domingo, 9 de março de 2014

Um trecho

Trecho do primeiro capítulo de uma história que venho trabalhando aos poucos.




(...)

   Empédocles. Aquele cara chato que ficava mendigando a atenção dela. Não sei bem porque ele tinha esse nome, talvez fosse erudição dos pais. O coitado não aguentou de saudades e numa overdose de tristeza, comiseração e Send me an Angel dos Scorpions ele decidiu se jogar da ponte do Rio das Almas.
   Também, caso não tenham percebido, ela é daquele tipo de mulher que junta você e as encrencas.

   Claro que podem não ter percebido! Eu mal comecei a contar.
   Acontece que pouca gente deu importância ao fato do programador da empresa ter faltado naquele dia. Ele nunca faltava, mas quando finalmente faltou... ninguém percebeu. Ninguém deu bola.

   E assim foi que, por volta das catorze horas de domingo um grupo de montanhistas, escaladores e aventureiros profissionais e amadores chegaram até a sombra do portal para o parque Monte Alma, todos vestidos com aquelas roupas de esporte e trilha que tanta gente compra porque acha legal mas nunca usa no mato ou na trilha.
   Eles começaram a se dividir em grupos para limpar o local. Uma rave recente havia certamente emporcalhado tudo por ali. Era proibido fazer uma festa tão barulhenta em um parque, mas a polícia nem dera as caras por lá.

   Um dos grupos estava menos eficiente porque seu membro mais pró-ativo e mais capaz estava lutando uma batalha em sua própria cabeça. Ele estava tão distraído que já havia colocado o capacete de escalada como se fossem dali direto para a montanha.
   Ele ainda estava pensando na ruiva das sardas e das meias de arrastão. Ela era aquele tipo de garota que une você às encrencas. Era mais um daqueles momentos em que ele se odiava, se ridicularizava, se consolava e se enchia de esperança – tudo às socapas e às etapas, conforme ia pensando sua situação. Ele queria ela. Simples. Sempre. Demais. E ela nunca vinha o suficiente, o que ela se fazia para ele nunca era o suficiente para ele. Ele precisava de mais dela. Um vício tóxico, talvez, pela carne e pela voz dela, pelo que ela contava da vida dela para ele, pelas reflexões que ela fazia ao dizer que havia algo de errado com a cidade, pelo olhar dela que injetava nele alguma coisa que o fazia escravo e desesperado por dominar e obedecer.
   E nessa querência desesperada que era física porque misturava as urgências de um animal no cio e ao mesmo tempo mental e abstrata porque envolvia noções mal curadas de romantismo e paixão insensata com toques de emoção explicada, ele ia se consumindo num vício ingrato que não lhe fazia sensato. A fé se erodia. Como o mais miserável, abjeto e baixo dos viciados, ele sabia o que era aquela alegria intensa e única, pura e inegável que o veículo e fim do seu vício lhe trazia, apenas para afastar aquele vulto do vício em si e todo o vazio e sofrimento que derivam dele.

   É querer fugir desesperadamente do sol, não aguentar sua luz, tremer e murchar diante do seu brilho. Então chega uma sombra em sua casa que fecha todas as cortinas, bloqueando toda luz, salvo por uma única fresta deixada talvez de propósito por onde entra um único facho. Aquele facho é luz, e a luz se teme, mas é tão pequena diante de tanta escuridão que ela parece apenas uma lembrança, um agouro, um perigo distante, momentaneamente esquecido.

   Cada minuto passado com ela tinha o valor de horas porque ele sentia esse desespero por ela e o desespero de saber que tinha apenas algum tempo com ela antes de tudo se acabar e voltar a ser desesperadamente como antes. Um nojo. Um tédio. Quando as coisas davam certo sem ela, era tudo pela metade, tudo desconexo. A felicidade intensa que embolava suas entranhas só vinha dela desde quando ele conseguia se lembrar que lutava para ser contente.

   Ficar com ela. Que delícia de sensação. Ela entrava pela porta do apartamento e era como se a vida valesse a pena, cada segundo. Não havia mais problemas, não havia mais perigos, não havia mais preocupação. Só havia ela, e ele, e o tempo. A distância ia ficando cada vez mais curta. Mas o tempo passava junto com ela, e cada segundo daquela intensidade de carne e de sentimento se desfazia porque estava mais perto do fim inevitável. Algo tão bom não poderia durar muito, e essa ideia martelava o cérebro dele com a força e a certeza de um tiro a queima-roupa.
   Cada abraço, cada beijo, cada olhar dispensado a ela era um gesto de extrema fé e prazer, mas manchado pelo pesar de saber que podia ser o último. Ele estava abraçando o vendaval, beijando dinamite, observando com calma e contentamento a mais violenta e instável das reações químicas sob um controle estranho e não natural.

   Vício. Alívio. Objeto e ser. Tanta emoção e carne. Ela entrava na casa dele, uma sombra. O sol ficava lá fora, barrado. Mas havia algo do sol que entrava, lembrando que o tempo é claro e passa, lógico. Mas foda-se. Ela fechava a porta. Ela trancava a porta do apartamento dele. Ele sabia que se olhasse pela janela veria ali a imagem embaçada de um assassino, de um ladrão, de um maníaco. Mas ela estava ali, e ele sentia-se isolado. Bem. De bem. Em um estado estranho e caótico demais, nervoso demais, desesperado demais para ser chamado de paz.


   – Rapaz, agora ferrou! – E como se arranca coisa de coisa, ele foi arrancado daquela confusão de pensamentos de merda que não o levariam a nada. Olhou para o lado e viu um de seus companheiros do clube de escalada olhando para baixo com os olhos todo espanto.

(...)




"Sunday Morning" ~Arte de Jonas De Ro
[ http://jonasdero.deviantart.com/ ]

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