domingo, 2 de agosto de 2009

O Lance na Mesa

À MESA, estavam cinco. Uma velhota amarrotada, tanto na pele quanto nas vestes, medonha e desdentada. Sob o capuz negro, mechas ensebadas de cabelo branco imundo. Ao lado da desagradável, uma donzela linda de lábios negros como o carvão, pele branca e doentia, e mãos tingidas pelo sangue vívido. Alisando a barra de veludo preto do vestido da donzela, um homenzinho corcunda e de olhar claudicante, sua aparência deplorável despertava compaixão, parecia sentir-se indigno de estar ali.
Do outro lado do móvel de pedra fria, na cadeira de espaldar alto, uma mulher de meia-idade com longos cabelos grisalhos que formavam ondas, como uma cascata de fios de prata que desaguavam em seu seio. Sua bata perolada era límpida e imaculada. Ao lado dela, esparramada na cadeira e com as pernas abertas, uma jovem de pele rubra que parecia pulsar com o calor da emoção. Sorria, boba, e seus cabelos negros e secos chacoalhavam sem vento algum soprar por perto. E, por ser estranho, embaixo da mesa estava a outra figura: um esqueleto enrolado em mantos escuros, mas não tinha face visível por baixo de seu capuz. Na verdade, não tinha face, apenas o liso das vértebras e o fundo da caveira sem expressão. Foi ele quem começou a rodada: de onde estava, estendeu o braço descarnado e dobrou-o por cima do tampo da mesa. Abriu a mão e deixou cair o objeto desejado: a alma. E, de longe, contemplando aquela cena em total horror, o morto via sua essência sendo alvo de cobiça naquela mesa de aposta.
Com a voz das pragas e do luto, a donzela de preto, cobiçosa, deu o primeiro lance:
– Aposto mil lágrimas de órfãos e doze gritos de viúva! O morto é meu, pois quero o que fui buscar!
– Teu não! É daquele que oferece um dia de descanso para cada seis dias de labuta, e quatro horas de repouso para cada dez horas de vigília e mais outras de andança! – e era a mulher grisalha de bata perolada batendo o punho fechado e calejado no tampo de pedra. O homenzinho às costas da dama de negro ergueu os olhos, malicioso.
– Brincas! Há de ser de quem oferece a náusea da bebedeira, a ardência do cio e ânsia do quero-mais! – disse a moça de cabelo esvoaçante, rindo descontrolada e erguendo alto uma taça cheia de delírio.
– Ouve! Que não há quem pague coisa que preste pelo que nada vale! – e era a velha hedionda que grunhia, seu hálito nauseabundo espalhando-se – é uma aposta o que temos aqui, não um leilão! Que dar lágrimas, dias ou náuseas que nada, esta vulgaridade mais merece que eu aposte mais vinte e oito anos de vazio e mais dois minutos de suicídio! – e ergueu-se de supetão, suas unhas podres riscando a pedra da mesa. Viram que ela não tinha ventre, era seca na altura do abdômen tal como um caniço estiolado.
– Cala-te, tu que nada dá! – e a moça que ergueu a taça, ao dizê-lo, fazia mofa da velhota, rindo de sua cara carrancuda – é preciso dar para poder sentir, é preciso ferir para ver sangrar, é preciso gritar para sentir a vida!
– Volúpia! Isso é o que escuto – gritou a mulher de bata, que não podia mais suportar. Ela também levantou-se, e não tinha cor ou enfeite ao longo do corpo magro, apenas o mesmo tom, a mesma textura e o mesmo traço – para viver é preciso não viver, é agora que se pode entender a vida! A vida vivida não é vívida, a vida é vida quando a desvida é vivida!
O ratapulgo corcunda cuspiu no chão, e a moça de lábios pretos falou, desdenhosa:
– Escutaste volúpia, trabalhadeira? Pois eu escuto falácia, e a da tua voz! Desvida é assunto meu, é meu pseudônimo! É o nojo dos ossos e o asco da carne que fará entender a vida; é o medo do mundo e o beijo do escuro que fazem mais macia a sepultura, mais até do que a cama embolorada ou o berço esquecido! É o câncer amargo que delicia a existência finda, é o corte da lâmina que risca o riso tolo na face e nas mãos de quem foge de todas vós e corre para meu colo!
E antes que alguém protestasse, uma voz desesperadora soou, chorosa, e vinha de baixo da mesa. Era um lamento, não um discurso, e queria ser ouvida até quando falava só:
– Eu não sou deste mundo! Nem do outro, nem do de vocês, nem do da aposta! Sou do mundo dessa alma, sou pervertido e não quero olhar, mas quero beber do suco agridoce que escorre das horas perdidas, da vida vazia e da face em pânico! Quero saber o que é dar o lance nessa aposta, quero viver a emoção de tentar e ser tentado, sentir a vida mais vazia e a carne mais fraca!
– Cala-te, maldito! Ninguém aqui na mesa quer te escutar! – gritavam as quatro, mas aquele sem rosto continuou, e se tivesse órbitas, elas estariam inundadas:
– Quero o regozijo dos lençóis amarrotados e o deleite da dor nas juntas! Quero apreciar o desespero de ver-se vazio e incolor e mesmo assim nada poder fazer! Sou eu quem mais quer ganhar a aposta e receber o prêmio, mesmo sem poder desfrutá-lo, mesmo sem saber amá-lo! Que importa o fim para mim, quando não tenho nem o começo? Que importa a morte quando não sei o que é vida? Deis chance a mais um defunto que, como eu, morreu sem saber o que é viver!

