quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica II, parte III

PARA QUEM NÃO CONHECE OU NÃO MAIS RECORDA

Crônica Um
parte 1 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/05/as-rosas-e-o-punhal.html
parte 2 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/06/as-rosas-e-o-punhal-i-parte-ii.html
parte 3 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/06/as-rosas-e-o-punhal-i-parte-iii.html
parte 4 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/06/as-rosas-e-o-punhal-cronica-i-parte-iv.html
parte 5 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/07/as-rosas-e-o-punhal-cronica-i-parte-v.html

Crônica Dois
parte 1 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/07/as-rosas-e-o-punhal-cronica-dois.html
parte 2 :: http://eskideletras.blogspot.com.br/2013/08/as-rosas-e-o-punhal-cronica-ii-parte-ii.html





AGORA, propriamente introduzida através da recordação, a PARTE TECEIRA da CRÔNICA SEGUNDA.

*
*
*

Sei de gente que se despe durante a noite. Não das vestes nem de aparatos que agradem a vista ou sejam úteis à utilidade. Não. Sei de gente que se despe de caráter e moral, vergonha e retidão. Gente que anda pelas ruas nua de vergonha e despida de decência qualquer. Dessa gente tenho medo mais do que temo as criaturas que vagam no Norte em sombras, e as evito mais do que evito a estrada quieta onde se viu o ladrão, mais do que evito a fossa imunda onde apodrece o leproso. Não. Essa gente que é nua de moral me assusta mais do que o assalto e a peste, pois sua indecência é mais contagiosa e mais violenta do que as mazelas que se vê na cidade e no caminho.
– Azandre, diário de confissões

S
ei de um guarda de Varuzal que não fez bem seus serviços. Ele dormiu em sua guarita, e por estar em uma guarita devia estar acordado vigiando com cautela, pois certamente esta era a ordem dada a todos os vigias naquela noite soturna e assombrada por medos. Mas achara-o dormindo Sarão, meu pupilo, que apesar de estar menos capaz do que ficaria na lua cheia ou próximo a ela, foi certeiro no faro e na audição.
   Uma vez que achamos um vigia dormindo, entramos saltando o muro da vila: Sarão tinha as capacidades boas para as proezas do corpo, mesmo sendo demasiado magro. Aquele muro patético servia muito mais para dissuadir preguiçosos e impedir a livre circulação de animais do que para barrar uma tropa obstinada que se mostrasse perigosa em invasão.
   Eu saltei a distância necessária usando de minha vontade, que se esticava mais do que qualquer tendão de meu corpo. Fiz-me leve como um pensamento distraído e com o esforço mínimo de meus pés, projetei-me por sobre o muro. Conjurara eu sombras insuspeitas que ocultaram nosso pulo para dentro da vila cautelosa.
   Se o guarda percebeu-nos pelo barulho, reagiu apenas nos sonhos. Não se pôs alerta, muito menos acordado. Continuou em seu sono mais seguro porque dentro da guarita.
   Dali, ganhamos as ruas com grande silêncio, mas vimos que em muitas casas ainda havia luz acesa. À distância vimos a casa do senhor da vila no alto de uma elevação da qual se podia certamente observar todas as casas e os limites do muro circundante. Certamente fora para lá que se encaminhara Viatra, a enviada da Igreja de Selmar.
   – Agora esperamos amanhecer para descobrir o que está acontecendo? – era Sarão presumindo coisas na noite alta.

   – Vamos agora mesmo procurar uma estalagem ou espelunca que nos revele por meio de bêbados, notívagos e meretrizes o que está acontecendo aqui na região. – e divertiu-me na minha seriedade contrariá-lo porque eu era seu mestre.

   Sem objeções, e talvez animado por irmos atrás de uma estalagem, Sarão me seguiu pelas ruas amplas e quietas, calçadas com lajotas velhas que deixavam passar grama aqui e ali. Varuzal era simples e pequena, mas rica e jeitosa se comparada à maioria das vilas da região. Não havia choça de palha e madeira ruim, apenas casas de bom material e pintadas com jeito, com jardins bem cuidados e dando de fronte para ruas limpas e mantidas trafegáveis com zelo.

