sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

As Rosas e o Punhal, Crônica Dois, Parte V

Pergunta-se aqui e ali, com curiosidade impossível de se esconder, qual é a sina do homem. A resposta, esta eu aprendi ao longo de duros e amargos anos. A sina da gente é parelha ao tortuoso caminho do sofrimento. Somos todos nascidos de dores e sangue deitado, agourando o porvir de cada alma, que conhecerá dores e derramamento de sangue com a mesma certeza que a morte vem. Até que a morte venha, contudo, nos é dado o direito e o tempo para ganharmos glória, para reclamarmos tudo aquilo que é efêmero mas contenta nosso coração, aplacando por algum espaço mínimo de tempo os temores a que se entrega o coração infirme ou aplacando por algum espaço mínimo de tempo os pesares que se abatem sob a mente consciente e desperta. Eu tenho muito, seja o assunto conhecimento de mistérios e fatos da natureza, ou seja o assunto as posses estranhas às quais se apega o homem. Tudo isso tenho muito, e tenho também histórias e relatos das mesmas. Tudo isso porque muito vivi. Tudo isso porque, como todos, nasci de dor e sangue deitado. Porque, como muitos, vivi em meio à dor e ao sangue deitado. Mas porque, como poucos, tenho consciência destes caminhos tortuosos por onde escorre o sangue e por onde a dor caminha mais sôfrega, caminho que todos temos de percorrer até que a dor acabe e o sangue pare. Eu, sozinho tantas vezes nessa percepção, sei da sina do homem e entendo que ela é inescapável de maneira diferente que o simplório, que só a pode sentir sendo cruel. Prego, pois, a visão. Não para escapar do inescapável, mas sentir amenizar os fardos da sina do homem.
– Varyn, Meditações de um Mudador, vol.2



C
ontam os relatos no Livro Selmarino que Selmar, o Homem-Sol, deu sua vida para que a humanidade perdurasse. Sem seu sacrifício o mundo teria sido perdido em uma era de sombra e caos, no tempo em que o mundo era todo um único campo de batalha circundado por um mar de sangue. Mas dizem os crentes que Selmar abriu suas veias no topo do grande Monte Solarrim, no exato momento em que o sol tocava sua crista de pedra. O sangue do homem lavou as terras todas e incendiou-se sob a flama do sol, criando uma enchente que purificou a terra por fogo. Só assim foi possível recomeçar, só assim foi possível para a humanidade povoar uma terra nova. Creem eles que só os que sobreviveram ao dilúvio de fogo de Selmar é que eram dignos de viver, mas que por má arte sobreviveram também outros, o que explicaria todas as levas de gente de tantos reinos e terras diferentes que, tal como eu, não se deixam perturbar pela ladainha dos Selmarinos.

   Mas que a igreja de Selmar tinha muito poder, isso não é prudente negar se o que se almeja é a alcunha de sábio. Através da fé ilógica e do dogma visceral dominavam massas e massas, e essas massas submissas faziam-nos manipular a realeza. Poucas coroas reais têm a vontade de descartar a influência da igreja – seja pela mão de obra que pode recrutar quando desejar, seja pelos fundos de que dispõe, verdadeiros rios de riqueza, ou seja por sua influência prodigiosa através das nações.

   A presença de uma enviada da igreja Selmarina em Varuzal só podia indicar que coisas importantes estavam acontecendo ali. Importantes o suficiente para atrair o olho da igreja. E porque o carroção de Viatra trazia livros sagrados para o povo da igreja, algum acordo de grande importância devia ter sido feito.

   Não foi o que de fato eu vi se desenrolando quando espiei a cena que se abatia sobre o salão do palacete do prefeito de Varuzal, mas isto conto apenas depois de contar como fiz para infiltrar-me em tal local.
   Uma vez que por mim tombaram os misérrimos desalmados que foram atiçados contra mim, vasculhei a área em busca de mais defuntos ambulantes. Nada. Mas aquilo já explicava um pouco dos animais mortos nos arredores da vila: aquelas criaturas nefandas são mantidas vivas por meio do sangue de animais de casco, e isso, somado ao relato que eu obtivera sobre a longa medida de tempo durante a qual várias criações sumiram das casas dos camponeses, permitiu-me concluir que havia uma força de mortos lutadores estocada ali naquela vila. A presença daquelas criaturas sórdidas na terra enchia de temor inexplicável o coração das pessoas, fazia murchar as plantações e deixava o gado louco.
   Quanto a mim, essa presença horrenda trazia inquietação, pois aquelas terras mantinham-se pacíficas apesar da proximidade com as terras da guerra. Por ali passavam tantos refugiados. Teriam estes de ir para ainda mais longe?

