quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

::: Ânimo da Tempestade (parte dois)

Aconteceu que no décimo dia de chuva intensa, vindo ela quase sempre no meio ou no fim da tarde, Jofric adormecera sobre suas penas retintas e escritos empilhados. Como conseguira, não o sabia – estava naquela consciência morfética que antecede o sono profundo – pois o batente da janela do quarto ao lado batia violentamente, sendo espancado pelo vento que ululava.

                E essas ululações do vento, a ferocidade com que os trovões rasgavam o céu e a cinética audível da chuva não montavam a boa cama para cochilar. E, com o agravo da janela que batia e das músicas que se misturavam nas ruas da vila, formando um eco confuso que era abafado pela tempestade, tornava-se ainda mais inviável perder-se nas sombras confortáveis das pálpebras fechadas, unindo as vistas em um sono bem-vindo.

                Até porque Jofric, convenhamos, não sabia o que era se cansar. Vivia de sua herança farta e da plantação de tabaco administrada pelo seu único primo honesto, mas longe dali. Ele dedicava os dias a dormir até o adiantado das horas, à escrita inspirada e ao namoro arrastado com a carola Margarite. Assim, dormir daquele jeito, naquelas condições que muito seriam dormíveis para o homem estafado, para ele anunciaram (na sua consciência semi-desperta) um acaso intrigante.

                Dormia, e o frio entrava pelas frestas da janela com uma capacidade incrível. Tomava-lhe as fibras e as enrijecia, sua pele tornando-se sutil como a de uma estátua. E aquele frio que o assaltava não foi nada se comparado ao assomo de espanto que lhe tomou a alma quando um golpe de tufão escancarou-lhe as janelas a despeito da tranca.

                E de tal modo estava frio e entorpecido que não moveu mais que os músculos que o levaram a pular dentro de sua própria pele. O sobressalto teria sido melhor expressado se não fosse aquela letargia cética.

                E o vento que tomou seu quarto levou-o por alturas inimagináveis, arrancando-o de dentro da pensão, levando-o pelo céu, jogando-o com violência aliviada somente pela ausência de limites com os quais se chocar, não havendo estes na quinta celestial.

                Ele voava como um pano atirado ao vendaval, ou, bem dizer, um lenço perdido para o vento. Seus olhos, então despertos, viam a vila muito abaixo, aquela mancha de telhados no meio do campo verde e vasto, cruzado como teia de aranha pelas picadas que levavam às fazendas e chácaras e quintas. A chuva parecia vir por todos os lados, fustigando-lhe até a alma, encharcando-lhe o corpo gelado.

                A tal altura, e em tal altura, estava já tomado pelo pavor. Seu pensamento era o medo, sua voz era a gritaria, seu sangue era o frio. Mas o pensamento era chacoalhado, sua voz era abafada e seu sangue se arrastava. Ele mexia os membros no ar, mas era inútil. Gritava, e mesmo assim pouco do que falava ouvia. Entregou-se logo à sua sorte, pois não era homem de luta mesmo. Foi quando veio aquela calma única, prêmio de um grande desespero, que ele começou a escutar naquela ventania uma música estranha e distante, perdida entre as lamentações do vendaval.

                De início agarrou-se ao som como se fosse luz diáfana no fim do túnel escuro, ou mão estranha que apresentasse ajuda à borda do precipício. Mas logo pensou que aquela música era o asilo de gente que se abrigava por baixo de telhados, não sinal de presença amiga de gente que voava pelos ares. Só que tão logo quanto essa esperança musicada se desfez, rapidamente ela voltou-lhe ao ser.

