sábado, 26 de abril de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Três, Parte II

Homem vem, homem vai. Kor-i-Sûm'Bar fica.
Homem nasce, homem morre, Kor-i-Sûm'Bar cresce.
Povo de homem planta, povo de homem constrói. Povo de Kor-i-Sûm'Bar pilha, povo de Kor-i-Sûm'Bar queima.
Homem se arma, homem se cobre de aço. Kor-i-Sûm'Bar mata, Kor-i-Sûm'Bar se cobre de sangue.
Inverno vem, homem fica. Inverno vem, Kor-i-Sûm'Bar ataca.
Kor-i-Sûm'Bar mata. Homem morre.
Inverno vai, povo de homem morre. Inverno vai, povo de Kor-i-Sûm'Bar fica.
Inverno vai, povo de homem nasce. Inverno vai, povo de Kor-i-Sûm'Bar cresce.
– Pictogramas bélicos traduzidos de velinos nas Colinas de Forragem, anexos de "Sobre os Homens-Monstro", escrito por Featta, o Gago.


Q
 uem sabe dizer onde a humanidade começa e termina dentro do homem? Via de regras, associar um ato à noção de "humano" serve tanto para enaltecer quanto depreciar: Deu aquela senhora uma moeda ao mendigo feridento, dirão que seu ato foi humano. O irmão avarento apunhale seu próprio irmão por causa de herança, dirão que é do ser humano agir assim. Ser humano é ser monstro ou é ser virtuoso? Digo eu, sem maiores problemas, que ser humano é ser inconstante; É ser a nau que leva mercenários para melhor perpetrar a barbárie, e ser a nau que leva os refugiados para longe do conflito para auxiliar os que sofrem.

   Ser humano é não saber ser direito, não saber interpretar facilmente. Somos, ainda, deveras limitados em nossa compreensão de atos e fazeres até mesmo corriqueiros. Não sabemos, afinal, o que achamos que é certo ou o que é errado. Sabemos apenas que fazemos, e se alguém nos pergunta depois, pode-se encontrar conforto ou alívio ou contrição no conselho vindo de outro ou de nossa própria mente no dizer que fizemos aquilo que achávamos que era direito fazer. Se de fato o é, se de fato o foi, digam as horas.

   Ser humano é ser vítima constante da aflição. Estávamos Azandre, um mercador néscio e eu, Varyn, riscando as paragens quietas das Terras Algeíades em minha quadriga de ferro puxada por cavalos negros. As bestas quadrúpedes, tão mais amigas do homem que o cão por terem de acompanhá-lo na batalha, bafejavam o calor de seus corpos em nuvens imensas de vapor conforme aumentava o frio que regelava os músculos de homem e cavalo.
   A quadriga era de ferro, mas leve como a de madeira porque fora dobrada sob martelos cheios de encanto e runas, cujos cabos eram de madeira nobre e retirada do coração de florestas já dizimadas. Cada peça saiu do fogo azulado das forjas dos Magos e foi esfriada em água fria do gelo derretido, tenho refletida na superfície a luz das estrelas além.
   Estrelas essas que eram visíveis nas crinas esvoaçantes dos cavalos, em seus dorsos e flancos, pois era noite em sua pelagem de tal modo que pareciam estilhas do céu noturno. Também eles eram mais Magia do que besta, animais feitos de sangue, carne, osso e também da Arte, desenhados e paridos para melhor servir aos interesses da Convocação. Eles corriam tão velozmente puxando nossos pesos e mesmo assim ultrapassariam os mais saudáveis dos cavalos selvagens das Algeíades, famosos por suas carreiras imbatíveis.

   A viagem, em terreno irregular pelas colinas, foi ficando mais fácil porque as Colinas de Forragem eram circundadas por campinas extensas de onde brotavam as elevações que davam nome ao local. Como toda a grama das Algeíades, a cor do chão era de um verde pouco agradável, de uma monotonia quebrada apenas pelo branco gelado e salpicado das flores da tundra.
   Encimando muitas daquelas colinas estavam ruínas de fortes ou postos de vigia de outrora, e muitas destas estavam ocupadas por novos donos: os homens-monstro que habitavam o Norte, uma estirpe selvagem cuja pele era couro e cujo sangue era verde e frio. Eram homens horrendos à distância, pouco menos que bestas de perto: saíam de suas bocas os dentes, grandes e afiados em demasia, e seus narizes eram pequenos, obra de pouco faro. As orelhas eram quase grudadas à cabeça, evitando assim o frio cortante, e os olhos eram grandes e escuros, mostrando a selvageria acima da mandíbula pronunciada do crânio.

