quinta-feira, 7 de maio de 2015

Orvalho para a alma


Orvalho para a alma.
Orvalho para a alma. Alguém já notou a semelhança entre as palavras alma e lama? Apenas uma brincadeira de filólogo, eu aposto. Pode até não ser, mas céus, ando tão cansado de etimologias, ando tão sem tempo para esforços e tão sem essa para complicações que deixa disso de rebuscar.

Não que eu despreze isso de ficar interrogando os porquês do que se fala o do que se escreve. Longe de mim afastar a gente da linguagem. Até porque, veja bem, é nela que se encontra asilo e conselho, um amontoado de sinais e uma ou outra variação de caminho que bem pode servir quando todas as outras ajudas não se mostram. A linguagem é melhor que os conselhos nos assuntos de alma e de lama, e se for na forma escrita ela fica um pouco menos insondável, um pouco mais segura, um pouco mais confiável.

E de tudo o que se lê por aí, no que tange a cura de almas ou apenas sossêgo na lama eu aconselharia o Neruda mesmo. Nem Bíblia, nem autoajuda nem Machado de Assis (este não me leve a mal, mas ele requer aquela razão paciente que não possui alguém partido a golpes de vida). Neruda, sim, porque ele vai da lama à alma e volta sem a gente perceber que foi movido.

É ou não é da cura falar que aquela flor que não abriu carregou, carregará e morrerá com a promessa de florir que, por não ter sido cumprida, ganhou a eternidade de um sonho? É ou não é da cura querer fazer crer que no peito onde ficou algo recolhido está uma promessa fecunda que, por não ter sido, sempre será? Um eternamente ser...

São as personagens, é cada eu-lírico, os heróis: Nenhum deles jamais nasceu, mas muitos são imortais. Por nunca terem sido realizados, ganharam a vida distinta, longeva e irreclinada na parecência com o mundo das ideias – um direito de viver, ainda que de forma brevemente perceptível, num espaço que é arte.

Eu ando assim, cavando alma e enaltecendo a lama. Procurando arte onde pode só haver confusão, sem aquela parte de história e de cumplicidade. Ou tentando apenas viver e ser cúmplice em momentos que são puro conto, pura arte. Se não estou vivendo em paz, leio. Se não leio, escrevo. É uma maneira, penso, de me fazer viver quando não estou sentindo vida. E de ajudar a viver quem um dia precisar recorrer a isso.


Eu ando assim, cavando alma e enaltecendo a lama. Ou às vezes é o contrário, quando não deixo disso de rebuscar. Há algo de inspirador nessas promessas boas que nunca se cumprem e que jamais hão de se cumprir. Não sei dizer ao certo o que é, porque me falham as certezas desde que comecei a fazer perguntas, mas creio que essa inspiração está em algum lugar entre a catarse e um olhar de soslaio que eu dispense àquela planta que nasceu, contra todas as adversidades, numa fenda indistinta no meio do concreto. Nela – nessa planta – na escrita e em mim há a mesma centelha de vida e de arte que, no ato de todos imitarmo-nos, afirma e reafirma que a vida persevera. Que a força vinga com a planta, com a personagem, com a alma. Se na lama. E a planta, talvez na lama, conquista o orvalho. Recebe o orvalho. Não vive da promessa dele, talvez. Fica na lama. Tem talvez sua alma. Orvalho na lama.


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