   Fui atrás da fonte de tanta sordidez. A raiz desta árvore morta e enegrecida estava dentro do palacete. Passar por uma porta vigiada por seis guardas era um desafio, contudo, que me estimulou demais a imaginação e não me causou nenhum nervoso.
   Mas este era, ainda assim, um desafio. Tomei-o com muita alegria.

   Eu poderia ter me disfarçado aos olhos daquela gente. Passar pelo que eu quisesse. A soldadesca costuma perder o olho bom para o embuste quando é posta plantada na frente da porta e aprende apenas o nome de quem deve saudar. Mas eu não quis me valer da ignorância alheia para atestar alguma perícia. Poderia eu ter passado invisível por entre eles, e pensariam que fora apenas capricho do vento o abrir das grandes portas. Era provável, contudo, que pensassem nesse caso que fosse obra de mau encanto, estando a vila tomada pelo pavor suspeito. Poderia me anunciar, mas ao fazê-lo chamariam seu senhor, que naquela momento poderia estar sendo orientado por Viatra, que sendo da igreja desprezaria a boa vinda dada a um feiticeiro.
   Decidi, sendo bom amigo de alguma lógica, usar outra porta. Outra entrada, melhor dizendo. Uma em que não houvesse porta.

   Fiz-me de amigo confiado das sombras e estas, densas, ludibriadas pela Arte e pelo meu agrado dissimulado, cercaram-me como amantes queridas, como aduladores baratos, como roupas de honraria. Abraçavam-me braços sem luz, odiosos mas sutis, pavorosos em sua frieza e escuridão, mas belos pela simplicidade e ausência da pretensão. Fiz-me, então, denso como a sombra de um fantasma, e deslizei pela área plana e aberta entre mim e o palacete como deslizam os sonhos, as alegrias e as dores diante dos olhos humanos.
   Ao encontrar a parede, esse obstáculo ferrenho de pedra e vontade de longo termo, atravessei-a sem me importar com a intrusão. A sombra guiou-me de um lado da sombra do muro para o outro lado da sombra do prédio, e lá dentro estava eu, nas sombras conjuradas pelos archotes e lâmpadas de óleo.

   O ambiente cheirava a decadência.

   Silencioso o suficiente para pegar desprevenidos os pássaros e para causar inveja a um gato negro, andei pelos corredores como se estivesse em casa de convivas apreciados. Sem esforço deduzi, pela lógica da arquitetura local, conhecida por mim, onde ficava o porão. Fui até lá, e aquela vasta sala cortada por mais paredes tinha adegas e uma dispensa farta, depósitos de material da criadagem e quinquilharias que foram melhor estocadas longe da vista dos que acima faziam boa morada. Meus sentidos de mudador me levaram até a pedra fundamental do casarão, ela estava enterrada sob algumas pedras de piso mas me bastaria estar perto dela mesmo assim.

   Sobre as pedras que encimavam a fundamental, aquela que fora a primeira do palacete, joguei minhas runas engastadas em âmbar e desenhei com a ponta da faca meus glifos de pergunta. A vidência me revelou os segredos todos daquela construção, e dali saí andando pelo palacete como se estivesse em casa minha de tão familiar que se tornaram para mim os corredores e cômodos. Eu talvez soubesse da planta do palacete melhor que aquele que o construiu – e tendo eu mais visão e ousadia que o arquiteto comum, é provável que de fato eu melhor conhecesse, porque a razão aguçada traz mais uso a uma simples janela ou porta do que a mente unifocada daquele que as desenhou e dispôs.

   Porque ao invés de passar pelas portas mais usadas para chegar ao salão principal, fiz meu caminho pelo alto da construção, nas traves do teto. Por ali caminhei com peso reduzido, pois assim o quis, e não fiz ranger a madeira velha. Foi assim que eu pude contemplar a triste cena que mostrava o que era e o que estava para ser de Varuzal.

   Havia um fogo aceso no centro do salão, e ali assavam talhes generosos de carne. Ao redor três mesas foram postas, formando uma sorte de triângulo. Os comensais eram todos gente alta e sinistra, envolta em trapos negros ou marrons, uns vestiam o couro cru e mal curtido, ainda cheirando a sangue, que retiraram de bovinos com as próprias mãos.
   Viatra estava ao fundo, amarrada na altura do pescoço, da cintura e das pernas, com as mãos atadas. Estava estática e muda. Prenderam-na a um dos pilares do salão. Seus guardas não foram poupados, jaziam pendurados em outros pilares, de cabeça para baixo e sem elmos, tendo congeladas nas faces as expressões de uma morte à traição.

