Li nos livros
da biblioteca de meu defunto marido que os ventos daqui do norte, vindos do
norte do norte, são de procedência gélida; ares que se desprendem de banquisas
que jamais desgelarão. Esses ventos seguem para o sul, mas antes que possam ir
além, param nas grandes montanhas e espalham-se pelos vales boreais. Mas são
histórias de homens frouxos, falsos eruditos efeminados e relatos de gente tola
e covarde. Creio no que li nos velinos dos sábios do próprio norte, que
escreveram a tinta negra na pele escalpelada de seus inimigos e na pele de parentes
idosos por eles salvos de morrerem de velhice. Nessas peles os sábios relataram
que o vento norte é a respiração de uma besta fria que está posta empoleirada
no norte do mundo, aguardando o momento em que acordará de seu ninho frio e
cinzento para devorar toda a carne e beber todo o sangue quente que há no
mundo. O norte não é uma terra para fracos, nem aqui se cria gente piedosa e
temerária. Somos todos transidos pelo hálito da besta do frio que aqui jaz, e para
enfrentá-la temos de ser bestas mais selvagens na essência, e muitos mais viciosos
no ataque. Não poupem mais nenhuma aldeia. Derrubem as casas sem fogo, despelem
os líderes e deixem os aldeões nus pendurados em mastros. Serão nossa isca para
despertar a besta pela fome: Se seus gritos não forem levados até ela pelo
vento, suas peles e lágrimas serão.
– Carta de Ladabel, Senhora, para seus comandantes
na campanha em Quartalonge
A
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quilo que habita o beco escuro é amante do silêncio
e da noite, mau-amigo do sol e da claridade. Por vezes há nas sombras um
bandido ou um malfeitor, um perigo e um mal, mas de quando em quando as sombras
são também apenas meros asilos para almas que, se postas sob a evidência da
luz, sentem-se mais pesadas por recordarem fardos pesados, mais extenuadas por
reencontrarem casos extenuantes.
Sou, ainda
que eu o diga sob a luz das velas, uma destas almas. Perdi tantas pessoas que
um dia me foram caras que ver o raio do sol incidir sobre a cidade,
revelando-me a visão de gente que anda por ruas pavimentadas por entre prédios
mais cheios de gente, traz-me inquietação e profundo pesar.
Movo-me
mais depressa sob a luz do luar. A noite torna-me mais célere no passo sobre o
chão e no pensamento que se desvencilha da memória pesarosa. As estrelas e a
lua são-me mais amigas porque me permitem contemplá-las com uma paciência e
humildade que a arrogância cegante e invariável do sol não permite. E se sob a
luz dos luminares frios da noite revela-se a vileza de atos de banditismo e depravação,
sob a luz do sol revela-se a feiura da carne e da pedra de maneira muito mais
tácita: porque atos podem ser perdoados por quem não os perpetrou, repensados
em arrependimento pelo perpetrador; mas a feiura fatídica que o sol evidencia à
atenção está aquém de perdão ou arrependimento. O roubo executado sob a
proteção das sombras pode um dia ser reparado ou ter sido o último. A cicatriz
horrenda na face daquela pessoa e sua mesquinhez habitual serão muito mais
vistas quando o galo for ouvido por todos cantando.
Por isso
choca-me pouco, e menos, ver a face da maldade revelando-se noturna. Quando eu
estava posto no ato de andar depressa nas ruas de Varuzal, pouco me surpreendeu
que em um lugar assolado por medo e maldade, como aquele estava sendo, me
chamassem de pronto, para a rendição, três rufiões que andavam pela rua à cata
de vítima fácil.
Mas nunca,
em minha vida, fui vítima. Cortaria a língua de quem assim me ofendesse.
Dispensei os homens com um gesto de ignorância quanto às suas intenções, mas
fazer-se de desentendido em nada os dissuadiu. Puseram-se a seguir-me com
renovado interesse, pois não viam simplesmente uma vítima, mas uma vítima
fujona. Em sua lógica, provavelmente eu era um covarde que não se via em
condições de enfrentá-los.
Cercaram-me, pois assim eu deixei. Não sei antes tê-los cansado um
tanto. Meu passo ligeiro forçara-os à corrida, de modo que o mais corpulento
estava até resfolegante. Só um usava a cabeça descoberta, sem medo das
autoridades que por ali não pareciam fazer ronda interna. Os demais usavam
capuz para ocultar as faces. Com tantos vigias no muro, deduzi que a guarda que
fazia a vigilância das ruas devia estar drasticamente reduzida, dando àquela
laia de oportunistas maiores chances de fazer roubos e cometer outras
barbaridades.