   Enfim encontramos uma hospedaria naquela teia de ruas. Receberam-nos bem o dono do estabelecimento e seu filho, um jovem calado de boas feições.
   – Chegaram tarde em uma terra de gente que acorda cedo – Disse-nos o homem cujo nome nunca vim a conhecer.

   – A vila parece estranhamente quieta e inóspita esta noite – Disse-lhe eu, sendo direto. Vi nos olhos do sujeito que ser inciso não levantaria suspeitas. Escondera eu a minha lança, disfarçando-a de mero cajado de viagem para o olho destreinado. Sobre os trajes que poderiam indicar meu vínculo com a Convocação, vesti uma grande capa de viagem. Desse modo estava indiscernível dentre viajantes ordinários.

   – Acontecimentos estranhos têm assolado a região. É bom ser precavido. – E com esta informação que praticamente nada informa, o homem deu-se por bom respondedor. Ele anotou nossos nomes falsos em uma tábua de controles e deu-nos as chaves de nosso quarto.

   Mas tão logo Sarão ajeitou-se para dormir, eu saí dali para procurar gente de quem eu pudesse conseguir mais palavras. Perto dali havia, de fato, uma taverna singela e pequena. Estava quase deserta, mas havia um par de bêbados cantando sua alegria de madrugada e dois homens sentados à bancada onde a dona do estabelecimento, uma mulher alta e grisalha, estava bebericando vinho.
   Aproximando-me deles, saudei-os, mas não obtive nada em troca senão olhares desinteressados. A mulher serviu-me vinho automaticamente, e vi que em seus gestos duros estava a marca da repetição de movimentos que marcaram seu corpo durante décadas.
   Não neguei a bebida, embora eu não a tenha provado. Logo pus-me a conversar com os homens calados, os dois de considerável idade. Um era aleijado de um braço, ou outro estava quase cego. Ambos cheiravam ao curtume onde trabalhavam por um salário de piedade.

   Com meus dons, guio uma conversa para o lado que me convém. Sou, no falar, capaz de domar um discurso – touro bravio – e fazê-lo jungido para melhor me servir. Mas falar com aqueles dois pobres coitados era querer domar uma mula velha, de modo que não demorou nada até que eu já estivesse tirando deles o que podia me servir de informação.
   – Tudo começou quando o prefeito casou com aquela bruxa vadia que veio do norte! – disse o meio-cego, que tal como o aleijado estava já sorridente pela soltura que o vinho ruim conferia.

   Cantavam, a esta altura, os dois bêbados na mesa que estava atrás de nós, posta na rua, sob um telheiro simples para aparar uma chuva hipotética que se armava sobre Varuzal. Aviso que, em se tratando de gente vulgar e tendo eu o compromisso com a verossimilhança, aparecerá em minha escrita um rol de palavras e expressões de vil origem e asqueroso emprego.

   – Sim, uma rainha de malefícios, é o que ela é. Uma criança a insultou no cortejo para a igreja. Foi encontrada morta no fim do dia, caiu de um muro e quebrou o pescoço.

   – E desde então, só pragas têm sobrevindo a isso. – neste momento eu desviei meu olhar para perscrutar a mulher que nos servia. Ela estava muito nervosa no ato de limpar copos secos como se esperasse receber um batalhão para beber de seu vinho.

   – É verdade o que dizem estes homens, boa senhora, ou acaso fazem eles troça com as crendices de um viajante?

   A mulher limitou-se a olhar-me por uma fração de segundo, apenas para desviar os olhos para os fanfarrões ao meu lado. Seu silêncio disse-me que ela queria não acreditar, mas falhava se lembrava do assunto.
   – Ela está lá, aquecendo a cama do prefeito! – disse o aleijado – ela deve estar fazendo dele uma mula de carga, um cãozinho de estimação! Roubou-lhe o juízo, rouba-lhe o pau e há de roubar-lhe a vila!