                Porque a orquestra – e era uma orquestra – tornou-se cada vez mais próxima. Sua música era cada vez mais intensa, um compasso cada vez mais ligeiro de movimentos vigorosos e audíveis, potentes e bravios, fortes e indeléveis. Mas a esta altura também as nuvens que se agitavam, panos molhados que torcidos pelo vento despejavam chuva, nublavam-lhe a visão. O som da orquestra rodopiava ao redor de sua cabeça, e por vezes ouviu o clarinete ou a tuba soprando ao lado de um ouvido. Quando bateram pratos, sentiu que foi diante dele mesmo, e viu um vulto negro riscando sua vista.

                Começou então um movimento mais sutil, embora em nada longe de ser violento e possante. Com isso também veio certa calma no vento, certa falta de agitação nas nuvens e certa complacência dos trovões. Isso permitiu a Jofric perceber o tamanho do espetáculo.

                Entre os volteios do vento arredio, rodopiando pelo ar puro e gélido como se pertencessem a tal ambiente tão bem como as gentes pertencem ao andar no chão, uma grande orquestra ali estava, encerrando no ar mais um movimento sinfônico. Vários flautistas, violinistas, tocadores de violoncelo e percursionistas, metais e virtuosos, todos agitados pelo vento, perfeitamente alinhados em suas vestes esvoaçantes, tendo em mãos seus instrumentos musicais. Executavam com talento em meio aquele vendaval uma melodia vigorosa, animada.

                Jofric via todos com estonteio, cada face mais humana do que a outra, mas branca demais para se supor comum, de modo que a vista já confirmava com mil vezes de certeza a gelidez daquelas carnes. Então duas sombras sutis ergueram-se sobre todos no momento que os sons tornaram-se mais fortes – o escritor voador viu que eram sombras de braços, dos dois braços do maestro, suas longas mangas, a farda imperiosa e negra, seu olhar ameaçador, o riso mordaz e o porte altivo – e na ponta de uma das mãos, a batuta de comando.

                Descida a batuta na imitação do meneio do carrasco, raios abriram as nuvens e despejaram luz aterradora, mil vezes mais aterradora do que a sombra, sobre as orquestra, iluminando-a, e róis de músicos começaram a agitação de tímpanos e um riscar das cordas de vários violinos que colocaram os nervos de Jofric e as cristas das nuvens em movimento errático. No corpo, eram as cordas da carne querendo fugir aos pares para todos os lados. No ar, eram as correntes se agitando e mexendo o vapor.

                E os movimentos desvairados daquela maestro giravam pelo céu conforme a multidão de músicos descrevia longos volteios pelo ar. Passavam por cima e por baixo de Jofric, ou ao seu lado, entretidos com seus instrumentos e parecendo ignorar aquele escritor pendurado no céu por força de vento voluntarioso.

                Conforme evoluíram os movimentos da música, o céu tornou-se tão negro e tão pavoroso que o mais horrível dos lagos ou a mais assombrada das cavernas e catacumbas pareceria oferecer aconchego. Estando na terra, fugir do céu é complicado, mas estando em pleno ar, como livrar-se de tal medo? Raios com as lonjuras de rios traçavam estradas de temor pela tempestade que descortinava água e insanidade pelo firmamento. Era noite, devia ser noite, mas nessa escuridão repousava a dúvida da própria hora exata do dia.

                Jofric descrevia voltas e era jogado para as mais diversas direções, um mosquito no vendaval. A chuva lhe crivava, o aguaceiro uma artilharia impiedosa. O som da orquestra o ensurdecia, a luz dos relâmpagos ocupava sua visão, revelando mais daquela orquestra sobrenatural e mais daquele céu que, ao mais se revelar, mais pavoroso ficava.

Então com um último assomo de vento e surpresa acordou no chão de seu quarto de pensão, a janela de sua morada escancarada, a janela do quarto ao lado batendo furiosa contra a parede. Estava sob a luz do quadro, o clarão dos raios projetava desenhos fantásticos nas paredes.


Pôs-se de pé.  Estava transido de frio e encharcado.


As coisas impensáveis que ele pensou a partir dali, narrarei a seguir...

Nenhum comentário:

Postar um comentário