quarta-feira, 23 de abril de 2014

Outro trecho continuando outro trecho

Acho que transávamos todo dia, ou quase todo dia. Com o tempo foi ficando natural a gente pular as preliminares. Eu que percebi isso. Aquela urgência, aquele já se encontrar com desejo querendo ser satisfeito. Aquele blusão de lã era meio folgado, e se deixava os pulsos e as mãos dela mais cobertos de pano, vez ou outra deixava o ombro escapar pela gola.

Bicho no cio só tem um desejo. Necessidade fácil de entender, de uma coisa. Gente no cio não se preocupa com mais nada. Era o nosso caso em uma relação, não num caso, mas eu não sou de criar caso por um caso de cio na relação de um casal sem caso. A gente era casal, porque casal acasala. Faz casa ou faz casal. A gente se atracava. Um com o outro, um no outro, os dois no colchão.

Meu apartamento era um mar fundo. Ali a gente se afundava. No colchão, que ficava no chão, a gente se atracava. Se ancorava.
Perdi meu apartamento. Deixei para trás o colchão. Fiquei derivando.
Um divã é um rio raso, mas eu ando calado, e de calado baixo. Sem problemas.

Mas eu não me atraco com a morena. Com ela eu não acasalo: nem casa, nem casal. É uma relação médico-paciente com ocasionais intervenções carnais de cunho transformador. Ela, me conhecendo, eu, talvez, me curando. Mas é pouca cumplicidade pra muita terapia. Pouco tesão pra tanto Lato sensu sensual.

Na cama dela, baixa e longa e sutil como um divã que tome proporções mais gigantescas que meu ego - um divã para dois, um divã de casal - a gente se analisa. Mas aí tem a urgência não em começar, mas em terminar. A gente se beija querendo desgrudar, mas como somos simétricos e complementares de um modo meio capenga, temos o mesmo ponto de equilíbrio e ao nos soltarmos em cima a gente se prende embaixo. E se desprende embaixo mas se cola em beijos em cima. Sempre na urgência de gostar, de se fartar, mas de logo acabar com essa gangorra de coerências. Porque por mais que ela queira me entender e me desvendar, ela é gente e gente tem medo do que pode encontrar. Gente quer saber, mesmo tendo medo de entender. Ela quer descobrir como funciona um ciclo de águas bebendo apenas a chuva.

E se eu, antes com a branquela, tinha aquela urgência em começar uma transa e gostava quando parecia que a gente nunca mais ia conseguir terminar de se mexer em sintonia, ficando sempre naquele motocontínuo caótico, agora eu estou vivendo a urgência de terminar logo. Porque quem já gostou da perpetuidade só se ferra com a rotina. Quem viveu em movimentos progressivos e infinitos se dá mal com um zigue-zague efêmero e apressado.

Até que, no fim de ambas as coisas, o que me restava e o que me resta acabam por ser silêncios tão diferentes que eu não sei, nunca, o que dizer. Silêncios ora seguidos por um violão, agora seguidos pelo ventilador de teto. Eu fico com mulheres que não me ajudam a saber que homem que eu sou.

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