domingo, 14 de julho de 2013

As Rosas e o Punhal, Crônica Dois

Crônica Segunda – Das tristezas que abateram-se sobre Varuzal, pequena vila, e do encontro com velhos conhecidos.
Datação – Últimos dias do Abril, Marca dos Reis, fronteira contestada entre Corussa e Fárgia.
Arquivo – Pessoal
Segue-se agora o relato de acontecimentos de sonhos e terror, mistérios desvelados e maravilha, como contados por mim, Varyn, Cronista-Mor-e-Primeiro e Agente de Campo da Convocação dos Vários Caminhos, Arquimestre no Conselho e homem há muito vivendo.

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Q
uando deixei Farga, a província real do reino de Fárgia, fi-lo com a intenção de chegar a Corussa em alguns dias de viagem pelas estradas tão cuidadas daquela região. Atrasaram-me chuvas pouco comuns para a estação, e em tal ocasião não estava sozinho. Eu encontrei muitos refugiados do norte vindo em levas desajustadas para a segurança dos reinos abaixo da Serra Fria, e com aqueles que falei não obtive informações úteis.
   Não estava eu sozinho em tal ocasião. Acompanhava-me Seraf de Sarão, um de meus pupilos, e ele sempre me foi boa companhia pela leveza do coração e a franqueza de atos e de espírito. Se ele por vezes deixava-se enervar e levar pelo momento, fácil enrubescendo-se do sangue quente, por vezes também foi ele meu elo mais valioso com aqueles momentos em que a decisão tinha de ser mais emocional e gentil e menos racional e franca.
   Um jovem rapaz de olhos claros e cabelos mais claros que o cobre, ele atrasava minha andança com os suspiros e coxas que o seguiam, detendo-nos em lugares insuspeitos. Fosse fugindo de hordas de fazendeiros ou de um pai ou marido magoado, ele fazia-me viajar sempre com a pressa pelo horizonte e a vigilância constante por sobre o ombro.
   Mas em Farga ele reencontrara um amor de outrora, Miaga, uma bela aprendiza de cortesã, e meus olhos, que olham também para o futuro das coisas e das pessoas, viam nela uma importância imensa por vir, sobretudo para a vida de Seraf. Creio que apesar de se gostarem, jamais ficarão juntos, embora seus destinos estejam fadados a se cruzar inúmeras e inúmeras vezes, sempre um em prol do outro.
   Como ele se entretinha com o sorriso amigo e a coxa ousada de Miaga, eu não tive preocupações na minha passagem por aquela província. Tive com o casal real e a camarilha em um par de audiências que não me foram custosas para conseguir – eu vinha em missão da Convocação, com trajes e sinetes que mostravam que eu não estava ali como andarilho.
   Levei missivas do Conselho endereçadas a alguns nobres das mais ricas e prestigiadas casas locais, precisávamos de investimentos para cobrir despesas com a guerra e Fárgia não tinha tais preocupações, tendo, por outro lado, a sobra de recursos. Tudo o que consegui arrancar daquela gente, contudo, nas duas audiências, foram promessas quase que infundadas e carroções carregados de madeira, carvão e armas de forja comum. Aproveito este escrito para citar os modos faltantes entre alguns dos nobres de Fárgia, que pela minha língua e mão que escreve serão conhecidos em vários cantos deste continente como insensatos, sábios por embuste e maus amigos.
    Não todos, disso assegurem-se os bons entre eles, pois se houve missivas endereçadas a nobres fidalgos de Fárgia, eu dirigi-me pessoalmente ao Senhor Calado, que por nossa amizade e por comprometimento com ideais maiores, demonstrando assim visão, despachou ordens de reunir seus comboios em uma grande frota que levaria homens e suprimentos pelos caminhos fluviais até Corussa e o norte do Vale das Atalaias. Deste homem e de sua casa espalharei a fama e a boa visão.
   “Teus modos como escritor variam.” Disse-me Zur, minha caveira falante, conforme escrevi estas linhas “Que façam bom uso de teu exemplo aqueles homens vindouros que se aplicarem à pena.”

   Mas Zur talvez desconhecesse as razões por trás da pretensa vaidade dos fidalgos de Fárgia. Assim pensariam também os simplórios que me lerem ou souberem da história por minha narração. Para quem tem visão e prudência à frente das opiniões, nunca se nega um pedido da Convocação sem forte razão para justificá-lo. Eu sabia, e também o sabia o Conselho, que os nobres de Fárgia há muito metiam-se com gentes do Grande Comodorado. Essa organização gananciosa começara entre fabricantes de graxa e funileiros e então controlava nações e dispunha de exércitos e máquinas de guerra jamais descritas. Por sua tecnologia e amplos recursos os Fargianos se interessavam e muito. Para navegar as águas do mar interno e manterem-se os grandes comerciantes que se gabavam ser, o povo de Fárgia buscava cair nas graças do Comodorado, que só cederia seus administradores e prospectores, além de seus engenheiros incomparáveis, mediante uma vantagem ofertada que fosse muito maior do que aquilo que investiriam e emprestariam. Agiotas montados em cavalos de guerra, extorsões feitas à base da pólvora e do sorriso, a isso se resume o Comodorado. O Duque Handelsmar, que ouvi falar ser o chefe desse conluio de banqueiros de armadura, era conhecido de norte a sul com palavras rudes e tão ferozes que eu, não dado a boatos, não negaria a maior parte deles.

