terça-feira, 22 de abril de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Três, Parte I


Crônica Terceira – Do tempo em que Azandre reconheceu o amor e o desespero tão próximos, duas vezes; E de como os assuntos com a Casa de Stabellir tornaram-se nefastos e maus.
Datação – Últimos dias de Fevereiro, Norte das Colinas de Forragem, terras dos selvagens de Kor-i-Sûm'Bar.
Arquivo – Pessoal
Segue-se agora o relato de acontecimentos de sonhos e terror, mistérios desvelados e maravilha, como contados por mim, Varyn, Cronista-Mor-e-Primeiro e Agente de Campo da Convocação dos Vários Caminhos, Arquimestre no Conselho e homem há muito vivendo.



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O
 sábio desconfia do libelo de sangue. O sábio é, antes de tudo, cauteloso demais para se colocar sabedor de toda a verdade e precavido o suficiente para não ser ignorante. Assim, por segurança e humildade muito necessárias, pergunta, questiona. Por serenidade e por orgulho, contempla, analisa. É da sorte dos que pensam e no pensar se demoram querer desconfiar até as últimas minúcias antes de declarar confiança de algum tipo.

   Que há mortos que caminham entre os vivos, esta é uma constatação aterradora sobretudo porque é real, e triste. Que alguns deles operam encantos, habitam a espreita sob os espelhos d'água dos lagos, assombram o pó ou gemem incorpóreos além do túmulo, isso também passe por real, pois o que vi não fantasio com o tom da mentira.
   E há os mortos que, para manterem saudáveis as carnes malditas, aguam-nas com o sangue de vivos de um ou outro jeito.

   Acaricia as veias da amante o amador, mas não é o sangue seu objetivo, e sim que seja este sangue mais ligeiro, corando a pele e atiçando a amada. Há, neste caso, a certeza necessária da presença das carnes vivas e amáveis entre a veia e a superfície, por onde passam os dedos dedicados em uma carícia que até as mãos mais rudes e cruéis podem executar se guiadas pelo sentimento sensível das paixões.
   Há, contudo, aquele monstro cuja carícia requer dentes e dispensa as mãos, e ignora a pele rasgando a carne. Um tipo de beijo que exige caminho livre entre a boca e a veia, que dá ao sangue a opção de correr por leito mais ávido e externo que não leve ao coração sempre exigente, mas ao ventre sempre faminto.


   Estava eu em mais uma missão a mando da Convocação dos Vários Caminhos. Era do interesse do Conselho de Guerra que limpássemos o nordeste das Terras Algeíades para que por ali pudessem vir os reforços do sul e do oeste, para que estes encurralassem nas montanhas as tropas que se por ali não fossem detidas, marchariam sobre Fárgia e Corcaresse. Eu há muito já vinha avisando que as turbas inimigas teriam passagem livre para atacar Deltim, em Auglandoc, mas meus avisos vinham sido ignorados desde que a vitória sobre o inimigo avizinhava.

   Os exércitos de Corcaresse e de Nudâmia estavam há mais de meio ano em guerras de vai-e-vem contra as hostes de homens do norte que desciam das terras glaciais portando as bandeiras de seus senhores cruéis. Os reforços mercenários que a Convocação contratou e os guerreiros desconjuntados que eu mesmo reuni nas Terras Algeíades foram de grande ajuda para a campanha de derrota dos invasores. Lutávamos então contra as hostes de Serpo de Uma-Mão e de Vailirendaro, o Infanticida. Os dois haviam feito aliança para tomar as Algeíades e o norte de Nudâmia. Haviam arrasado mais de quinze vilas e trinta aldeias ao longo do longo tempo de campanha. Chegaram a tomar duas cidades, mas foram expulsos quando os reinos ao sul começaram a reunir e enviar tropas para repeli-los.

   Homem sujo e vil, Serpo fora um rico mercador de Fárgia que muito aprendera em suas viagens, homem com o qual eu mesmo conversara muito em tempos idos, quando as estrelas mostravam-se mais alegres nos céus sobre os rios. Mas é dos homens perder a sabedoria muito facilmente quando sua bestialidade é mais bem-alimentada e quista do que sua racionalidade e reflexão, de modo que na altura em que estava eu emerso na campanha de livramento das Algeíades, não mais eu reconhecia o bom mercador com quem um dia conversei. Serpo tornara-se um bárbaro cruel e devoto apenas do frio sem cor e esfaimado do norte. Ele comandava mercenários, corsários de péssima fama e inglória, e em meio a saques de terras antes pacíficas ele perdera uma de suas mãos quando tentou violar uma donzela das Algeíades, anos atrás. Ele nunca esqueceu a ferida, mas aquela menina que o cortou ainda vive, desejando desesperadamente cortar a outra mão para fazer par ao membro que ela decepou quando criança.

