sexta-feira, 14 de junho de 2013

As Rosas e o Punhal, I, parte III

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Preâmbulo
A filha de minha irmã já era velha quando eu nasci. Como pode, deviam se perguntar os meus vizinhos, como pode um casal de velhos cuidar de uma criança? Como pode uma velha de útero empoeirado dar a luz e como pode ela amamentar com um seio murcho que já devia ter secado? E o velho, como pode tê-la impregnado quando mal aguenta levantar uma enxada ou forcado? Mas eu fui bem cuidado, sim, e meus pais velhos me deram o que restava de amor neles. Morreram, logicamente, bem antes do que o filho pode esperar ou aguentar ver os pais morrerem, mas não fiquei mal no mundo. Minha infância fora singular, e minha juventude era, para mim, então, um espetáculo de possibilidades que desfilavam diante de meus olhos, as mais finas e caras cortesãs que, dispensadas pelos nobres falidos, ofertam seios e risos a mim, diante do rei.
- Elão de Varraquêz, Memórias



M
atar muitos homens é fácil. Matar um homem é fácil. Matar é fácil. Basta fazer a ponta da lança aparecer do outro lado do peito do oponente e o serviço está, diga-se de passagem, feito. Não que eu seja dado à matança, mas Varyn é conhecido também pela mão inescapável. Jamais tive de poupar um inimigo miserável em tempo de guerra, nem tive de deter minhas armas diante de um oponente infame. Conheço a misericórdia, contudo, aprendi-a muitas vezes em minha vida embora tão pouco eu tenha sentido dela. Sentir e sentido, inclusive, são palavras muito mais malignas do que a ideia inglória e o pensamento mórbido podem supor. Há tempos e mundos em que a piedade é o pior dos castigos ou o primeiro passo para a derrocada maior, quando a morte limpa é a única portadora do alívio verdadeiro.

   Mas não era o que acontecia em tal ocasião. Matar os bárbaros que aprisionavam os aldeões de Auglandoc tornara-se, em algum tempo de andança silenciosa, uma questão maior do que minha mente podia supor. Eu sabia que estava preparando-me não para um banho de sangue contra os rudes e vis habitantes das montanhas, mas para um passo além do limiar que separava minha vida antes da surpresa de minha vida depois de aceito o desafio – os primeiros passos, eu já havia os dado, e eu estava aceitando aquele desafio cujo vulto tempestuoso ainda era apenas uma imagem fugaz em minha mente.

   Nada comparada, esta imagem fugaz, com a bem distinta imagem de dezenas de homens armados, da estirpe de maior altura, atando com cordas seus prisioneiros sem distingui-los das ovelhas e cabras que roubavam também. Estavam juntando os espólios de outra vila queimada. Levaram somente os plebeus e trabalhadores braçais que ali se abrigavam – o nobre, dono daquela vila, este eles queimaram vivo e amarram-lhe o corpo em uma estaca que ergueram no meio do terreno incendiado.

   Quando os bárbaros finalmente aprontaram sua turba para partir em direção a um novo destino, eu olhei para o homem ao meu lado. Ele os observava com os olhos de um corvo, ou de um lobo que espreita. Ele queria sentir em sua própria pele o calor do sangue dos bárbaros como se isso fosse aplacar aquele frio imenso que lhe assolava a alma de tal modo que eu podia senti-lo enrijecendo-me o senso de tranquilidade. Fazia inverno naquele homem, gelo e frio silencioso estavam soterrando o vazio onde devia ficar sua alma exposta.

   – Sabe que não sou mais homem do que tu, que também não é dos mais normais. – Disse-me ele, para minha surpresa. Mas minha face é quieta e sendo assim em nada imita minha mente ou meu coração, que foram pegos despreparados por tais palavras.

   – Tu vês em minha mente algo que, de fato, não fiz questão de esconder. Como podes ler-me os pensamentos com essa facilidade?

   – Diante do perigo, o homem transcende a humanidade. Temos nós, os dois, pouca humanidade para transcender, pois grande parte do que somos não é humano que chegue para ser humanidade.

