domingo, 7 de julho de 2013

As Rosas e o Punhal, Crônica I, parte V

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Preâmbulo
Hoje, em Mencal, conheci um bruxo pagão que usa lama do brejo local para curar qualquer “aflição do espírito e da carne”. Se ele está certo não me coube dizer, pois estive muito brevemente naquele canto e apenas para refazer provisões depois de uma longa travessia pelos prados a leste da Marca dos Reis. Varyn trocou algumas palavras com o homem e, como sempre faz com esse tipo de gente, fingiu-se de tolo. Fez-se de desentendido até a hora em que o bruxo lhe estendeu um punhado de lama do brejo, ainda pingando a água palustre do odre no qual a terra era mantida. Varyn tomou aquela lama entre as mãos e devolveu-a admirado. Se essa admiração era fingida, jamais o saberei, mas julgo que foi sincero o seu espanto. O que guardarei em minha mente a partir do dia de hoje é que mesmo os homens de maior valia, visão e sabedoria são iguais a mais simplória das crianças quando sai para errar: a terra nos encanta.
– Craterla, diário

T
al como o ferro em brasa que vê na água uma promessa de alívio e acaba por tornar-se forte e íntegro, eu vi no horizonte tomado por picos e neve uma promessa de força. Eu colocara-me em desafio. Elão, vampiro, subiu a montanha com velocidade notável. Deteve-nos a intensidade da nevasca e a irregularidade do caminho, mas por fim achamos, seguindo rastros, cheiros, sons e intuições, a grande reunião dos bárbaros das montanhas.
   O que aquela massa de rufiões via de sagrado em um solstício não me interessa senão menos do que nada. O que tornava esse sagrado digno de sacrifícios de vidas humanas, entendo pouco. No passado aquela escória sacrificava seus inimigos de guerra pendurando-os pelos pescoços em longas cordas, que por sua vez eram atadas a mastros longos que eram cravados nas bordas dos precipícios. Era de sua cultura sacrificar bois da montanha e cabras para suas divindades bárbaras, e o que isso significa para eles não me desperta a curiosidade. Entendo a mente do simplório ao matar e deixar apodrecer o fruto de seu trabalho na pastagem e na lavoura que muito melhor lhe serviriam na mesa ou no mercado porque espera assim agradar a uma divindade que não vê, mas teme – o que muito iguala os Deuses dos homens aos monarcas e seus anjos aos coletores de impostos e vassalos de pedágios. Mas até esse propósito ingênuo de abrir mão de um bem valioso para apaziguar ânimos sobrenaturais fora pervertido naquelas tribos. Sacrificar gente caçada como cordeiros? Que divindade ou ânimo sobrenatural eles esperavam agradar com tamanha tolice?
   Mate-se um homem na guerra, ou em defesa de suas posses, amigos e família. Ou que o seja para preservar a própria vida, ou a santidade de seus ideais contra a ignorância e vileza alheias. Mas abrir a garganta de uma pessoa e ostentar seu sangue para o sol tão distante, o que isso traria de significativo ao mundo?

   Eram tantas as tendas montadas naquele imenso promontório, o pátio limpo de uma fortaleza dos séculos passados, totalmente arrasada, e tantas eram as cores nas bandeiras e fitas agitadas pelo vento que um vidente pensaria estar chegando a um festival alegre, não a um banho de sangue iminente.
   O sol do crepúsculo de inverno baixava no horizonte, e naquele dia viria a noite mais longa do ano. Ritos de uma semana e um dia culminariam ali naquele momento de matança. Elão e eu abrigamo-nos atrás de um muro, um dos únicos vestígios do tempo em que outrora ali houvera uma imponente fortaleza, salvo o pátio quadrado, amplo e desimpedido.
   “Disseste de um plano. Anima-te a contá-lo?”

   “Sim” respondi ao vampiro “Eu conheço algo desses ritos dos bárbaros. Logo chamarão seu grande campeão, o filho de seu Deus-Sol, e o prepararão para executar os prisioneiros.”

