seus espólios – traziam as quinquilharias, ferramentas e armas roubadas das terras planas, e traziam filas de prisioneiros como se trouxessem arrastados peixes na vara ou bestas caçadas.
   Elão certamente pensou como eu e resolveu não atacar. Era suicídio fazê-lo. Uma centena e meia, quase, de inimigos que com as forças dos braços e mãos nuas poderiam quebrar um osso.

   Mas toda aquela turba movia-se a velocidades inconstantes, de modo que mais um grupo de bárbaros seguiu a centena e meia que passou, sendo esta o grande grupo. Era um grupo de saqueadores atrasado, e vinha com passo apertado, esperando alcançar os demais. Encontraram, no caminho, dois estranhos barrando-lhes a passagem: um estranho tinha vestes castanhas e colete de couro, capuz sobre a cabeça ocultando o rosto com sombras, e o sabre estava na mão. O outro era eu, as roupas de couro negro contrastando com a neve.
   Os bárbaros disseram algo em sua língua. Falaram de morte e surpresa, de mais morte e diversão. Algo sobre audácia. Nunca me preocupei em aprender a língua de uma estirpe que eu sabia que logo estaria extinta e nada deixaria de impressionante como legado para o mundo.
   Carregaram, largando prisioneiros e saque. Vieram com machados e clavas, as armas de preferência daquela gente. Elão foi ao seu encontro enquanto meu poder se empilhava, crescendo, e minha visão focava-se em meus inimigos de tal modo que só minha mente conseguia perceber o resto do mundo.
   E no espaço de tempo em que Elão decepou os braços dos bárbaros com uma força profana, fazendo seu aço afiado partir ossos com facilidade estranha, eu estava atento às torrentes inconstantes da Magia, a Arte falava-me por musas de fogo e vento que me agitavam as ideias e acariciavam-me as mãos com seus seios de chama e sutis ventres de vendaval.
   Ordenei que a escória queimasse. O sangue nas veias daquela gente ardeu como água do caldeirão, e ferveu suas veias, ferveu sua carne, esquentou seus ossos melhor que qualquer casaco. A pele descolava-se do músculo de maneira a revelar a humanidade frágil por baixo dela. Quantos assim tombaram somavam dezena.
   Sei que Elão conjurou-me um olhar de lamentação pelo sangue perdido. Ele precisava daquilo. Então tirei Altala da bainha. Seu ferro negro tinha tanta sede quanto meu companheiro de jornada, e as runas marcadas em sua folha faiscaram o vermelho do momento da sua forjadura.

   O resto daqueles ímpios caiu assim por nossa perícia. Não foi por menos que deixamos seus insultos, que proferiam aos berros salivantes a todo momento – cortamos línguas e cortamos braços, cortamos pescoços e perfuramos corações. A pilha de agonizantes seria de melhor valia para ver a lonjura do que o rochedo de onde Elão descera para pôr-se ao meu lado na estrada diante dos bárbaros que antes acreditavam ser possível seu regresso para casa.
   Dispensei um olhar de soltura aos prisioneiros dos bárbaros, e uma vez sem suas amarras fugiram pelo mesmo caminho que antes o levava ao abatedouro.

   – Os patifes são muitos. – disse-me Elão, olhando montanha acima.

   – Sim, as tribos todas estão reunidas para o solstício. É inverno nas montanhas, mas sabem ser verão no resto do mundo.

   – Sei que há um plano em sua mente. Sei que envolve morte e esforço. – e Elão abaixou-se para apanhar um dos bárbaros que agonizava sofregamente – Beberei à nossa vitória, e então seguiremos montanha acima.

   Dei as costas para a cena sugerida pelos barulhos de pele se rasgando e gritos de horror sofrido. Caminhei montanha acima, sabendo que logo Elão poderia me alcançar.

   Se era uma hecatombe que os bárbaros queriam ter, eles a teriam. Aliás, desde minha subida às montanhas, ume hecatombe continuariam tendo.


   Eu só não queria ter encontrado o inferno no alto das montanhas...

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