   As palavras dele teriam confundido a muitos, mesmo a meus pupilos, tão bem treinados, mesmo a tantos homens e mulheres ilustres e eruditos a quem conheci em anos de andança. Para entender aquelas palavras era necessária uma distinção das coisas e das pessoas que não se tem pela leitura, nem se ganha pela audição, tampouco se adquire pela barganha. Eu sabia bem do que falava ele porque muito eu sofrera, porque muito eu andara, porque muito eu perdera. As revoluções da roda do mundo atropelaram várias vezes meu coração, soterrando-me as dores nos sulcos que abria para continuar as evoluções do tempo.
   – Eu sou um mudador, é verdade. Mudo coisas e pessoas, e aquilo que vi e fiz me difere tanto dos outros homens que entre eles sinto-me um intruso, um estranho, um passante. Por que tu sentes isso, homem do norte, e porque não vejo ao certo o que há em tua alma, que nem parece haver?

   – Tu és Varyn. Que outro sábio da Convocação dos Vários Caminhos andaria assim, sozinho e sem garbo, trajado como viajante comum, sem medo da estrada? Tua fama é grande, ó mago, e vai até onde o vento norte não conhece paredes que lhe barrem a corrida, nas terras selvagens onde o jugo do inverno parece infindo e onde é crime acender fogueiras. Sabes tu quem eu sou?

   – Tudo o que entendo de heráldica e de história não me permite reconhecer-te. O que queres em troca de me dar teu nome?

   – A ajuda em minha mais nova empresa: a de ceifar a vida de todos esses bárbaros que agora vão. Olha-os atravessando a ponte que logo vão derrubar.

   Eu considerei a oferta do homem com o misto da intriga e da indiferença. Ele não era um homem comum, mas não me despertava tanta curiosidade como, por um momento, eu esperava que o tivesse feito. Derramar sangue de bárbaros não era minha missão ali, e já não era de minha vontade inquieta tudo aquilo de caçar e libertar pessoas inocentes das mãos rudes da violência.

   Mas em minha mente ecoavam sussurros de futuro e gritavam para meus sentidos mais quietos as vozes do portento e do augúrio. Varyn, o agoureiro. É assim que me chamam aqueles com mais estudo e mais coragem, com mais visão e impulsividade – as virtudes que mais estimo. O futuro me falava como uma amante sussurrando uma jura dúbia de amor ao pé do ouvido. Se eu seguisse aquele homem de alma marcada eu estaria pondo-me perto de um destino de tão grande tribulação e possibilidade que meus feitos ecoariam durante anos a fio sobre terras mais vastas do que a vontade dos homens de conhecê-las sempre fora.
   Conhecendo-me como só eu conheço, vi-me diante de uma possibilidade que eu não podia deixar passar.

   – Eles vão agora para o leste. Buscarão as demais aldeias de pescadores no pântano, nos poços de argila. Voltarão para suas montanhas em pouco tempo, pois executarão seus rituais profanos antes mesmo do ocaso deste sol. Eles celebrarão o solstício, exaltando seus deuses do sol e do sangue com sacrifícios desde a primeira hora do novo dia até o ápice do sol de verão. Vamos esperá-los nas montanhas, por onde terão de passar aos poucos por causa das passagens estreitas.

   – Para as montanhas, então – dizia-me ele, de novo. Os bárbaros sanguinários foram para o sul e depois para o leste enquanto nós fomos para o norte e depois para o oeste. Nosso reencontro, contudo, não tardaria, e em nada seria agradável.


   Matar é fácil. Se um dia duvidei disso como penso ter duvidado, naquele tempo e neste eu padecia de certezas. Não havia espaço para a dúvida entre minha mão e o punho da espada ou a haste da lança, nem havia espaço para a dúvida no intervalo entre o gume e o pescoço ou o peito de meu inimigo. Altala, a lâmina que matara tantos reis, era a espada que em meu cinto lembrava aos poderosos – quando eu punha-me diante deles em audiências e missões como porta-voz – que mesmo a vida dos soberanos é frágil e que mesmo seu sangue vaza fácil.

