terça-feira, 27 de agosto de 2013

As Rosas e o Punhal, Crônica II, Parte II

Preâmbulo
Não penses mal de mim. Sei o que me disseram nossos corpos. A nudez de uma mulher esconde muito mais do que mostra. Pobre do cego que ao querer ver uma mulher nua vê apenas uma mulher sem trajes. Sim, cego é quem, vendo o corpo desnudo, apenas um corpo desnudo vê. Expõe-se muito mais do que pele no ato da mulher despir-se ou ser despida. Poucos, contudo, conseguem entender que simplesmente não existe essa possibilidade de se ver apenas uma mulher sem roupas. É como o doce veneno da vespa-do-vinho: espera-se um trago doce, uma mera picada que estimule a pele e alfinete os sentidos... quando na verdade toma-se por veias uma ferida viva que serpenteia na carne, e por sangue um veneno inescapável que tinge as fibras com nova intriga.
– Carta com destinatário e remetente desconhecidos, encontrada por Sarão de Seraf

S
ão tantas as vidas que se pode viver em uma única e longa vida que as conclusões mais tácitas me falham na hora de citar verdades ou pronunciar aquelas conclusões fatídicas ao fim de um relato que, em sua essência, contém algo tão visto e revisto que exclui o estranhamento.
   Sim... Mesmo ouvindo mil vezes ao longo das vidas dentro de uma vida relatos de dor, relatos de esperança ou desconsolo, histórias de amor ou empresas a pano, tudo o que penso ser certo para falar é que o acaso governa as idas e vindas, despedindo-se de nós nas saídas, mas recebendo-nos em seus braços nas chegadas.
   Sim, porque se por vezes formou-se em minha mente repetir um conselho ao escutar um relato familiar – como uma esperança fatigada, um amor que vai mal, uma doença próxima – tudo o que de fato fiz foi dizer do acaso, foi dizer da unicidade das coisas que, mesmo repetidas em seu desenrolar, são essencialmente únicas. É saber que a mesma estrada leva para infinitos lugares.

   E lá estávamos Sarão e eu, agachados atrás de uma pedra vigiando o portão de uma vila frugal na Marca dos Reis. “Era apenas mais uma aventura”, está na mente de alguns. “Só mais uma empreitada de um bruxo curioso”, figura na mente de outros. Verdade, mais uma aventura para quem muitas aventuras teve; mais uma empreitada para quem muitos caminhos andou – e como muitos caminhos andei, quase todos em aventura, posso dizer com a veemência que não ofende o papel ou a tinta que, de fato, caminhos idênticos levam a destinos pertinentes, pois a igualdade das coisas é que são todas elas únicas.

   Noite alta, uma carroça coberta com panos brancos chegou ao portão de Varuzal. Tinha em seus panos o talhe luminoso da Igreja de Selmar, e uma escolta montada fazia a segurança da carroça.
   “Problemas com a morte.” Disse Serão “Chamaram o clero, não?”

   “Provavelmente, mas aquela carroça pesa por causa de mais coisas além de um homem da Igreja. Reconhece os glifos na base do pano?”

   “Não. Se se trata da Igreja, não deve ter coisas de muito interesse.”

   “Livros. O carroção está trazendo livros. E para que uma escolta montada faça a segurança deles, só podem ser cópias manuscritas do Livro Selmarino.” E aqui referia-me ao livro que continha compilações, cantos e profecias da Igreja de Selmar, a mais antiga das teocracias e mais poderosa dentre estas. Enquanto para tudo o mais da escrita já usavam a prensa, para copiar seu livro sagrado apenas as mãos de copistas eram aceitas. Entre reinos que seguiam a Igreja, cópias do Livro eram parte do comércio, valendo mais do que ouro, e em caso de guerra os acordos de paz ou tributos aos vencedores envolviam livros manuscritos em posse dos locais.

   Serão pareceu, pelas minhas letras, indiferente diante da Igreja de Selmar, o homem-sol, mas na verdade ele é devoto de algumas coisas da Igreja. Ele sabia de minha indiferença, contudo, e minha descrendice no culto, e tentava esconder de mim suas orações. Mas fascina-me em demasia a devoção do homem às coisas que não pode ver ou entender, e ali residem perigo e beleza.

