sábado, 8 de junho de 2013

As Rosas e o Punhal - I, parte II

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Preâmbulo
As ruínas estão vazias. Não há mais nada de novo nos mapas do Sul. Os caçadores de tesouro roubam, ou morreram de fome. Eu possuo relíquias, algumas, e todas me são muito estimadas. Guardo-as com o zelo com o qual se guarda em casa os filhos das mazelas da rua e guardo-as com o ciúme com o qual se tranca em pesadas arcas tesouros que me incitam toda a avidez.
Se há tesouros maiores no mundo, não quero saber. Basta apenas qualquer coisa que eu possa ter entre as mãos, sentir o peso, esconder, trancar. Todo o resto está condenado ao silêncio pavoroso e patético que sobrevém a um instante de caos e delírio. A relíquia não – ela nasceu para o silêncio e, entre as idas e vindas das guerras e da história, em silêncio irredutível ela se mantém.
- Varyn



Q
 uem diria que, com o tempo, o silêncio se mostraria teimoso. Eu não sou um homem de palavras, delas não sou companheiro bom. Sou comedido até em meu comedimento, de modo que evito dar sopro àquilo que, se no olvido do silêncio, não faria diferença ou não conheceria a falta que faz. Desse modo, pouco daquela jornada desde o bosque com neve e sangue até as soleiras das portas dos gigantes pode ser narrado por mim, pois houve quase nenhuma troca de palavras entre aquele homem estranho com quem me deparei em minha andança por Auglandoc.
   Disse que saímos do bosque com neve e sangue, onde lá derrubamos os bárbaros, e seguimos em direção às terras planas e quietas perto dos grandes rios, passando pelas pedras enormes e postas de pé por mãos esquecidas e estranhas, pedra em pé chamadas de portas dos gigantes pelos locais. Ali, naquela região, havia um número grande de vilas de pescadores e fazendas, embora a maioria tivesse sido saqueada ou abandonada em virtude dos eventos que antecederam e se seguiram à destruição de Deltim e o morticínio autorado dentro de seus muros.

   Tanto quanto pouco falo, ando muito. Ando em demasia. Perco-me em passos esparsos e confino-me nas vastidões do mundo. Minha alma esparziu-se pelas terras que pisei tal como as tranças de minhas esposas um dia esparziram-se em meu peito, com igual carinho e afoiteza. Assim sendo, acompanhar-me o passo era proeza para o homem comum, que é homem dado a não caminhar e contentar-se com cadeiras e sobejos.

   Mas o homem que eu encontrara no bosque caminhava comigo. Não me acompanhava – de fato, pura e simplesmente, caminhava comigo. Seguíamos lado a lado, coisa que não acontece em minhas andanças a menos que eu o queira. Eu soube no meio da jornada pelas terras quietas que ele seria capaz de ultrapassar meu passo quando quisesse.

   Falamos de portento e maldição, de tristezas e esperança – sempre tão pouca, o luxo dos homens. Foi quando atentei-o, desnecessariamente, para a urgência do silêncio: estávamos próximos a uma vila ribeirinha que ardia em chamas. Desnecessariamente, digo-o, porque o homem passava tanto tempo quanto possível em silêncio. Suas palavras, quando ele as proferia, eram quase sempre para a obstinação que mostrara em querer eliminar os bárbaros que haviam descido das montanhas para roubar gente das terras planas.

   Ouvimos gritos e choro, urros e risos. As criações gritavam e as labaredas rugiam como bestas. Os escombros tomando forma pelo fogo abafaram nossos passos furtivos para trás das pedras que nos ocultaram enquanto observamos o encontro entre as gentes da montanha e da planície.

   Uma fila longa de homens e mulheres atados uns aos outros por laços de corda nos pescoços e tornozelos seguia em desespero e sangue a direção que apontavam as lanças e braços de sujeitos altos e fortes. Eram os prisioneiros dos bárbaros, seriam dali a pouco sacrificados como cordeiros de abate para as divindades irascíveis daquele povo rude. Que pode o homem fazer pelo ódio e pelo medo, e que pode o homem fazer contra o ódio e o medo?

   A decisão do homem ao meu lado me espantou – ele fez menção de abandonar nosso ponto de vantagem e atacar os bárbaros sem cerimônia. Não o detive senão a muito a custo: ele estava tomado pela vontade inegável de derramar mais sangue, e isso não me pareceu bom em um companheiro de viagem, mesmo que um tão fugaz. Disse-lhe do caminho que teriam de fazer até voltar às montanhas, de como estariam lentos, porém mais numerosos, e de como seria mais fácil emboscá-los nas alturas. A cada palavra, contudo, amaldiçoava-me um pouco por tê-lo trazido até ali, enquanto satisfazia-me conhecer a violência que nele se mostrava abertamente e sem detenções.

   Se andamos durante hora até chegar ali, pareceu-me tempo mais infindo aquele que levei para dissuadi-lo do ataque imediato. Ao fim, minhas palavras o dobraram. Ele aquiesceu. Ele sentou-se. Ele pensou. Fiz outro homem aquiescer, parar e pensar. Que mais posso querer dessa vida senão esse tipo de ato? Agrado os inúmeros futuros por vir ao permitir a reflexão necessária para que o melhor dos destinos tome forma.

   – Você está me manipulando para que salvemos o maior número possível de miseráveis das mãos dessa gentalha. – disse-me ele enquanto eu mesmo já estava absorto em reflexão.

   – Miseráveis, sim, mas miseráveis inocentes. Não é de meu feitio ser cruel como parece ser para ti. – e eu pus-me diante dele de modo a não ocultar minha decisão. Ele não podia sentir medo ou infirmeza em mim.

   – Guarde sua língua na bainha da boca. Vamos às montanhas então, seguindo esses patifes. Quanto mais deles tombarem por minha mão, mais sereno ficarei sabendo que os refugiados do norte não serão massacrados por eles.

   Eu aproveitei e olhei mais uma vez no fundo dos olhos daquele homem, cavando-lhe a mente com dons insuspeitos. Não havia uma alma ali, onde devia ficar – por trás daquela máscara de carne e osso e sangue que todos vestimos. Vendeu-a? Perdeu-a? Nunca a teve?


   Dali a três horas, quando vimo-nos nas estradas estreitas e geladas das montanhas, eu obtive minha resposta quanto à natureza da alma do homem que eu já guiava pela região. Sua alma não era nem faltante, nem quebrada, nem mascateada. Era negra, invisível aos meus olhos, que são acostumados a perderem-se na escuridão. E o que consegui ver além encheu-me de apreensão, asco... e pena.

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