   Mas não falarei agora dos feitos desta mulher, que agora anda armada com espada de aço e armadura das Rosas. Falo agora de Vailirendaro, aliado de Serpo na má empreitada de tomar as Terras Algeíades. Este adquirira para si várias alcunhas cuja associação seria insulto mortal para o homem decente em seus feitos. Ele matara seu pai quando criança ainda e deu destino parecido à mãe quando esta voltou da guerra. Sua índole era extremamente cruel desde cedo, talvez desde sempre, se amargasse no útero materno o fel da vida por vir. E nos eventos cercando o ato de nascer é que ele já ganhara a alcunha de infanticida: Viram o ventre materno parir gêmeos, um estrangulado no fio da vida que o ligara à mãe, o outro segurando o cordão do enforcamento sem chorar, como se tivesse sido ele o algoz de tão pequena vida. Vailirendaro nascera já com o assassinato escrito na fronte, e mesmo que do fratricídio precoce fosse inocente, dos que se seguiram não foi: matou cada irmão, bastardo ou não, e não me atrevo a dizer os fins que deu até mesmo às crianças de colo que arrancou dos braços das mães. Ferveu o próprio filho em caldeirão, atirando-o em um quando o julgou fraco, matando também a mãe por acusá-la de ter gasto em vão sua semente.

   Este homem de avérneas ações está marcado para morrer pela mão de um homem justo e inocente, assim profetizo eu ao escrever estas linhas.

   Acontece que em tal momento, quando organizávamos o último assalto contra as hostes de Serpo e Vailirendaro, chegou ao acampamento uma notícia horrível demais para que eu aceitasse que outra verdade triste cumpria-se sem que eu antes tivesse tido visão sobre o acontecimento dela. Estava eu, então, na companhia de Azandre e de Sarão, meus discípulos mais velhos, cuja pouca idade diferia entre um e outro por apenas um ano mal completo. Eles estavam emersos no tempo da guerra, e o primeiro estava frio e resoluto como o aço forjado para a matança, enquanto o outro tremia convulsivo sob sua pele, exigindo a toda hora a carreira e estalar dos músculos para que houvesse ação.

    Por isso eu mandara Sarão para as linhas de frente, com setenta homens mercenários. Não era dele o comando, contudo, pois Sarão é o soldado da linha de frente que enterra a lança ou gira o machado com a boca aberta e o pescoço estendido para melhor sentir o sangue arrancado do inimigo. Azandre é que mostrava os dons do estrategista e do comandante, mas então ele estava comigo no acampamento principal das tropas do fronte. Na tenda maior estivemos ele, eu e os sete generais, buscando liberar aquela região toda do flagelo cruel vindo do norte. Durante toda a reunião Azandre permaneceu calado, mas eu lia em seus pensamentos meticulosos e reservados que ele pensava melhor que muitos dos melhores estrategistas presentes. Em ver que ele não demonstrava toda a sua sabedoria através dos olhos resolutos e que ainda assim ele sobrepujava a muitos homens velhos em sua perspicácia, eu enchi-me de orgulho.

   Acontece que ao fim da reunião voltamos à nossa tenda de campanha, e lá esperava um mensageiro de improvisos: homem assustado mas de passo largo e firme, era um mercador trajando peles e couro e cheirando a gordura e estrada.
“Senhor Varyn, é de urgência que venha comigo, senhor!” Lembro-me eu melhor dos gestos e olhar desesperados e claudicantes do homem do que de suas palavras que apenas tentavam dar cor ao seu tormento “Mana está ferida. Flechada. Envenenada. Morre, senhor, hoje ao anoitecer.”

   A armadura protege bem o homem e não denuncia sua tremedeira do medo, e pouco muda se ele está paralisado em espanto ou terror. Mas foi a mão que deixou cair o florete e a boca que soltou palavras desoladas que denunciou a fenda aberta no espírito de Azandre:
“Minha noiva... Minha noiva morre...”

   E minha quadriga negra partiu veloz em direção a uma tenda cercada por monstros onde uma jovem jazia estirada com uma haste mortal enfeando-lhe o seio branco e fazendo esfriar seu sangue quente.

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