domingo, 13 de novembro de 2011

A Cabeça (atualizada)

Tênue Inspiração a partir da encenação de "Mythistorema 3", de Giorgos Seferiades, recitada na "Alegoria" das Olimpíadas de 2004, em Atenas.

A Cabeça

I - Há um fardo que nascerá comigo

É involuntário. Quando acordo, olho para minha escrivaninha. Ela está lá, de olhos fechados. Ainda é de mármore, ainda é fria.

É uma cabeça, não tem expressão. Às vezes, não tem olhos nem lábios, é lisa e tem uma única protuberância (o nariz). Outras vezes é completa, é inteira, parece a cabeça de uma Deusa grega que dorme após matar as filhas de Niobe, e não sei de qual das duas formas tenho mais medo, da clássica ou da abstrata.

Eu tenho que levantar e carregá-la pelo resto do dia. Por onde quer que eu vá – trabalho, casa, rua, bar – ela está comigo. Eu carrego e a sinto pesada. Eu a levo e a sinto gelada. É um peso que carrego, sim, uma cabeça que não posso largar, uma cabeça que faz minha cabeça doer.

Quando vou dormir, não a vejo mais. Ela não está em minhas mãos. Ela sumiu. Juro pela última vez que não vou olhar para nada quando acordar.

Mas eu acordo.

Mas eu olho.

Ela está lá.

II - Para relembrar os que assassinados jazem
Sou um tolo.
Sou um tolo que se atém à pureza da forma. A beleza do mármore me é mais cara que a essência da forma talhada, mesmo sendo mais clara. O que mais amo, porém, é o ato de esculpir. A criação, o resgate do corpo atônito de dentro do mármore é que me excita conjecturas e conjugações, iludindo-me com o mero fato da pedra trabalhada, ou aplacado pela máscara significativa que a estátua coloca entre mim e ela. A estátua se esconde bem; faz-me ver o que não é através do que não sou. Meus olhos não a procuram. Mas sei do ato da criação, e ele é inviolável.

III - Uma visita à galeria das sabidas ignorâncias
Que importa aos olhos meus, tão leigos, a origem e qualidade da pedra, se tão fácil me acalma e desconcerta o descante da curva esculpida? Sejam nós chorosos de Lacoonte ou o silêncio triunfante de Perseu, sejam águas espraiadas pela Ondina que se levanta ou a tez marmórea de uma Vênus - dão-se, os escultores, ao trabalho de driblar meus sentidos que tão fácil já se fascinam, fascinando-me assim mil vezes mais. Ah, o cicládico já bastaria na intenção de me enganar.

IV - Um motivo vago e sua resposta abismada

Entremeios, com algum receio pergunto-me não ver maldade na sanha do escultor em talhar a pedra para transformá-la em algo familiar - e ao mesmo tempo despondente - aos olhos. É dicotômico, é perguntar se não seria mais justo, ainda que talvez menos arte, contentar-se com a pura e solene somente figura alégorica debilmente desnudada das asperezas e retas do bloco despercebido. A alegoria grita, pois desconstroi-se ao tentar fazer-se real, morre se tenta buscar a vida. Não morre o que nunca viveu. Uma mão boa (e, em minha pergunta, narcisista) salva-a da reta e angular perpetuidade. Dá-lhe deformidade, dá-lhe morte e dá-lhe razão, metamorfose da pedra em figura, do tema, na alegoria.

V - No momento do jejum, apenas uma luz acesa
Fazer fibrilar o ósseo tom da face no mármore... Há olhos querendo falar, uma boca querendo olhar e dois ouvidos tentando escutar. Há algo de errado em imitar sua postura imóvel? Fazer mímica do que é irreclinado? Vejo a alegoria empedrada encarando a quimera encarnada - ou será realmente o contrário? Posa para mim a estátua ou ela imita-me em minha admiração, conhecendo-nos assim pouco a pouco? Ela veio de sonhos, marmóreos relembrados, e eu vou aos sonhos, por pedras recebidos.

VI - Há um peso que carrego comigo

A estátua, enfim, talvez nasça do sonho de alguém que sem perceber deixa-se dormir e, inocentemente, esquece de voltar, para sempre buscando dentro de pétreos fetos aquela face sua, que se perdeu.

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