– Você
demorou a parar, rato fujão! – disse o da face revelada. Ele chegou tão perto
de mim que pude sentir seu hálito tomado pelo cheiro da fome. – Quando eu quero
que alguém fique parado, esse alguém fica parado! – e ele pousou a mão sobre
meu ombro de modo ameaçador. Creio que com tal gesto ele pensava me intimidar.
Talvez eu estivesse diante de um ladrão por ocasião ou novato nos ramos da
vileza.
– Podes
parar a lua em seu trajeto pelos céus? – Era eu indicando com o dedo o brilho
de prata crescente pendurado alto no céu. – Se pedires, ela parará? Caso o
consigas, rogo-lhe que assim o faça. Muito me alegraria a presença da noite
alongada. Chorarei quando vier o sol.
O homem
olhou para cima conforme eu indicara. Sua garganta ficara exposta para mim de
modo quase infantil de tão inocente e descuidado, mas eu nada fiz contra sua
pele.
Quando
enterrou seus olhos de novo nos meus, ainda havia um resquício de expressão
confusa ali, apenas para dar lugar à face que quer se impor ameaçadora e
imperiosa:
– Esvazie
seus bolsos ou esvaziamos suas veias. Tire as botas e deixe seu manto aqui.
Entregue-me tudo o que você tem de valor!
Eu ri, e
sabia eu que meu riso confiante os deixaria apreensivos e confusos.
– Sinto
muito, senhor, mas o que tenho de mais valioso comigo não caberia em suas mãos,
se fosse de medida palpável. Teria de caber em sua mente, mas ela não
suportaria tamanho fardo. Se para entregar-lhe minhas maiores e mais caras
preciosidades eu tivesse de falar-lhe todas, suas orelhas cairiam esfoladas
antes que eu pudesse chegar na metade. Se pudesse colocar meus maiores tesouros
em uma saca, esta teria de ser costurada com a pele de todos os animais de
rebanho que há no mundo. Não, meu senhor. Não lhe entrego meus tesouros porque
simplesmente não sou capaz de passá-los ao senhor.
O homem
mostrou nova confusão, mas novamente deixou a face contorcer-se em ameaça:
– Verme sujo!
Cão sem juízo! – E empurrou-me com sua força maior. Mas eu, antes de cair no
chão, virei-me para as lajotas, empurrei-as e levei o queixo do homem para as
alturas conforme meus pés subiram pelos ares até descrever um arco e
colocarem-me de pé a alguns passos atrás do lugar que eu antes ocupara. Fui tão
rápido que os outros dois só tiraram as facas do cinto quando eu mesmo já havia
feito de meu cajado de viagem novamente uma lança, e desarmei-os com um único
meneio da arma.
– Invistam
contra mim e terão quatro corações ao invés de dois, pois os cortarei ao meio!
– disse com a lança em riste. Nada mais lhes foi dito que ouvissem, pois
desataram a correr para longe de mim.
“Narras
com prazer tais palavras” – Diz-me a caveira falante que me é testemunha dos
relatos escritos. Não nego a ela a veracidade de sua constatação.
O outro
homem eu preguei no chão com a ponta de minha lança. Atravessei-lhe o ombro,
mas com um comando de silêncio sufocara-lhe um grito que chamaria muita
atenção.
– Escuta,
homem, que em troca de deixá-lo vivo quero ajuda.
– Fala,
pois, maldito, e livra-me da dor!
– A dor
fica até que bem tenhas me servido. Escuta, por onde chego ao palacete onde
dorme o prefeito e sua esposa? Tenho urgência em lá estar.
– Aqui,
venha, indico o caminho!
O bandido
e eu seguimos por uma série de ruas. Ora largas ora estreitas, ora enluaradas
ora escuras. Estancara-lhe o sangramento com golpes em suas veias, mas eu o
empurrava com a ponta da lança. Mostrou-se ligeiro, contudo, e guiou-me sem
truques. Era forte e bravateiro, ousado, o bandido, mas pouco capaz de ser
astuto. Se não fosse eu, certamente outro seria um dia sua ruína.