   Observei que reinava a maleficência. Abaixo de mim festejavam homens vis de má índole, que se cortavam com suas facas longas apenas pelo prazer da dor e do sangue. Isso para dali a pouco, ainda em meio a risos, talharem a carne mal cozida e comerem-na vorazmente, cuspindo pedaços aqui e ali. Eram homens, a maioria, e faziam daquela casa de governo um prostíbulo forçado ao terem para sua luxúria moças sequestradas dos campos. Não eram meretrizes de gente torpe, eram gente marcada pela lida: mãos calejadas e traços firmes, o cabelo seco pelo sol. Estavam sendo prostitutas forçadas, talvez sob encantos maus de quem sabe algo da Arte e provavelmente por resultado de ameaças tão ruins que só se indica através delas a procedência fatal – o coração do homem.

   A orgia tomava forma enquanto os homens brandiam facas cheias de sangue de amigos, de moças capturadas e de carne de porco e vitela. A cabeça de um suíno, percebi, fora arremessada ensanguentada por sobre uma das mesas, deixando o rastro de sangue para estalar-se aos pés de Viatra, que sob sua venda parecia cega e surda ao que acontecia ali.
   Enquanto uns se cortavam e outros se regalavam com diferentes carnes, vi que sobre todos reinava um espectro mais medonho: uma mulher estava sentada em uma cadeira de alto espaldar, mais alto que os das outras, e ela tinha nas mãos uma taça imensa e vazia, além de um punhal. Ela estava nua, sentada sobre a cabeça de um touro negro, entre os chifres do animal. Bateu a arma na taça e com esse comando dois homens à mesa foram buscar o prefeito.

   Sim, ele estava lá. Se estava ciente do horror, não soube dizer. Quando o trouxeram de seu quarto, mostraram para mim, sem saber, um homem debilitado e desprovido de forças. Sôfrego, ele levou sua palidez até os pés da mulher nua que tinha nas mãos a taça. Jogaram-no, na verdade, e o que ele de imediato fez não foi procurar revolta ou explicação: foi virar-se para cima adorador e estender um braço para sua amada.

   Espero eu que quem me lê seja intuitivo e sagaz o suficiente para deduzir o que aconteceu. Em respeito a este que pensa ligeiro e a esta que sabe que só se é sábio ao usar a sabedoria, dispenso minuciar o triste ocorrido. Após a mulher abrir mais um furo no pulso do prefeito ele, com o que bem poderia ser um último fôlego, declarou a ela seu amor profundo. Enquanto ele balbuciava no limiar das forças de seu peito, ela apenas encheu a taça.

   De longe vi ali naquele rosto pervertido uma sombra terrível. Duas, na verdade. No lugar do clarão de olhos vivos e tenazes de mulher que impera eu vi dois rombos hediondos por onde vazara toda a humanidade. Aquela sombra era familiar: Elão de Varraquêz não fora o único daquela estirpe maldita que eu vira em tão pouco tempo. Lá estava eu diante de um vampiro.

   A criatura nefanda bebeu da taça com avidez, e o que não coube em sua boca já cheia e na garganta já inflamada, deixou cair livre pela face, ensanguentando a seguir o busto e o colo. O sangue do prefeito parou ao pingar do focinho do touro decapitado.

   Foi demais para mim. Eu não suporto esse tipo de decadência. Não havia ali valores, não havia ali decência. Embora eu abnegue os valores do tolo e ria da decência dos medrosos, eu digo que nada é da vida longa do homem sem que ele direcione sua capacidade de pensar para o bem de seu semelhante sempre que possível. Má é a pessoa que tripudia na desgraça alheia. Uma coisa é matar o animal que vai para a mesa, ou dar misericórdia ao moribundo, e é compreensível dar cabo do inimigo que não perdoa ou se detém, e aceitável torna-se a morte de um monstro cruel que ameaça com sua existência. Eis aí de onde derivam os valores que defendo: da verdade. Da constatação, da observação, da compreensão da brutalidade das coisas. Não de dogmas iníquos e de verdades impostas, mas daquela verdade que segue o que é amante da observação e amigo do pensar cuidadoso.
   Desse modo estava eu diante de tamanha depravação que não pude me abster. Se eu tivesse tido menos paciência, teria feito daquele palacete fogueira que queimaria pela noite e seria vista por toda a cidade.

