Crônica Um
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Crônica Dois
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AGORA, propriamente introduzida através da recordação, a PARTE TECEIRA da CRÔNICA SEGUNDA.
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Sei de gente
que se despe durante a noite. Não das vestes nem de aparatos que agradem a
vista ou sejam úteis à utilidade. Não. Sei de gente que se despe de caráter e
moral, vergonha e retidão. Gente que anda pelas ruas nua de vergonha e despida
de decência qualquer. Dessa gente tenho medo mais do que temo as criaturas que
vagam no Norte em sombras, e as evito mais do que evito a estrada quieta onde
se viu o ladrão, mais do que evito a fossa imunda onde apodrece o leproso. Não.
Essa gente que é nua de moral me assusta mais do que o assalto e a peste, pois
sua indecência é mais contagiosa e mais violenta do que as mazelas que se vê na
cidade e no caminho.
– Azandre, diário de confissões
S
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ei de um guarda de Varuzal que não fez bem seus
serviços. Ele dormiu em sua guarita, e por estar em uma guarita devia estar
acordado vigiando com cautela, pois certamente esta era a ordem dada a todos os
vigias naquela noite soturna e assombrada por medos. Mas achara-o dormindo
Sarão, meu pupilo, que apesar de estar menos capaz do que ficaria na lua cheia
ou próximo a ela, foi certeiro no faro e na audição.
Uma vez
que achamos um vigia dormindo, entramos saltando o muro da vila: Sarão tinha as
capacidades boas para as proezas do corpo, mesmo sendo demasiado magro. Aquele
muro patético servia muito mais para dissuadir preguiçosos e impedir a livre
circulação de animais do que para barrar uma tropa obstinada que se mostrasse
perigosa em invasão.
Eu saltei
a distância necessária usando de minha vontade, que se esticava mais do que
qualquer tendão de meu corpo. Fiz-me leve como um pensamento distraído e com o
esforço mínimo de meus pés, projetei-me por sobre o muro. Conjurara eu sombras
insuspeitas que ocultaram nosso pulo para dentro da vila cautelosa.
Se o guarda
percebeu-nos pelo barulho, reagiu apenas nos sonhos. Não se pôs alerta, muito
menos acordado. Continuou em seu sono mais seguro porque dentro da guarita.
Dali,
ganhamos as ruas com grande silêncio, mas vimos que em muitas casas ainda havia
luz acesa. À distância vimos a casa do senhor da vila no alto de uma elevação
da qual se podia certamente observar todas as casas e os limites do muro
circundante. Certamente fora para lá que se encaminhara Viatra, a enviada da
Igreja de Selmar.
– Agora
esperamos amanhecer para descobrir o que está acontecendo? – era Sarão
presumindo coisas na noite alta.
– Vamos
agora mesmo procurar uma estalagem ou espelunca que nos revele por meio de
bêbados, notívagos e meretrizes o que está acontecendo aqui na região. – e
divertiu-me na minha seriedade contrariá-lo porque eu era seu mestre.
Sem
objeções, e talvez animado por irmos atrás de uma estalagem, Sarão me seguiu
pelas ruas amplas e quietas, calçadas com lajotas velhas que deixavam passar
grama aqui e ali. Varuzal era simples e pequena, mas rica e jeitosa se
comparada à maioria das vilas da região. Não havia choça de palha e madeira
ruim, apenas casas de bom material e pintadas com jeito, com jardins bem
cuidados e dando de fronte para ruas limpas e mantidas trafegáveis com zelo.
Enfim
encontramos uma hospedaria naquela teia de ruas. Receberam-nos bem o dono do
estabelecimento e seu filho, um jovem calado de boas feições.
– Chegaram
tarde em uma terra de gente que acorda cedo – Disse-nos o homem cujo nome nunca
vim a conhecer.
– A vila
parece estranhamente quieta e inóspita esta noite – Disse-lhe eu, sendo direto.
Vi nos olhos do sujeito que ser inciso não levantaria suspeitas. Escondera eu a
minha lança, disfarçando-a de mero cajado de viagem para o olho destreinado.
Sobre os trajes que poderiam indicar meu vínculo com a Convocação, vesti uma
grande capa de viagem. Desse modo estava indiscernível dentre viajantes
ordinários.
–
Acontecimentos estranhos têm assolado a região. É bom ser precavido. – E com esta
informação que praticamente nada informa, o homem deu-se por bom respondedor. Ele
anotou nossos nomes falsos em uma tábua de controles e deu-nos as chaves de
nosso quarto.
Mas tão logo
Sarão ajeitou-se para dormir, eu saí dali para procurar gente de quem eu
pudesse conseguir mais palavras. Perto dali havia, de fato, uma taverna singela
e pequena. Estava quase deserta, mas havia um par de bêbados cantando sua
alegria de madrugada e dois homens sentados à bancada onde a dona do
estabelecimento, uma mulher alta e grisalha, estava bebericando vinho.
Aproximando-me deles, saudei-os, mas não obtive nada em troca senão olhares
desinteressados. A mulher serviu-me vinho automaticamente, e vi que em seus
gestos duros estava a marca da repetição de movimentos que marcaram seu corpo
durante décadas.
Não neguei
a bebida, embora eu não a tenha provado. Logo pus-me a conversar com os homens
calados, os dois de considerável idade. Um era aleijado de um braço, ou outro
estava quase cego. Ambos cheiravam ao curtume onde trabalhavam por um salário
de piedade.
Com meus
dons, guio uma conversa para o lado que me convém. Sou, no falar, capaz de domar
um discurso – touro bravio – e fazê-lo jungido para melhor me servir. Mas falar
com aqueles dois pobres coitados era querer domar uma mula velha, de modo que não
demorou nada até que eu já estivesse tirando deles o que podia me servir de
informação.