   E se as faces eram desprovidas de qualquer chance de beleza humana, pois à parecência de bestas também estava associada a abundância de ângulos retos e a ausência de curvas suaves, o corpo era ainda mais espantoso: os músculos duros como pedra pareciam naturais, pois não havia um de corpo fraco ou moloide entre seus números. Eram de largura superior à dos homens mais fortes, e sua altura superava a de muitas estirpes dos reinos de gente. Com a mão nua, pinça de aço, podiam quebrar o pulso ou o pescoço humano como se fosse por gracejo distraído. Que útero tão monstruoso poderá ter parido primeiro aquela gente, que já foi humana um dia?

   Mas quem fazia essa pergunta eram os mais simples, ignorantes da verdade ancestral: Eram aqueles seres, ogros do Norte, o que restou de experimentos torpes há muito esquecidos. Gente dada às magias do sangue e da carne uniram na cópula tantas espécies diferentes que por fim houve o parto de uma linhagem numerosa do que seria a gênese dos homens-monstro. Aqueles orcos eram selvagens e brutos, mas um diaforam responsáveis pela proteção de tantas cidades e vilas humanas que ninguém ousaria pensar-lhes mal se soubessem a verdade.
   Só que tal verdade foi esquecida pelos homens, enterrada na cova funda da ingratidão; e o que a vergonha dos homens fez com essa verdade, o orgulho, a vergonha e o ódio justo dos homens-monstro fez melhor. Não mais suas gerações novas lembravam do passado de servidão à raça que os espezinhava desde que se lembravam.

   Porém nem sempre as coisas foram tão amargas. Se de tempos em tempos eles atacavam vilas, aldeias e caravanas, queimando, matando e pilhando, em outros tempos comerciavam e estavam abertos ao diálogo. Suspeitam os cientistas de feras e monstros entre os Mudadores que esse comportamento de paz e interesse é intercalado com períodos de violência de acordo com ciclos estabelecidos no sangue dessas criaturas, que por não plantarem e pouco inventarem pegam o que precisam de quem o tem. A geração pafícifica e cultural sobrevive com o que a geração violenta pilhou e deixou de herança, além de caçar seu sutento e fabricar apenas as armas que usam com presteza e as tendas e barracões de pele animal onde se abrigam do frio.

   Até o acampamento de uma das tribos daquela gente monstro que nos levou o mercador assustado e trêmulo. meus cavalos não precisavam de comando ou chicote - apenas o meu pensar os guiava, se eu segurasse as rédeas. A quadriga subiu por um aclive tortuoso, em zigue-zague, até o portão de madeira e ossos enormes que permitia o acesso a um forte de homens-monstro.
   Postos empoleirados acima do portão estavam três monstros: harpias que vieram do sul há tanto tempo que deviam estar já acostumadas ao frio. Tinham bocas enormes cujos dentes eram tantos, como agulhas, que suas línguas eram couro grosso após tantas cicatrizações necessárias. As cabeças calvas eram feias, da base do crânio redondo pendiam mechas de cabelo seboso e cinzento. As asas eram negras, imensas, e braços raquíticos as uniam ao poleiro acima do portão, estando desse modo agarradas a um tronco fino e firme com seus dedos longos terminando em garras de navalha.
   "Olha, olha a carne que vem tão preste até o portão dos monstros-homem!" disseram as três, em coro. Suas vozes faziam mal a quem ouvia e matariam os sensíveis pássaros canoros de tão feias e estridentes "Olha, olha que lá vem um coração bom e quente para cada uma de nossas bocas famintas!"

   Os cavalos empinaram todos ameaçadores, batendo no ar seus cascos de fender crânios, com ferraduras de partir ossos. Escoicearam o vento, e sua violência possante fez as monstras horrendas ganharem os céus como morcegos enormes, apenas para voltarem ao poleiro depois de grasnarem assustadas.
   "Eia, eia que estes cavalos têm estrelas no pelo. Eia, eia que há um Mudador com a mão esqueda nas rédeas, e ele tem na mão direita uma lança que fende corações!"

   E tanto estardalhaço chamou os ocupantes do forte para a paliçada, e de cima das torres do portão eles apontaram para nós olhos monstruosos e flechas de ferro.
   "Quem é que aqui vem, até Kor-i-Sûm'Bar, senhor de crânio largo e língua vermelha, rei de flechas e senhor de fortes?" Inquiriam as harpias com voz de gralha.

