sexta-feira, 18 de abril de 2014

Um outro trecho

Eu sempre amei aquele jeito como ela se despia ou se vestia. Ela é daquelas mulheres que ficam lindas quando estão vestidas de bagunça. Levantava, jogava aquele blusão de lã sobre o corpo, já estava linda. Ela adorava ficar descalça no chão de madeira, e se saía, saía de sandálias ou com aquelas sapatilhas que deixavam à mostra os pés branquinhos e o cordão trançado de crina de cavalo e couro que ela usava no tornozelo esquerdo.

Tenho e sou agora de uma morena magra e alta, a pele dela é que nem qualquer verso de poema que usa as palavras "cobre" ou "castanho" para elogiar uma beleza mestiça. Tendo sido já devidamente apresentada por escritores essa pele, descrevo mais. O cabelo dela não é liso e castanho que nem o da outra, mas sim aquela juba linda e armada, imponente como uma nuvem teimosa que ficasse dourada porque está entre a testa suave e o sol. O rosto é lindo; colinas africanas onde o viço de uma selva cruza com a simplicidade ostentada da savana. Os olhos, oliva, e o sorriso o leite branco da leoa, mas doce como a carne sem pecados do mamão.

Ela se veste elegante, usa vestidos de poucos tons de uma mesma cor, e se não são de estamparia abstrata, são floridos; e se têm flores ela é um canteiro de terra fértil onde só não germinou vida nas leras de seus braços e pernas e no rosto onde a natureza plantou apenas uma graça nobre.

Só que ainda me marcou mais a minha branquela do tempo em que eu trabalhava perto do porto. Eu saía do meu turno e engolia aquele vento frio e lá estava ela, olhando o mar de cima do trapiche. Ela aparecia junto com o sol, quando começava a manhã. Trazia um café para mim, logo ela já tinha que ir pro trabalho. Pesquisadora.

Sempre que me perguntarem vou dizer que não, negar pra sempre... Mas coração de homem é mesmo vagabundo. É sempre vagabundo. Se alguma vez você perguntar a um homem feito se ele se acha um vagabundo de coração, talvez ele negue. Sabe por quê? Porque ele sabe que é.

Eu estou com quem me sustenta. Ando nutrido com os frutos da terra. Mas degredado eu canto uma canção do exílio volta e meia para aquela violeira do blusão de lã, de cabelo castanho e longo, de sobrancelha grossa, pele branca e de gestos letárgicos. As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas, porque a morena e eu temos as noites de folga só pra folguear, e nossas várzeas têm mais flores porque ela usa vestido florido. Mas me lembro de umas noites onde o céu tinha mais vida, mesmo que estrela pareça coisa quieta, de longe.

Eu estou morando na toca do leão. Eu a chamo a morena de Nemeia. Ela ri porque é mestra em Estudos Mitológicos e Psicologia Arquetípica Jungiana. Ela sabe das coisas melhor que eu, não importa o que. Ao menos parece, porque a mim ela não entende. Por isso ela está comigo. Porque ela não me entende. Enquanto me analisa, me prende. Enquanto me desvenda, me conquista. Se ela olhasse para mim e soubesse o que eu penso, voltaria a ser tranquila e poderia ser solteira.

Ela não entende, na verdade, como eu consegui, destruído, construir uma casa em cima das ruínas do templo grego que eu fui, pelo qual ela se interessa. Bem verdade - nem sou casa nem fui templo; Eu sou é um quarto-sala ou quitinete erguida nas coxas por cima de uma hermida, e só. Mas ela talvez entenda isso, as partes, não compreende é a forma total. Vê o mármore da ruína, vê a argamassa do quartinho, mas não entende a amálgama.

Enquanto eu não falar, ela nunca vai entender.
No tempo em que eu era algo antes de ruína eu bebia libações. Tinha música do violão que ela gostava de tocar no colchão, quase sem roupa, meio estirada sobre aquele blusão de lã, e a gente não rezava, mas vivia de joelhos.

Só que passou o tempo desse meu paganismo e agora eu moro num divã. E não que eu não queira me entender também: Eu me entendo. Me entendi. Me entediei. Talvez por isso eu não queira que a Nemeia me entenda. Me fareje e me estrangule. Não precisa. Não dá. Não vale a análise.

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