   O que estava me causando apreensão e estranhamento enquanto estávamos no frio das montanhas, esperando os bárbaros atravessarem um desfiladeiro ladeado por altas escarpas, não era a ideia de ter de combater uma força de bárbaros tão grande como aquela que viria. O que me causava estranha apreensão era a sanha daquele homem estranho em matá-los tão avidamente; e o que me assolava a calma habitual com estranhamento apreensivo era a força que ele estava fazendo, cada vez mais visível porque crescente, de não desembestar com raiva para cima de mim. Ele queria matar, e esse desejo o sufocava, enchia-o de desespero como se alguém o impedisse de respirar ou o privasse de água e alimento quando tinha sede e fome.

   Ouvi passos. Ele os ouvira antes. Senti o cheiro de suor seco e sangue cru. Ele os sentira antes. Os bárbaros vinham pela passagem, seus cheiros e ruídos atormentavam meus sentidos e a paisagem.
   Doze. Era um grupo pequeno, apenas, precediam a vasta hoste que descera das montanhas porque, ao certo, tinham mais pressa em voltar e menos desejo em puxar os prisioneiros. Não vinham apressados pela falta de saque, contudo, pois atrasavam-lhes quilos de tesouros roubados nas vilas.

   Apertei uma de minhas mãos no cabo da espada. Estávamos em um desnível que nos ocultava perfeitamente de um grupo tão pequeno e despreocupado. Eles estavam confiantes, jamais esperariam um ataque em suas próprias terras. Ainda mais de modo tão selvagem como estava por vir.

   Pois antes mesmo que uma estratégia se formasse em minha mente, antes mesmo que eu preparasse os músculos e tendões para a batalha, veio aos olhos de minha mente uma visão escurecida pela fatalidade – a morte sorria sobre aquele lugar, ela esticou um braço preto e longo em direção aos presentes e fez seu gesto pavoroso de quem chama para perto de si um número qualquer de futuros cadáveres.

   Meu companheiro de viagem estatelava-se sobre os bárbaros com a espada em punho. Ele tinha no rosto a cólera de uma besta, a frieza de um assassino e nada de seu bom senso, a afoiteza do louco e a sede de um condenado. Logo ele deixou a espada enterrada na carne dura do bárbaro mais alto, os outros cinco que ele deixara de pé ele estava matando com os dentes – arrancava-lhes a carne da garganta com mordida tão pavorosa que não penso descrever nem em voz.

   Tive de fazer muito pouco, mais o tive, para que pudesse saber o nome daquele homem desgraçado. Eu manipulei os nomes e as vontades da pedra e do fogo, e fiz lascas do granito das montanhas girarem tão rápido pelo ar que atravessaram os bárbaros que ainda restavam como se fossem flechas contra o papel. As lascas afiadas flutuaram acima do chão e fizeram dos homens que restavam uma nuvem indistinta de sangue e pedaços que espalharam-se pela neve assim que o furacão de pedra e vontade mais forte desfez-se quando cessei minha encantação.

   O meu companheiro novo de viagem estava me observando. O capuz encobrira metade de seu rosto, e pela sombra deste capuz escapava um brilho mortiço e diabólico de um dos olhos, que estava à mostra. Sua boca, seu queixo, seu pescoço, lavados na água vermelha que correra nos canais de seus inimigos mortos, armavam-se em um sorriso maníaco e apavorante por causa do modo como seus dentes tingidos de vermelho apareciam enquanto falou-me:
   – Sou Elão de Varraquêz. Vim do norte e para o norte logo pretendo voltar. Não agora, há mais bárbaros para matar. Obrigado pela ajuda.

   Eu dera o passo derradeiro em direção a um novo capítulo no livro de minha vida. Aquele passo do qual não há escapatória – ou se dá esse passo, ou se retrocede por muito tempo. Eu estava, então, diante de uma nova jornada.


   – Limpe sua boca ao falar comigo – Disse-lhe eu, sentindo menos respeito por ele – Procure sua espada e prepare-se. – eu escutava, sabendo assim que melhor ainda ele escutava, as centenas de bárbaros vindo pelo desfiladeiro – Nossos inimigos vem vindo com os prisioneiros. Hora de encarar o riso e o aceno da morte... vampiro.

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