Aconteceu que no décimo dia de chuva intensa, vindo
ela quase sempre no meio ou no fim da tarde, Jofric adormecera sobre suas penas
retintas e escritos empilhados. Como conseguira, não o sabia – estava naquela
consciência morfética que antecede o sono profundo – pois o batente da janela
do quarto ao lado batia violentamente, sendo espancado pelo vento que ululava.
E
essas ululações do vento, a ferocidade com que os trovões rasgavam o céu e a
cinética audível da chuva não montavam a boa cama para cochilar. E, com o
agravo da janela que batia e das músicas que se misturavam nas ruas da vila,
formando um eco confuso que era abafado pela tempestade, tornava-se ainda mais
inviável perder-se nas sombras confortáveis das pálpebras fechadas, unindo as
vistas em um sono bem-vindo.
Até
porque Jofric, convenhamos, não sabia o que era se cansar. Vivia de sua herança
farta e da plantação de tabaco administrada pelo seu único primo honesto, mas
longe dali. Ele dedicava os dias a dormir até o adiantado das horas, à escrita
inspirada e ao namoro arrastado com a carola Margarite. Assim, dormir daquele
jeito, naquelas condições que muito seriam dormíveis para o homem estafado,
para ele anunciaram (na sua consciência semi-desperta) um acaso intrigante.
Dormia,
e o frio entrava pelas frestas da janela com uma capacidade incrível.
Tomava-lhe as fibras e as enrijecia, sua pele tornando-se sutil como a de uma
estátua. E aquele frio que o assaltava não foi nada se comparado ao assomo de
espanto que lhe tomou a alma quando um golpe de tufão escancarou-lhe as janelas
a despeito da tranca.
E
de tal modo estava frio e entorpecido que não moveu mais que os músculos que o
levaram a pular dentro de sua própria pele. O sobressalto teria sido melhor
expressado se não fosse aquela letargia cética.
E
o vento que tomou seu quarto levou-o por alturas inimagináveis, arrancando-o de
dentro da pensão, levando-o pelo céu, jogando-o com violência aliviada somente
pela ausência de limites com os quais se chocar, não havendo estes na quinta
celestial.
Ele
voava como um pano atirado ao vendaval, ou, bem dizer, um lenço perdido para o
vento. Seus olhos, então despertos, viam a vila muito abaixo, aquela mancha de
telhados no meio do campo verde e vasto, cruzado como teia de aranha pelas
picadas que levavam às fazendas e chácaras e quintas. A chuva parecia vir por
todos os lados, fustigando-lhe até a alma, encharcando-lhe o corpo gelado.
A
tal altura, e em tal altura, estava já tomado pelo pavor. Seu pensamento era o
medo, sua voz era a gritaria, seu sangue era o frio. Mas o pensamento era
chacoalhado, sua voz era abafada e seu sangue se arrastava. Ele mexia os
membros no ar, mas era inútil. Gritava, e mesmo assim pouco do que falava
ouvia. Entregou-se logo à sua sorte, pois não era homem de luta mesmo. Foi
quando veio aquela calma única, prêmio de um grande desespero, que ele começou
a escutar naquela ventania uma música estranha e distante, perdida entre as
lamentações do vendaval.
De
início agarrou-se ao som como se fosse luz diáfana no fim do túnel escuro, ou
mão estranha que apresentasse ajuda à borda do precipício. Mas logo pensou que
aquela música era o asilo de gente que se abrigava por baixo de telhados, não
sinal de presença amiga de gente que voava pelos ares. Só que tão logo quanto
essa esperança musicada se desfez, rapidamente ela voltou-lhe ao ser.