   Ao sair de Farga, portanto, pesava em meu cenho o rol de atribulações que os nobres de Fárgia e a influência crescente do Comodorado traziam à minha mente. Sarão estava quieto e pensativo, já saudoso da companhia agradável de Miaga. Eram eles tão jovens e sinceros um com o outro, e apesar dos luxos da carne a que cada um dava-se, eram entre eles inocentes e inseguros como o são as crianças que se amigam fácil e naturalmente.
   O silêncio dele em muito me ajudou a pensar, e por isso lamento. Mandei mensagens e mais mensagens para o Conselho durante aqueles dias de viagem, e pouco aproveitei dos caminhos pedregosos de Fárgia. Evitamos as vilas e as aldeias, e dormimos próximos à estrada, mas poucas vezes ao longo da jornada em direção ao oeste. Pensava eu que seria melhor ir até Auglandoc, pois o encontro com um conhecido pesava em meus augúrios. Em Angladoc eu esperava rever Elão de Varraquêz, um vampiro do norte com quem tive uma aventura sangrenta nas montanhas de Deltim, no reino que citei.
   Fui impedido, em parte, de ser eu o agente principal desse reencontro, embora eu soubesse em minha mente que tal encontro era inevitável.

   O fato é que no sexto dia de viagem Sarão e eu encontramos uma vaca morta próxima à estrada. A podridão do animal empestava o ar. Nada demais para uma região de lobos, não fossem marcas que me chamaram a atenção. Sendo Sarão um licântropo e entendido de ataques de besta por ser filho de armadilheiro e caçador, não demoramos a concluir que não foi obra de besta, mas de mão humana a morte do bovino.
   Intrigou-me aquele abate porque não havia sinal de uso da carcaça do animal. Quem quer que tivesse dado fim à vida da vaca, o que fora feito com uma lâmina grande que abriu um talho de fora a fora no pescoço e na barriga do bovino, o fez sem propósito aparente. A carcaça jazia inteira.
   Sendo os camponeses incapazes de dar fim a um animal daqueles sem que seja para aproveitar-lhe a carne ou o couro, pensei se não fora abatida por motivo de doença ou ataque, só que cedo descartei tais hipóteses quando Sarão achou restos de parafina ali perto, sob a sombra de uma pedra. O animal fora morto por motivos ritualísticos, alguém usou de necromancia para adivinhar sortes e obrar sortilégios. Tal fato causou-me ainda maior estranhamento, pois os Fargianos tinham aversão às coisas da magia e da Arte – o que lhes ajudou os nobres a negar pronto auxílio à Convocação em prol da disposição quase prostituída de agradar o Comodorado.

   “Obra de gente do campo, com certeza.” Disse eu, analisando o material das velas, que era de simples origem, e ligando às evidências o achado da carcaça do animal. “Quem quer que o tenha feito, e tão próximo a uma estrada que não é encruzilhada, o fez para consultar nas vozes da morte indícios vindouros.”

   “Devemos nos preocupar com isso?” Perguntou Sarão, agachado junto à pedra. Ele não queria, em parte, entediar-se com uma região campesina de Fárgia, mas por outro lado atiçava-lhe o cheiro da aventura e do desconhecido.

   “Não creio que seja necessário. Vamos até Varuzal, uma vila que fica aqui perto.”

   “Ainda é em Fárgia?”

   “Sim e não. Fica na Marca dos Reis, e disputam-na Fárgia e Corussa. As pessoas que ali moram são de ambos os reinos.”

   Encontramos, no caminho para a citada vila, mais duas vacas mortas. Uma delas, que era toda preta, fora decapitada e sua cabeça estava sumida.

   “Ainda não é necessário nos preocuparmos?” Perguntou Sarão. Meu silêncio respondeu-lhe enquanto eu observava a carcaça do animal preto, que encontramos pouco antes do cair da noite.

   “É provável que os camponeses já estejam atentos a isso.” Disse após muito analisar o que encontramos “Vamos nos inteirar dos acontecimentos mais recentes quando chegarmos aos portões de Varuzal.”

   A noite era a dona do céu no momento em que as luzes de Varuzal revelaram para nós muitos insones na pequena vila. O que estava acontecendo naquele local ficou implícito para mim quando nossa entrada foi recusada.
   “Se não são mercadores nem gente da igreja, podem dar meia-volta e ir embora. Durmam com a palha nos campos, procurem cabanas de gente da terra. Aqui só entram amanhã. Vão embora.”

   E por mais de uma vez essa foi a resposta tácita do porteiro, que ignorou completamente qualquer argumento nosso.
   “Por que não diz a ele quem é você?” perguntou Sarão assim que a portinhola da guarita do vigia se fechou pela oitava vez naquela noite.

   “Não o quero, e não sei se ajudaria numa hora como essas. Essa gente está com medo. Vamos, quero um jeito criativo de entrar na vila.”


   Pronto. Já falava em mim o aventureiro que eu era naqueles momentos em que eu achava que o fogo aceso era mais interessante do que o uso que propositava as chamas.

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