   “Matemos este homem. Vamos dobrar os bárbaros pela destruição daquilo que creem inviolável.”

   Não tivemos de esperar muito. As franjas mais altas do sol estavam abaixo da linha das constelações dos reis, indicando o crepúsculo que começava. Sob os urros de imensa horda e o rufar de tambores enormes que sufocavam o clamor de trombetas e chifres, um homem disforme de tão forte saiu de um buraco na terra. Ele tinha o corpo nu e a cabeça redonda, calva pela lâmina, estava pintada de amarelo. Sua face fora pintada com um imenso círculo branco. Era uma clara alegoria ao sol saindo das trevas, risível pela simplicidade mas repugnante pela circunstância e pela feiura dos aspectos envolvidos.
   O homem tinha pelo menos dois metros acompanhados de um par de palmos. Os ombros eram largos como o perfil de um boi, cada braço uma arma esmagadora de carne e osso. A face pintada era aterradora. Pintaram-lhe a pele nua várias sacerdotisas daquela gente, e naquele momento vi que teríamos problemas.
   A tinta que cada xamã portava estava embebida em um milhar de substâncias que, combinadas, atiçavam a fera dentro dos homens a atacar e sentir o sangue do inimigo. Aquele homem respirava a fúria e entraria no frenesi que desconhece a dor e o medo. Tiravam-lhe a mente e a retidão com desenhos curvos e espirais que descreviam a órbita aparente do sol na abóbada da maior armilar.
   E, mais do que isso, meus sentidos de feiticeiro acusaram ali a presença da magia. Aquela gente fazia seu guerreiro imbatível porque assim o criam, e sua fé misturava-se à magia dos símbolos e das tintas, e tudo amalgamava-se com o fervor de tantas mentes brutas. O campeão dos bárbaros era, contra qualquer lâmina, um muro de granito.
   Durante sua preparação, o homem urrava, erguia os braços, ostentava o corpo para a multidão reunida ao redor do pátio. Acotovelavam-se todos para ver o rito de sacrifícios, os mais fortes tinham assim os melhores lugares.
   “Sinto naquele homem a força de mil soldados. Ele atacará com fúria desembestada e força aniquiladora.” Informei a Elão, que pareceu reavaliar seus intentos de matador conforme percebia a sombra do perigo crescendo em seus sentidos aguçados “Ele está invencível porque assim o crê seu povo.”

   “Que fazer para derrubar aquela força profana, então?” Mas eu sabia bem a resposta para esta pergunta, sabendo também o quão difícil seria realizar tamanha façanha.

   “Ele está invencível porque assim o crê seu povo.” Repeti “Se a fé que têm nele falhar, falharão os sortilégios e falhará ele mesmo.”

   “Deitemos seu sangue. Isso mostrará que ele é vencível.”

   “Fácil dizer. Difícil de ser feito.”

   “Não contra tua feitiçaria, Varyn dos Muitos Caminhos.” Com tais palavras e um olhar furtivo, aquele diabo daquele vampiro ganhara-me pelo orgulho – devia eu provar que era feiticeiro mais capaz do que aqueles sortilégios postos por xamãs ignotos das montanhas e mantidos pela convicção de pelo menos uma centena de bárbaros irredutíveis.

