segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Por seu coração arrependido

Ela demorou a perceber que cena pitoresca fazia-se em sua janela a cada palpitar do Sol no seio do firmamento.

Começara com um simples encantamento de começo de dia: um corvo estava no alto do galho do sabugueiro, analisando vagamente as cordas do balanço de Aninha, quando voou até sua janela, fez uma curva lisonjeira e pousou no terreiro diante do peitoril com poucas flores.
Ela ficou um tanto intrigada com o comportamento do pássaro, mas como não era dessas moças de se impressionar sozinha, não temeu nem o preto agourento das penas tinteiras da ave monotônica.
Mas o corvo não se contentou com isso. Voltou ao sabugueiro em flor e com o bico ferramenteiro tirou de lá algumas flores - umas muitas, talvez, visto como são pequenas as flores de um sabugueiro - e voltou a pousar no terreiro de fronte para a janela.
Não vindo convite algum, ele deu um pinote sem cerimônia e depositou no peitoril as flores brancas que trazia no bico. Um ramalhete muito pequeno, mal serviria de enfeite para o dedo dela. Mas não era para ela.

Ido o pássaro cor de noite sem estrela, ela ficou divagando o que era aquilo. Era crente dessas coisas que as pessoas gostam de ser crentes, então achou melhor deixar pousada ali aquelas flores de sabugueiro de balanço de irmã mais nova.
Qual foi sua surpresa! Dormia de janela aberta para ouvir melhor a ululação do vento ou os sons da chuva, mas pela chegada do ocaso a melodia de um rouxinol a despertou sem cerimônias de sonhos pré-dormidos. O passarinho de cores da terra e bico vermelho cantava estridente e sem preocupar-se com o ruído dos grilos.

Voou-se embora deixando um arilo muito pequeno e doce no peitoril. Não havia mais flores ali. Um arilo de choupo, como bem se sabe, se souber o que é choupo, é a única parte de tal árvore que não é venenosa e amarga. Pelo contrário, é doce e vermelha como a inocência de um jovem coração que bate acelerado por paixão, empurrando o sangue quente com medo de se magoar, mas puxando-o de volta para o peito aterrorizado com a ideia de perdê-lo...

Ela não sabia o que fazia! Ajuntou o arilo sem saber direito o que faria, mas pensava já em falar com a mãe. Não. Além de um ou dois terços bem rezados e aquele carinho que mata todo malquerer, não haveria nada de consolo na carne que lhe fez carne. Estava só nesse momento de divagação.

E eis que quando deu por si, a manhã já havia chegado do outro lado do horizonte e foi durante a aurora, quando reclinavam-se as estrelas do céu, que chegou ao peitoril de sua janela sempre aberta o corvo, o mesmo bendito que havia farfalhado suas asas pretas sobre o terreiro cheio de poças de água de chuva e sonhos de um gramado vistoso.

Trazia no bico, dessa vez, uma vetusta colherinha de prata, brilhava como uma pequena estrela roubada sem ser vista. Quanto chá já teria adoçado? (pois são as colheres que adoçam o chá. O açúcar é despejado nele contra sua vontade, fica de birra, mas eis que a colher, sempre a conciliadora mor, dá um jeito de açúcar e água quente fazerem as pazes e adoçarem um ao outro).

Mas a ave não foi embora de jeito nenhum. Começou a bicar o peitoril com insistência, e como ela o ignorasse, notou que se não satisfizesse os caprichos daquela ave imperiosa, haveria de chamar atenção da casa inteira para seu quarto, e seu quarto era um santuário de vários lamentos e poucas rosas ganhas com felicidade.

Assim que o corvo bicudo começou a grasnar, ela percebeu-se dando o arilo de choupo para ele, sem medo de levar uma bicada ou arranhão por ser tão teimosa. A ave apanhou o arilo muito diligentemente e foi-se embora, não sem antes cutucar um pouco a colherinha de prata que havia catado por aí.

E pela noite que recém pisava as montanhas do horizonte repetiu-se a melancolia despertada pelo canto de um rouxinol. Ela despertou e sentou-se na cama, fez até menção de chamar quem quer que fosse para ouvir a ave, mas ao colocar um pé frio para fora da cama amarrotada, a ave deteve-se em suas oitavas e abriu de leve as asas.

O rouxinol cantou mais um pouco, então levantou vôo com a colherinha de prata em sua boca e deixara ali um pedaço de pão seco e mal-dormido.

E foi já ansiando pela manhã que esperava sentada diante de sua janela chegar o corvo. Chega o corvo. E naquele pedaço de pão o corvo depositara tanta esperança que deixa ali um botão fechado de rosa já vermelha. Sem sangue, sem dor, sem espinho.

Um lindo, humilde, devotado, sincero botão de rosa vermelha.

E ela, em lágrimas, esperava aflita o final do dia para ver chegar o rouxinol. Chorava e chorava, aguava os pés com suas lágrimas de determinação e aflição! E quando, muito pouco antes da noite, chega o rouxinol, a ave junta-se a ela em um canto triste, mas cheio de esperança. Ela chora. A ave canta. Ela ri. A ave canta. Ela soluça e sussurra. A ave canta.

Ela promete que vai decorar cada parte da canção. A ave vai-se embora e leva consigo o botão rubro de flor.