   Era hora de entrar. Era arriscado tentar ludibriar um clérigo Selmarino com a Arte, pois sua devoção à luz cegante os faz atentos ao sobrenatural. Mas não era eu um aprendiz de conjuras básicas, tampouco Mago comum. Não sou reconhecido quando não quero ser reconhecido, pois minha vontade é capaz de superar a curiosidade e a indagação.
   Minha mente concentrou-se na imagem da guarda da carroça. Mais especificamente, nos soldados. Suas mentes estavam ligadas à grande fé, e desse modo estavam em sintonia com a mente de seu protegido, um clérigo que eu sabia estar dentro da carroça. Não eram eles meros devotos piegas, ou carolas ostentadores. Eram algum tipo de elite, e estavam com suas mentes integradas ao Cântico, mesmo que estivessem cansados.
   Mas se os maiores devotos de Selmar, através de cânticos, mantras e doutrinação podiam unir seus subconscientes em uma grande e única mente com vários corpos, o Cântico, nós praticantes da Arte tínhamos maior entendimento dessas coisas da mente. A clareza de uma mente individual, por exemplo, me fez capaz de observar as mentes daqueles homens sem que eles imaginassem que eu o fazia.

   E estavam preparados para se proteger da maldade e de sortilégios. Haviam recitado preces para tal ao longo de sua viagem. Se sabiam de algum mal que se abatia sobre a região, não saberia dizer.
   Aconteceu que eu em demorei em vasculhar as mentes dos soldados, e assim fiquei desatento ao clérigo. Mas o clérigo não ficou desatento a mim.

   O pano da carroça foi afastado, e no lugar de uma série de símbolos votivos surgiu a face pintada de branco de uma enviada da Igreja. Ela tinha no rosto os símbolos vermelhos da fé Selmarina, e usava o capuz e véu. Estava vendada, de modo que não era uma monja comum.
Seus olhos vendados e ignorantes da luz e das cores fitaram-me diretamente. Seu olhar elusivo pousara em mim.

   “Ali está Varyn, o Agoureiro. Porta-voz dos Vários Caminhos. Mas por que assim, escondido atrás de uma pedra vulgar?”

   A mulher fora certeira em sua visão. Se percebeu que eu também estivera perscrutando os pensamentos alheios, não cheguei a saber. Eu deixei a sombra da pedra e coloquei-me sob a luz das lâmpadas da carroça, da qual fiquei distante por causa da compridez das lanças dos soldados que se puseram entre mim e ela.
   “Eu, de fato, sou Varyn. Busco entrar em Varuzal, mas tal entrada foi-me negada. Falo com quem, que sei é do clero?”

   “Sou Viatra, e eu vejo pela Luz da Profecia. Sou devota de Selmar, o homem-sol, aquele sangrou luz no momento de trevas e salvou nossa visão da escuridão. Queres entrar, Varyn, feiticeiro de grandes segredos. Mas o que há aqui em Varuzal não diz respeito aos olhos e mãos do Conselho, nem é da pertinência da Convocação dos Vários Caminhos. A entrada foilhe negada, e negada continuará a ser. Não há mais nada aqui para ser visto, pois a luz que trago, a da Verdade, oculta o que há dos olhos dos descrentes. Nada poderás ver enquanto estivermos aqui, e de nada mais precisas saber.” E, voltando-se para o portão da vila, que se abrira, proferiu ordens “Avante, comboio. Para dentro com a carroça. Somos um raio de luz pura nesta noite de tormento, tão escura.”


   E aquela parada de cavalos brancos, cavalgados por homens em trajes brancos e armaduras prateadas, elmos altos com plumas alvas, escoltando uma carroça puxada por bois níveos sumiu atrás das sombras quadradas e toscas do portão de Varuzal.
   “Entro nestas ruas nem que para isso eu mesmo bote abaixo o portão!” Disse para mim mesmo. Foi quando Sarão me alcançou.

   “E agora, que fazemos?” e ele também viu o vigia ignorar-nos mais uma vez.


   “Sei que ainda é lua nova” Disse-lhe eu, ainda estático no ato de postar-se indignado diante do portão fechado, da guarita muda e tendo a lança matadora em uma das mãos “Mas vamos entrar do seu jeito.”

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