sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A Ditadura do Pão

Quem acorda cedo e toma café quente não imagina o quão cancerígeno este hábito soa para o esôfago comprido. Quem toma café fumegante e enche a cara de pão entope o sangue com umas espéculas de sei-lá-o-quê que fazem mal para os cromossomos da biologia humana.

Quem corre para pegar um ônibus que nunca sai no horário não sabe o quão extenuante este hábito dói nos tendões brancos e duros. Quem se estica sobre as calçadas não sabe que aquele motorista corno daquela empresa folgada é um homem que bebe café quente e enche a cara de pão quando acorda cedo.

Quem se enfia na lotação como um vírus na veia não sabe o quão nojento este hábito parece para a pele mal-curtida nos lençóis de segunda mão. Quem se embrenha entre as carcaças penduradas nas traves de ônibus como carne no abatedouro morre de medo da gripe A que dá entrevistas na mídia.

Quem se fecha na baia do emprego não sabe o quão triste este hábito constará para a hora da morte. Quem envelhece as juntas na frente do monitor e do patrão vai perdendo braços e articulações até virar uma pasta quadrada cuja cama é um fichário federal.

Quem se cala diante da rotina depois da hora do almoço não sabe o quão tolo parece este hábito para quem escreve o noticiário do jornal. Quem vira bicho inferior aos olhos de quem pagou pelo relógio é um montante de especulações de mercado, gastos do governo, investimento do patrão e contas a pagar.

Quem se vai depois do boa tarde não sabe, parece que esquece, o quão opressiva parece a vida deste lado do túmulo. Quem chega em casa com ossos dormentes (dormem os ossos?) não sabe como é opressora essa ditadura do pão. Quem faz isso chega em casa, espicha os nervos, bebe café frio, raspa o sal da testa e enche, enche a cara de pão.

2 comentários:

  1. meu, adorei-adorei isso aqui!
    falo an qualidade de legítima vítima deste regime

    em tempo: blog preto? não curti. nada como asd impurezas do branco, como diria drummond.

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  2. olha só, nunca fiz isso em blog algum: já é a terceira vez que leio esse teu texto. Achei tão coerente, tão aplicável ao meu dia a dia que serve de alerta e ao mesmo tempo parece que não vamos sair disso nunca. Adorei.

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