   Fiz a quadriga virar, de modo que bati com a lança no portão. O eco da pancada foi muito mais alto e fez vibrar as toras muito mais que qualquer um que visse meu gesto poderia julgar possível.
   "Bate ao teu portão Varyn, o Agoureiro. Abra a porta para mim, gente de Kor-i-Sûm'Bar, que venho eu atrás de uma mulher ferida de morte!" e o pesar em minha voz escapou tão rápido que eu não pude detê-lo, e foi o suficiente para fazer manchar de negro e murchar a casca das madeiras do portão e amarelar os ossos enormes que faziam-lhe o arco. Penas feias e negras caíram das asas das harpias, que de novo falaram:

   "Ai, que vêm um coração envenenado de tristeza para matar-nos com pesar! Ai, que nossos dentes quebrariam roendo seus ossos pesarosos, ferindo-nos com tristeza! Ai!" E saíram voando para longe, e não voltaram. Ao invés disso levantaram os portões, e diante de mim e de minha companhia estava posto um homem-monstro enorme e ameaçador de tantas maneiras que meus cavalos começaram a patear nervosos o chão e Azandre levou a mão à espada. O mercador que nos guiara tremia.

   "Kor-i-Sûm'Bar! Kor-i-Sûm'Bar" Gritavam vozes indistintas que vinham de dentro do forte. Nem soube eu dizer se eram só de sua gente ou se também eram vozes da colina, que também temia seu senhor. Louvavam-no como se adula uma fera imensa no escrever - mais por medo do que por admiração.

    "Várias flechas voaram de sua mão, Varyn, e lanças de fogo crivaram meu povo há muitos anos quando, a cavalo, você derrubou o pai de meu pai em batalha. Odeio aquele que matou meus ancestrais, e lutaria para ver cortada a sua garganta se a hora fosse outra."

   Sem me mover na quadriga, eu respondi:
   "Que seja essa hora de grande valia, Kor-i-Sûm'Bar, Senhor do Portão das Harpias, pois senão ponha de lado seus préstimos, arme-se com ferro e lembranças e vem, luta pelo corte em meu pescoço, que ei-lo aqui proferindo e aquecendo o vento das Algeíades!"

   O silêncio que veio foi tão pesado que apenas o vento silenciava o bater acelerado de tantos corações. Um cavalo riscou o chão quando Kor-i-Sûm'Bar deu um par de passos para trás, estendendo o braço imenso:
"A hora é de grande valia, e hoje respeito Varyn, o dos cavalos negros, o amigo de nosso povo que o salvou da fome ao mandar para cá as caravanas de pão e de carne salgada, evitando assim que saqueássemos as redondezas já pilhadas e que tivéssemos de passar o inverno roendo ossos e madeira de cupins. É por este mérito, e por amar quem auxilia meu povo que eu o levarei até a tenda onde falece aquela que chamou seu nome antes do veneno maligno roubar-lhe tanto da voz!"

   Encaminhei a quadriga para dentro do forte. A passo lento, para que Kor-i-Sûm'Bar nos acompanhasse, e com ele, dezenove guerreiros de sua gente, armados sobretudo com o pavor que suas silhuetas selvagens impunham. Era sabido por muitos que o cheiro daquela gente também causava pavor, e que suas vozes também, e que também apovoravam mais ao mostrarem-se numerosos. Que terror devia tomar conta dos simplórios ao verem descer das colinas, ao seu encalço, uma turba daqueles orcos pavorosos.

   Mas estávamos ali como convidados de grande urgência. Kor-i-Sûm'Bar ofertou-me sua hospitalidade, e desse modo eu sabia que estávamos todos em chão seguro. Ele esperava assim pagar uma dívida que sua tribo tinha para comigo, e só então eu lembrei que de fato eu enviara para as Algeíades carroções e bois carregados de mantimetos invernais para que os saques parassem. Tributo ao monstro, eis aí uma das mais antigas coisas que acontecem quando o humano e a besta se encontram.

   Se o tributo pago era coisa humana, no que tange o certo ou o errado, as horas diriam. E se era humano o ato que levava à morte lenta e agoniada de Mana, as horas o diriam. E quantos de nós ali presentes chorariam sua morte, eu já posso atalhar: Azandre estava tomado pelo medo de perder a noiva. Eu, contudo, perdia uma amante do tempo passado.
   A mãe de um filho meu estava, talvez, prestes a se unir a ele no sono dos que para as tumbas vão...   

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