Porque
a orquestra – e era uma orquestra – tornou-se cada vez mais próxima. Sua música
era cada vez mais intensa, um compasso cada vez mais ligeiro de movimentos
vigorosos e audíveis, potentes e bravios, fortes e indeléveis. Mas a esta
altura também as nuvens que se agitavam, panos molhados que torcidos pelo vento
despejavam chuva, nublavam-lhe a visão. O som da orquestra rodopiava ao redor
de sua cabeça, e por vezes ouviu o clarinete ou a tuba soprando ao lado de um
ouvido. Quando bateram pratos, sentiu que foi diante dele mesmo, e viu um vulto
negro riscando sua vista.
Começou
então um movimento mais sutil, embora em nada longe de ser violento e possante.
Com isso também veio certa calma no vento, certa falta de agitação nas nuvens e
certa complacência dos trovões. Isso permitiu a Jofric perceber o tamanho do
espetáculo.
Entre
os volteios do vento arredio, rodopiando pelo ar puro e gélido como se
pertencessem a tal ambiente tão bem como as gentes pertencem ao andar no chão,
uma grande orquestra ali estava, encerrando no ar mais um movimento sinfônico.
Vários flautistas, violinistas, tocadores de violoncelo e percursionistas,
metais e virtuosos, todos agitados pelo vento, perfeitamente alinhados em suas
vestes esvoaçantes, tendo em mãos seus instrumentos musicais. Executavam com talento
em meio aquele vendaval uma melodia vigorosa, animada.
Jofric
via todos com estonteio, cada face mais humana do que a outra, mas branca
demais para se supor comum, de modo que a vista já confirmava com mil vezes de
certeza a gelidez daquelas carnes. Então duas sombras sutis ergueram-se sobre
todos no momento que os sons tornaram-se mais fortes – o escritor voador viu
que eram sombras de braços, dos dois braços do maestro, suas longas mangas, a
farda imperiosa e negra, seu olhar ameaçador, o riso mordaz e o porte altivo –
e na ponta de uma das mãos, a batuta de comando.
Descida a batuta na imitação do
meneio do carrasco, raios abriram as nuvens e despejaram luz aterradora, mil
vezes mais aterradora do que a sombra, sobre as orquestra, iluminando-a, e róis
de músicos começaram a agitação de tímpanos e um riscar das cordas de vários
violinos que colocaram os nervos de Jofric e as cristas das nuvens em movimento
errático. No corpo, eram as cordas da carne querendo fugir aos pares para todos
os lados. No ar, eram as correntes se agitando e mexendo o vapor.
E
os movimentos desvairados daquela maestro giravam pelo céu conforme a multidão
de músicos descrevia longos volteios pelo ar. Passavam por cima e por baixo de
Jofric, ou ao seu lado, entretidos com seus instrumentos e parecendo ignorar
aquele escritor pendurado no céu por força de vento voluntarioso.
Conforme
evoluíram os movimentos da música, o céu tornou-se tão negro e tão pavoroso que
o mais horrível dos lagos ou a mais assombrada das cavernas e catacumbas
pareceria oferecer aconchego. Estando na terra, fugir do céu é complicado, mas
estando em pleno ar, como livrar-se de tal medo? Raios com as lonjuras de rios
traçavam estradas de temor pela tempestade que descortinava água e insanidade
pelo firmamento. Era noite, devia ser noite, mas nessa escuridão repousava a
dúvida da própria hora exata do dia.
Jofric descrevia voltas e era
jogado para as mais diversas direções, um mosquito no vendaval. A chuva lhe
crivava, o aguaceiro uma artilharia impiedosa. O som da orquestra o ensurdecia,
a luz dos relâmpagos ocupava sua visão, revelando mais daquela orquestra
sobrenatural e mais daquele céu que, ao mais se revelar, mais pavoroso ficava.
Então com um último assomo de
vento e surpresa acordou no chão de seu quarto de pensão, a janela de sua
morada escancarada, a janela do quarto ao lado batendo furiosa contra a parede.
Estava sob a luz do quadro, o clarão dos raios projetava desenhos fantásticos
nas paredes.
Pôs-se de pé. Estava transido de frio e encharcado.
As coisas impensáveis que ele pensou a partir dali, narrarei a seguir...
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