As quatro não falaram mais nada. Trocaram olhares. O preço era justo. A dama de negro deu a volta na mesa e chutou para longe os ossos daquele que acabara de falar. A moça da taça riu e saiu correndo atrás do esqueleto sem rosto, humilhando-o e exibindo-se. A velha infecta começou a proferir obscenidades e pragas, e retirou-se arrastando o passo pesado de quem caminha sem ter para onde ir. O corcunda insignificante correu para seguir a dama de preto quando esta também se retirou com passos largos mas que avançavam muito pouco (e a cada passo, mas sangue pingava e mais gritos se ouviam).
E por fim ficou apenas a mulher calejada à mesa. Sua veste limpa balançou por um momento. Mas ela também foi embora, não sem antes deixar sobre a mesa um naco de pão duro e duas moedas de nenhum valor.
Quando o morto, até então distante e apavorado, correu para abraçar sua querida alma mais uma vez, não viu ninguém ao redor. Não ouviu mais nada por um longo tempo, até que, lentamente, ouviu uma batida ritmada tão lenta que mal conseguia ouvi-la. Era hora de ir. Para onde? Para o quê? Mas fechou em uma mão sua alma, e levou-a para perto do peito vazio. Com a outra, agarrou o naco de pão velho e as moedas que não tilintaram por não valerem nada. E saiu correndo, desesperado. Quando fechou os olhos enegrecidos, no fundo desejava mais do que nunca acordar na mesma banheira, com a mesma faca na mão, mas sem o sangue e sem as lágrimas, e sem aquele pânico que agora o fazia correr como o diabo da cruz.

Não é importante se o morto acordou, nem onde acordou, caso tenha conseguido. Muito menos como acordou. Também não é importante o quanto nem como ele viveu, pois não encheria uma linha se contassem apenas os fatos relevantes para ele ou para nós. Antes, o que importa é a dúvida: se à mesa estavam cinco, quem estava sobrando? O sem rosto ou o corcunda? Bem, era o corcunda, pois ele era a Bajulação, que tem medo da morte e nunca se expõe. E ele, de tão insignificante, de tão vulgar, não conta como um daqueles que um dia sentaram-se à mesa para mais uma aposta.

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