– Tudo
começou quando o prefeito casou com aquela bruxa vadia que veio do norte! –
disse o meio-cego, que tal como o aleijado estava já sorridente pela soltura
que o vinho ruim conferia.
Cantavam,
a esta altura, os dois bêbados na mesa que estava atrás de nós, posta na rua,
sob um telheiro simples para aparar uma chuva hipotética que se armava sobre
Varuzal. Aviso que, em se tratando de gente vulgar e tendo eu o compromisso com
a verossimilhança, aparecerá em minha escrita um rol de palavras e expressões de
vil origem e asqueroso emprego.
– Sim, uma
rainha de malefícios, é o que ela é. Uma criança a insultou no cortejo para a
igreja. Foi encontrada morta no fim do dia, caiu de um muro e quebrou o
pescoço.
– E desde
então, só pragas têm sobrevindo a isso. – neste momento eu desviei meu olhar
para perscrutar a mulher que nos servia. Ela estava muito nervosa no ato de
limpar copos secos como se esperasse receber um batalhão para beber de seu
vinho.
– É
verdade o que dizem estes homens, boa senhora, ou acaso fazem eles troça com as
crendices de um viajante?
A mulher
limitou-se a olhar-me por uma fração de segundo, apenas para desviar os olhos
para os fanfarrões ao meu lado. Seu silêncio disse-me que ela queria não acreditar,
mas falhava se lembrava do assunto.
– Ela está
lá, aquecendo a cama do prefeito! – disse o aleijado – ela deve estar fazendo
dele uma mula de carga, um cãozinho de estimação! Roubou-lhe o juízo, rouba-lhe
o pau e há de roubar-lhe a vila!
– Como
essa mulher chegou aqui e o que tem ela a ver com essa situação para fora dos portões?
– eu nem precisava mais olhar para aquele par de tolos cujas mentes já estavam
por mim dominadas. Eu apenas sugeria o comando e eles me entregavam as palavras
que eu queria.
– Ela veio
do norte, mas ao contrário dos outros animais que chegam em levas pequenas ou
em grupos de quatro e cinco, ela veio sozinha. Como uma mulher jovem como ela
pode ter descido do norte até aqui com apenas alguns rasgões nas vestes?
– É bruxa,
nascida no sábado, tem sob a pele demônios que conjuram artes no palacete agora!
Não demorará para que o mal que a seguiu entre também na cidade. Os camponeses
que por aqui vêm queixam-se a todo momento de que matam suas criações,
sequestram suas famílias e de que puseram suas plantações sob maldições de
murcha.
– E o que
seu prefeito tem feito para aliviar os sofrimentos dos camponeses?
– Tudo o
que ele tem feito é foder com aquela bruxa dentro do palacete. Há dias que
ninguém o vê. Da última vez que foi visto, estava desfilando diante da igreja
com aquela prostituta do norte. Ela estava montada em um cavalo e ele, idiota,
a pé, puxando o animal pela rédea.
– E você,
senhora, que continua calada. O que tem a dizer sobre essa mulher de tão grande
e má fama? – disse eu, dirigindo-me de novo à dona da taverna. Mais uma vez
apenas o silêncio nervoso dela me respondeu, mas talvez tomasse-me ela por um
mexeriqueiro disposto apenas aos boatos baratos da gente chinfrim. Esse julgamento
que ela poderia estar fazendo de mim tirou-me a paciência, no que a agarrei
pela face e penetrei os olhos dela com o meu olhar.
Passei
assim uma barreira que ela havia posto em seu pensamento, mas afastar essa
barreira foi como abrir uma cortina leve e frugal para mim, e o seria igualmente
fácil para quem não têm, como eu, os dons da Arte. Uma mente em dúvida é uma
mente aberta, facilmente cercada por todos os lados. É um exército de vasto
número de lanças, mas munido de poucos escudos.
– Mulher,
pergunto-te eu o que sabes sobre essa esposa do prefeito.
Meu olhar,
que teria sido aterrador para ela se não estivesse sob o efeito de minha dominação,
forçou-lhe a narrativa, que foi feita com voz assustada e rouca:
– Não quero
acreditar que uma bruxa está nesta vila. A avó de minha avó nasceu aqui, e
desde então minha família tem feito de Varuzal sua casa. Selmar morreu
prometendo que não estaríamos sós na escuridão, mas eu tenho medo. Eu não consigo
acreditar em sua promessa iluminada! Não quero acreditar que há uma bruxa aqui,
casada com nosso prefeito! Se um homem devoto de Selmar e ungido por seu fogo
foi vítima de tais coisas, que podem os humildes seguidores do Homem-Sol contra
a vilania dos demônios?
Eu soltei-lhe
a cabeça, de onde despencavam lágrimas. Ela ficaria em alguns segundos de
torpor seguidos por forte amnésia, e provavelmente algum sentimento profundo de
medo e desespero, estes nutridos por ela mesma, mas sem chance de vazão.
Fui-me, e
de mim só ficaram ali algumas moedas de ferro. Deixei a taverna com novo
destino, precisava averiguar a história dessa bruxa vinda do norte e das pragas
postas no campo.
“Mas é noite, cronista, e é perigoso
confrontar a suspeita da feitiçaria durante a noite!” dirão aqueles que se
esquecem que o que ocorria então era o desejo de encontro de um feiticeiro com
uma suposta feiticeira.
Mas na
noite, de fato, há mais perigo. Há caras que se mostram sob a luz mais
condescendente do luar que jamais se aventurariam à exposição sob o olhar lancinante
do sol.
Como as
faces que eu estava a ponto de encontrar, inclusive.
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