Aquela noite, ela não dormiu. A canção do rouxinol fica repassando em sua cabeça, e ela assovia para si mesma todas as notas da melodia, queda-se silenciosa para confirmar na memória se não esquecera ou trocara algum tom, se não se perdia na elevação de um timbre ou de uma das notas musicais...

Mas a pobre acabou por cochilar um mínimo, ínfimo instante. Ela perdeu-se no sono da aflição e não conseguiu evitar que sua cabeça bambeasse um pouco que fosse para um lado ou outro, mas no instante seguinte já estava desperta, os olhos em fogo, cantando para si mesma a canção do rouxinol.

E para seu alívio chega com o raiar do sol o corvo preto, o peito estreito ainda mais apertado pela dor da esperança.

E ela pôs-se a cantar, cantava e cantava e cantava, e não havia quem acordasse na casa, nada nem ninguém ali poderia sequer estar disposto a interrompê-la!

Antes o tivessem feito. Antes ela pudesse ter se calado. Por descuido do destino, trocou uma única nota. Uma única nota, nada mais... Todos os timbres certos, os tons elevaram-se e diminuíram com perfeita maestria... Mas uma nota trocada pusera tudo a perder.

O corvo, entristecido e de coração partido, jogou-se cabisbaixo do peitoril e mal agitou as asas. Foi-se embora num voo baixo, sem vontade alguma de viver.

E por estar atônita, vendo que alguma coisa fizera de errado, ela começou a buscar durante horas a fio a ave ida e perdida, mas foi em vão. Lembrara-se, percebera a nota que havia trocado em seu canto... Mas era demasiado tarde. Voltou para casa e viu no meio das ervas daninhas que sufocavam o terreiro o rouxinol, pulando desesperado. Berrava estridente para ela, que não sabia o que fazer.

Chegou a noite, chegou a madrugada, chegou o fim do dia, chegou o começo de outro dia... Ela e o rouxinol faziam companhia um ao outro em sua vigília sem pausa e sem perturbação. Mas eis que já era manhã alta, sol quase a pino quando deram-se por vencidos. Não havia mais corvo.

O rouxinol cantou durante o resto daquele dia algo tão triste e tão desesperador que enquanto a ave cantava em sua janela, ela abraçou-se com a roseira mais velha e espinhuda no jardim que murchava e tudo o que fez foi chorar convulsivamente durante o resto do dia também. Abraçava contra o peito os espinhos secos, trazia para perto de si as folhas ásperas... E de repente tudo parou.

Ela desprendeu-se da rosa que já lhe devolvia o abraço. Caminhou até a janela. Não havia nada nem ninguém ali. Caminhou durante muito tempo mais, e achou ali, atrás de uma pereira morta o fruto de seu descuido tão vil...

O corvo agonizara ouvindo a mais dedicada canção de amor. Morria envenenado durante um dia inteiro quando ouviu as notas do rouxinol. Chorou, porque todas as aves condoeram-se de seu sentimento e deixaram que seus olhos de pássaro deitassem três lágrimas, em nome ali de todas as aves que já quiseram chorar e nunca puderam.

E ali, aninhado sob as asas do corvo, o rouxinol postara-se, quase mudo, sussurrando também seus últimos instantes de vida para aconchegar seu amor de tinta emplumado no seu ninho de morte...

Mas então foi ela que cantou. Cantou para as duas aves, e ninguém jamais escutara aquela canção. Cantou tanto que sua garganta fugiria se pudesse, magoada e entristecida. Cantou até os nervos todos se estenderem, ficarem vazios de sentido e entorpecidos. O copo perdeu-se na canção, virou-se e revirou-se, era já uma confusão profunda de notas e acordes dos mais sensíveis, invejáveis até para os imortais que observavam em silêncio prostrado...

E então ela também parou de cantar, tombando mortificada. O silêncio que veio a seguir foi tão horrível que os Deuses, se achassem certo, mandariam todos os barulhos do mundo virem ao máximo de seus volumes, fariam toda música e todo som exaltarem-se para cobrir infimamente aquele silêncio gritante. Os pássaros queriam berrar até suas pequenas gargantas não mais viverem, mas não conseguiam parar de chorar sem lágrimas. As árvores estalariam os galhos até ficarem sem folhas e a própria terra se abriria para receber os relâmpagos e trovões de um céu que se rasgava em dor...

Mas houve apenas silêncio.

Então, como depois de um dia em que as mágoas adormecem e acordamos magicamente mais curados, a moça sentou-se em sua cama, observando com amor a janela, agora entreaberta. Ali estava alguém cantando, era o rouxinol. Ia ali toda a manhã, cantar algo belo para ele e para ela. E toda manhã ela deixava na janela uma colherinha ou umas florzinhas brancas, e toda manhã ele trazia para ela um fragmento lindo de canção nova.

Se alguém um dia se perguntasse porque depois de tanta tristeza ela ouvia diligentemente o rouxinol que a perdoara, somente a roseira que ansiava tanto, mas tanto por um novo abraço poderia responder.

“Ela escuta, sim. Ouve atentamente. Ela escuta pelo corvo e pelo rouxinol. Ela escuta atentamente, sorrindo, quase permitindo-se ser feliz. Escuta, escuta por seu coração arrependido.”

Ao longe, quando ia chegando a noite e as estrelas ascendiam acesas, alguém podia ouvir os pássaros cantando, ludibriados por seus sonhos pueris, e sua melodia ia longe, junta, ecoando até as casas no céu!

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