   A matança tivera começo – o campeão dos bárbaros usava das mãos nuas para matar os pobres aldeões e camponeses capturados das terras baixas. Ele abria-lhes as bocas até o rasgar da morte, ou batia suas cabeças no chão até pisar em poças vermelhas. Aquela barbárie inenarrável o colocaria em um frenesi selvagem e inescapável dali a pouco.
   Ele urrava conforme matava, e ao fazê-lo erguia um corpo inerte diante do sol que descia como se o fizesse com um boneco de trapos. Seu povo urrava excitado e feliz, e xamãs jovens, muitos crianças, esgueiravam-se para molhar no sangue dos sacrificados panos brancos que certamente usariam para seus ritos bárbaros. Temiam serem vistos pelo homem e logo vi porque – já meio ensandecido pelas tintas e pela magia, ele apanhou um menino de seu povo e quebrou-lhe as espinha erguendo-lhe o corpo acima da cabeça, apenas com a força nos braços. Atirou o corpo inerte para longe, sobre o povo que assistia a tudo com sanha sádica e pavorosa. Eu percebi também que o homem não conjurava sombra alguma no chão.
   Então os urros foram atrapalhados. O cheiro de sangue de bárbaros misturou-se ao cheiro de sangue de inocentes fracos – Elão abria caminho pela multidão. Os ombros e cabeças eram sua estrada, e pulava rápido de um para outro, a todo tempo golpeando aparentemente a esmo, na verdade sempre mortalmente.
   Cabeças talhadas e sanhas silenciadas, ele aterrou no pátio sagrado para os bárbaros. Os jovens que recolhiam sangue fugiram, todos ficaram espantados com aquela ousadia e sacrilégio, caso eles entendam essa noção, mas o campeão continuou a matança, parecendo não ter notado nada. Ele caía em frenesi.
   Mas Elão chamou-lhe a atenção – apanhou de sua adaga e atirou-a certeira contra o homem. A lâmina, que com a força profana de Elão teria enterrado-se mortalmente no olho de um homem qualquer, apenas riscou a vista daquele matador e caiu no chão sem ter deitado uma gota de sangue ou arrancado dele mais do que um grunhido de dor.
   Com olhos arregalados e um urro demoníaco, o campeão dos bárbaros soltou sua próxima vítima, que como todas as outras berrava sem pausa, e carregou contra Elão como se fosse um touro louco.

   Tanta violência enojar-me-ia a memória não fosse a genialidade ou simplicidade que de quando em quando ocorria para facilitar-me a avidez do relato. E, naquele momento terrível, quem mudava as fortunas era eu. Varyn, o Agoureiro, eu estava sentado com pernas cruzadas uma sobre a outra, no alto de um muro arruinado, a visão cravada no coração daquele bárbaro coberto de glifos. Embora aquela magia fosse potente, eu via claramente suas falhas. Eu via além e por trás daqueles símbolos. A massa de forças envolvida naquela jaula de espirais e glifos, alimentada por fé e esporeada por sadismo estava cheia de pontos francos. Era eu um mestre tecelão vendo buracos imensos, rombos vergonhosos na trama tecida por um mero aprendiz. Era eu um mestre escultor vendo sulcos comprometedores na obra de amadores. Era eu um erudito letrado encontrando erros tacanhos e feios na escrita dos escribas púberes.
   Era eu um arquimago, Cronista-Mor-e-Primeiro da Convocação dos Vários Caminhos observando e percebendo com desgosto o trabalho bárbaro com a Arte.

   Minha visão virou um dardo inescapável e infalível que atravessou as falhas primárias daquelas proteções e símbolos de força. Enterrou-se com ponta de cristal, memórias e vontade mais forte no coração de carne daquele homem selvagem que tentava agarrar Elão em um abraço de morte.
   O campeão dos bárbaros sangrava copiosamente pelos vários talhos abertos em sua pele por Elão, mas aquelas feridas superficiais, se houvessem sido desferidas sobre homens em condição normal, teriam talhado as fibras dos músculos até os ossos. Mas o que fez aquela criatura possuída pela raiva de seu povo parar não foi a dor que Elão lhe causava, esta desconhecida para ele, mas foi minha magia, superior àquela que o enchia de pavoroso vigor.