   Com desprazer de ter de fazer o que devia ser feito, pulei do alto do teto e caí sobre o fogo aceso. Já com as palavras certas para conjurar a amizade das chamas, fiz com que a fogueira se excedesse em sua forma e agarrasse com garras de incêndio aquela gente grotesca e animal, pois animal pleno é aquele que abandona sua sabedoria para saciar seus instintos mais básicos. Como assim dispensavam sua sabedoria e razão, queimei-lhes as cabeças, e o cérebro queimado fez incendiar ideias torpes e maus encantos que reinavam sobre aquela terra.
   Mas como eram rudes e frios os seus corações, incapazes de se regozijarem na piedade que se tem da gente trabalhadora e incapazes de se contentarem com a admiração que não destrói ou profana, queimei-lhes também o peito, abrasando aquela frieza horrível. Corações queimados deixaram em brasas e cinzas cálidas as emoções mais vis que pulsam na carne humana.
   E como usavam de seu sopro e sangue apenas para ferir e macular, queimei-lhes sem cerimônia as mãos e os braços, e cada dedo virou uma chama desconhecida para a palma, castiçal. O calor daquelas feridas fez tórridos tantos atos passados de tortura, sortilégio e assassínio que a fumaça que se desprendeu conforme murchavam tantas mãos de gente ruim foi incapaz de ganhar a altura e encarar a noite lá fora, de modo que caiu sobre o chão em mantos negros e sinistros.

   E enquanto os berros retumbavam, senti tantas mentes que escaparam da chama se armando contra a surpresa e contra mim. Tomaram de facas e facões, e em várias línguas armou-se o mau encanto.
   Ai daquele que contra mim desperta a sanha de colocar o feitiço. Torna-se fúria toda a minha paciência e faz-se em ódio minha complacência quando usam contra mim a Arte. Aquela gente baixa falou coisas para murchar meu coração dentro peito, e para que ele parasse, e tentaram roubar meu fôlego, deixando-me oco de ar, e tentaram roubar a fluidez de meus tendões e carne para que eu tombasse seco. Tentaram, os mais audazes, expulsar minha alma de meu corpo para que morto eu caísse de pronto, ou ordenaram que me agarrassem pelo pescoço sombras infernais e que me arrastassem para terras longínquas onde existir dói.

   Mas minha pele é grossa porque sobre ela correu a água de chuvas estrangeiras. Meu pelo agrisalhou sob estrelas desconhecidas para eles. O pó de estradas já esquecidas cobriu-me os poros, e luzes de casas tão distantes me iluminaram também. Toque de gente estranha alcançou-me os nervos em lugar longe dali, e a minha aura cresceu com as canções de pássaros e de mulheres que habitam além das fronteiras percorridas com afinco.
   Não, nada daquele rol de maus desejos ganhou entrada e morada no meu ser. Eu andara demais por muito chão e vivera demais por muita vida para me deixar cair por fim assim, nas mãos de gente baixa e egoísta. Mais uma vez eu estava cercado por nada além da morte, que em sua nudez me estendia a mão. Aquele era novamente um dia de morte, um dia de superação. Mas eu sou senhor de meu destino por razões que em demasia me repito a elencar, de modo que eu faria claro que a morte não viera por mim, e que não seriam aqueles iludidos que me superariam.

   É certo que Varyn é homem, e homem morre. Algum dia morrerei. E nesse dia tal coisa acontecerá porque alguém há de me superar. Mas aquele dia não é tal dia, e esse alguém não estava ali entre aquela gente.
   Eu vivi porque nada me dobrou a vontade. Fiquei incólume diante daquela vileza baixa e ignorante. Aquela falsa, pretensa sabedoria era mesquinha demais para entender a Arte como eu sou capaz. E a Arte, ultrajada, obedeceu meus comandos para livrar mais uma terra de gente que faz mal uso dos dons da mente e da obstinação: eu chamei os nomes de ventos ancestrais da respiração humana e na minha mão que não portava a lança eu agarrei as correias de relâmpagos e uma trança dos céus. Abri os dedos e por entre eles eu vi escorrer a luz das nuvens mais negras, e calei os gritos com o estampido do trovão. O raio solitário estalou pelo salão, conquistando carne e voz como conquista a luz mais humilde a vasta habitação da sombra.

   E quando tudo enfim quedou silencioso, e quando as camponesas pisaram fugidas as pilhas de cinza de má gente, eu estava em um salão quase deserto. Restaram ali, para o diálogo sem paz, um vampiro depravado e cruel vindo do norte, Viatra, ainda aprisionada, mas em pensamentos plenamente atenta a mim, e eu, que estava de pé no centro do salão, cercado por um notável anel de cinzas, onde se misturavam as cinzas da fogueira inocente que se apagara, as cinzas das maledicências das quais eu me recusara a ser vítima e as cinzas de meus inimigos.

   A mulher, nua e pavorosa em sua crueldade, encarava-me com maldade e fúria. Seus olhos desalmados eram presas geladas procurando meu coração.

   A primeira palavra ali desferida, contudo, não foi de nenhum dos três.

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