quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Cinza-de-Cinzas e Branca-de-Neve

A mim:
Língua ingrata. Me traíste tanto. Atraiçoas ainda quem te quer bem!
Mãos facínoras. Antes tivesse as perdido para os martelos a deixá-las falsear.
Pés incorretos. Por que me levaram para tão incertos caminhos?
Olhos... Oh olhos, que posso dizer de vós? Nada, nada que fizesse mal. Súplices, inocentes testemunhas de meus crimes, janelas irreprováveis, lavados pela chuva, embotados por lágrimas amargas derramadas por um não sei que que doi não sei onde nem porque...

A eles:
Oh olhos, quisera tê-los feito mais - falassem, ouvissem, mostrassem, guiassem, escrevessem... Que não daria para que meus olhos apenas fossem tudo? Fossem meu peito, meus braços, minhas mãos, meus pés. Deixaria-me levar por olhares apenas, indo sempre parar mais perto do que minha vista almeja, sempre em movimento. A tudo tocaria apenas com a visão, sem jamais machucar ninguém... O que fizesse, olhando apenas eu faria, deixando pura a intenção por não haver jamais realização.
Ah olhos, piscai o quanto puderem, esquivando-se do triste espetáculo que diante de vós monto... Castiguem-me! Chicoteiem minha face, dobrem-me as pálpebras, inundem-me as órbitas... Que misericórdia mereço eu?

Ao fantasma:
Maldição! A quem engano? A quem me engano? A virtude tão fácil vira pecado, a ignorância tão logo mostra-se inteligência, a falácia leva mais que sinceridade...

A ti:
Mulher, queres meu corpo? Toma-o, não o mereço!
Queres meu sangue? Derrama-o, não o quero!
Queres minhas lágrimas? Toma-as todas, confio todas a ti!
Queres meus braços, minhas mãos? Rogo que os leve, leve para junto de ti!
Queres meu calor? Rouba-o todo, que dele não sou digno!
Queres o quê mais? Minha alma, minha razão? Hah! Dar-te-ía elas se ainda as tivesse, mas eis que olhe, contigo elas já estão!

A mim, novamente:
Maldição, ledo engano meu... Querer fingir que são brisas as esporas do vendaval, querer falar de garoa quando o céu se desfaz em chuva, ser uma brasa quando queimam as entranhas das montanhas, um nevar tão pouco quando no inverno tudo morreu...

A ti, novamente, mil vezes a ti:
Mulher, suplico-te: Guarda-me todo junto, bem junto de ti. Usa-me, maltrata-me, queima-me. Não me deixes mais sorrir. Agarra-me, arrasta-me, afoga-me, congela-me...
Mas sempre junto de ti.
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Camões!
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que, como um acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
O vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma.



Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já foi coberto de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

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