   Ele tombou sobre um de seus joelhos quando faltou-lhe a força. Eu atacara o ponto certo – minha mente estava devagar, pois devagar eu queria seu coração. Não me interessava controlar aquela mente caótica, não me interessava controlar aquele corpo disforme, por isso eu controlava seu coração. Eu roubava-lhe os batimentos cardíacos, escutava o fantasma de sua cadência em meus pensamentos. O sangue pulsava em seu peito imenso conforme minha vontade e pensamento assim desejassem, e eu os fiz vagarosos e ineficazes como as ideias mais desesperadas do tolo em apuros.
   Elão aproveitara a chance. Naquele momento de fraqueza eu senti a fé dos bárbaros fraquejar. O exército de noções debandou com a morte do rei. O bando de raivas fugiu com a morte do alfa. E com a queda daquela fé, veio a queda da magia que tornava a carne daquele homem quase que inviolável.
   Com três cortes ferozes, sedentos de sangue e som, Elão decepou as mãos do inimigo, uma de cada vez, e castrou-lhe de maneira terrível.

   Os bárbaros não emitiam mais som algum. Os gritos de dor e fúria de seu campeão roubaram o que restava de fé nele. Era apenas um homem mutilado – que nem mais homem era.
   Elão cuspiu-lhe a face e recuou. Encarou a todos os bárbaros com sanha diabólica nos olhos. Arriscáramos uma revolta terrível, talvez até a eleição de outro campeão – mas não. A perda da fé é a perda da fé, e por si só se implica a derrota de todas as convicções. Aquela gente perversa perdera o gosto pela batalha, perdera a fé em seus ritos.

   O vampiro do norte pegou as correias dos prisioneiros e levou-os consigo pela estrada principal que levaria para as terras baixas depois de muitos volteios por caminhos congelados e tortuosos. Eram espólios de um vencedor, isso os bárbaros reconheceram. Afastaram-se quando Elão passou, e ele partiu puxando inúmeras vidas salvas, para sempre marcadas pela violência. A fé de muitos morreu naquele dia, a de tantos outros acabava de renascer.

   Eu pus-me de pé. Pensei se seria útil encontrar Elão novamente. Eu sabia que seria inútil alongar-me com tais pensamentos, pois sabia com maior clareza que independente de minha vontade e ligeireza eu o veria novamente. Eu sabia também que o vampiro estava satisfeito – tinha alegria em saber que os bárbaros perderam a fé em seus ritos mais selvagens e sangrentos, mais alegria do que teria se tivesse, como antes dizia, matado a todos os saqueadores.

   Evadi a visão da cena que seguiu, e evado meus comentários da mesma agora. Basta dizer que o que o povo tornado descrente fez com o campeão e com os xamãs foi indescritível. Não achariam entranhas inteiras deles no fim daquela noite mais longa.

   Pela noite eu deixei as montanhas. Não sei se Elão levara os libertos até as terras baixas ou se logo os largara e seguia seu próprio caminho. Não me interessava muito. Como tributo à providência que em primeiro lugar nos unira naquele dia, eu me desvencilhara dele e esperava o reencontro por capricho da mesma força. Apenas queria que ele não fizesse mal àquela gente débil e maltratada.

   Quanto às amputações que testemunhei na montanha, elas me lembraram de algo muito grave cuja urgência de súbito cresceu em minha mente. Um inimigo meu, um castrado, aparecia naquele tempo com frequência em meus sonhos e adivinhações. Eu sentia que nosso reencontro desfavorável estava por vir, e que por algum motivo Elão estava relacionado a isso.
   Enquanto a ameaça séria que aquele eunuco vingativo representaria para mim e para Elão crescia em meu pensamento, eu ainda divertia as conjecturas com outras ideias.
   Pois uma vez Seraf, meu pupilo mais impetuoso, perguntou-me o que eu tinha a dizer sobre o sexo. Ele fugira por pouco de uma turba de fazendeiros revoltados que estimavam grandemente a virgindade de suas filhas. Ter se deitado com três de uma mesma família em uma única noite foi demais para o senso de decência local, de modo que Seraf fugiu de um estábulo de amores apenas com a calça e usando o chapéu de uma das moças.
   Mas sua pergunta eu respondi com orgulho, anoto-a: o que dizer sobre o sexo?

   Um pacto de almas e carnes, meu caro.

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