   – Como essa mulher chegou aqui e o que tem ela a ver com essa situação para fora dos portões? – eu nem precisava mais olhar para aquele par de tolos cujas mentes já estavam por mim dominadas. Eu apenas sugeria o comando e eles me entregavam as palavras que eu queria.

   – Ela veio do norte, mas ao contrário dos outros animais que chegam em levas pequenas ou em grupos de quatro e cinco, ela veio sozinha. Como uma mulher jovem como ela pode ter descido do norte até aqui com apenas alguns rasgões nas vestes?

   – É bruxa, nascida no sábado, tem sob a pele demônios que conjuram artes no palacete agora! Não demorará para que o mal que a seguiu entre também na cidade. Os camponeses que por aqui vêm queixam-se a todo momento de que matam suas criações, sequestram suas famílias e de que puseram suas plantações sob maldições de murcha.

   – E o que seu prefeito tem feito para aliviar os sofrimentos dos camponeses?

   – Tudo o que ele tem feito é foder com aquela bruxa dentro do palacete. Há dias que ninguém o vê. Da última vez que foi visto, estava desfilando diante da igreja com aquela prostituta do norte. Ela estava montada em um cavalo e ele, idiota, a pé, puxando o animal pela rédea.

   – E você, senhora, que continua calada. O que tem a dizer sobre essa mulher de tão grande e má fama? – disse eu, dirigindo-me de novo à dona da taverna. Mais uma vez apenas o silêncio nervoso dela me respondeu, mas talvez tomasse-me ela por um mexeriqueiro disposto apenas aos boatos baratos da gente chinfrim. Esse julgamento que ela poderia estar fazendo de mim tirou-me a paciência, no que a agarrei pela face e penetrei os olhos dela com o meu olhar.

   Passei assim uma barreira que ela havia posto em seu pensamento, mas afastar essa barreira foi como abrir uma cortina leve e frugal para mim, e o seria igualmente fácil para quem não têm, como eu, os dons da Arte. Uma mente em dúvida é uma mente aberta, facilmente cercada por todos os lados. É um exército de vasto número de lanças, mas munido de poucos escudos.
   – Mulher, pergunto-te eu o que sabes sobre essa esposa do prefeito.

   Meu olhar, que teria sido aterrador para ela se não estivesse sob o efeito de minha dominação, forçou-lhe a narrativa, que foi feita com voz assustada e rouca:
   – Não quero acreditar que uma bruxa está nesta vila. A avó de minha avó nasceu aqui, e desde então minha família tem feito de Varuzal sua casa. Selmar morreu prometendo que não estaríamos sós na escuridão, mas eu tenho medo. Eu não consigo acreditar em sua promessa iluminada! Não quero acreditar que há uma bruxa aqui, casada com nosso prefeito! Se um homem devoto de Selmar e ungido por seu fogo foi vítima de tais coisas, que podem os humildes seguidores do Homem-Sol contra a vilania dos demônios?

   Eu soltei-lhe a cabeça, de onde despencavam lágrimas. Ela ficaria em alguns segundos de torpor seguidos por forte amnésia, e provavelmente algum sentimento profundo de medo e desespero, estes nutridos por ela mesma, mas sem chance de vazão.
   Fui-me, e de mim só ficaram ali algumas moedas de ferro. Deixei a taverna com novo destino, precisava averiguar a história dessa bruxa vinda do norte e das pragas postas no campo.


   “Mas é noite, cronista, e é perigoso confrontar a suspeita da feitiçaria durante a noite!” dirão aqueles que se esquecem que o que ocorria então era o desejo de encontro de um feiticeiro com uma suposta feiticeira.
   Mas na noite, de fato, há mais perigo. Há caras que se mostram sob a luz mais condescendente do luar que jamais se aventurariam à exposição sob o olhar lancinante do sol.

   Como as faces que eu estava a ponto de encontrar, inclusive.

Nenhum comentário:

Postar um comentário