Por fim
ele parou, e mostrou com o braço bom, se bem que com careta e gemido de dor, a
sombra larga, baixa e comprida do palacete da vila. Ali estava o prefeito,
certamente.
– Agora,
infeliz, que eu o veja correndo para longe a todo passo. Se te vejo atiro minha
lança e não erro, pois se eu quisesse acertava um morcego em pleno voo. Vai!
Deixei o
rufião partir, e naquele momento soube que minha piedade era quase em vão. A
morte daquele homem estava próxima. Muito próxima. Eu estava cercado. Ele não
passaria pelos que me emboscaram.
De fato,
dali a pouco ouvi passos lentos e pesados. Das sombras dos becos às minhas
costas vi produzirem-se rostos níveos, se bem que escurecidos pela luz
faltante. Braços cinzentos estenderam-se para mim, convidando para o
conhecimento de facas tão largas e longas quanto cutelos, mas com pontas
sinistras. Não eram ferramentas ou armas que se usaria em Fárgia, nem em nenhum
reino vizinho. Eram armas de épocas idas, muito antigas, quando ainda não havia
reis nem cidades de pedra naquelas terras.
– Vejo
armas do povo de pele toda branca e cabelo todo negro sendo estendidas em minha
direção. Relíquias dos tempos em que os homens moravam apenas nas ruínas
deixadas pelas civilizações passadas, incapazes de erguer muros. Toda a
ignorância que tinham para fazer coisas belas e protetoras está posta na forma
de malícia e mau intento no ato de forjar essas lâminas sanguinárias que
trazem. De que túmulos terão saqueado elas?
E ao olhar
mais atentamente para os que saíam das sombras, eu fiz mais uma pergunta:
– E de que
túmulos terão saído vocês mesmos, miseráveis desalmados?
Filhos da
morte estavam diante de mim. Paridos de tumbas profanadas, aqueles corpos de
falsa carne estavam armados e mascarados, apontando para mim suas lâminas. Sua
pele era cinza, parente próxima do preto retinto. Eram fortes como soldados e
denotavam a perícia dos mesmos ao brandir suas armas e assumir em absoluto
silêncio posturas de ataque e alerta.
–
Miseráveis! Seus olhos vazios não podem achar um Arquimago. Suas mentes vazias,
podres e estioladas não podem achar o gênio! – e com minha Arte sumi de suas
vistas precárias e deterioradas. Envolveu-me a treva da noite em um abraço frio
e sem cor, deixando-me livre das vistas deploráveis daqueles mortos perturbados.
Desprovidos
da capacidade de me enxergar, desci sobre eles minha lança. Armas comuns teriam
apenas marcado suas peles geladas ou cortado falsa carne para deitar sangue
escuro e pisado. Mas eu não portava armas ordinárias, e há desde sempre em
minha lança mais encantos do que há em salões de reis e livros antigos. Cada
golpe clivava a carne amaldiçoada como se o golpe fosse dado contra o veio
d’água. Fumaça escura com o cheiro da podridão subia pelo ar conforme trapos
imundos caíam vazios no chão, encimados por máscaras sem expressão e armas
pesadas de aparência cruel.
Ainda com
o manto de noite, aproximei-me do palacete. Mesmo antes de ser assaltado pelos
mortos vivos eu vira que aquele lugar estava tomado pela mais torpe coleção de
feitiços e encantos maléficos. Ali dentro havia maldade capaz de sortilégios
poderosos.
É verdade
que muito da Arte é governada pela Convocação dos Vários Caminhos, mas há
aqueles que, em sua ignorância, evitam nosso olhar e proteção. São da sorte de
iludidos e coitados que se creem além do alcance de nossas mãos, capazes de se
oporem a nós. Certamente era gente dessa laia baixa que estava lá dentro do
palácio. Acreditava que deviam ser vários, pois controlar os mortos já não era
mais trabalho de uma só mente.
Porém eu
também me perguntava o que era de Viatra, a enviada da igreja. Ela jamais
dividiria teto com gente que chama mortos de seus túmulos para que matem os
vivos, pois também pela igreja de Selmar é proibida tal arte má. Uma coisa é
mexer com ossos inanimados, outra completamente diferente é perturbar para o
assassínio os vestígios do espírito e da identidade de um morto, que merecem
toda a paz do esquecimento.
O que
acontecera com Viatra, contudo, estava prestes a ser fato conhecido por mim. A
noite estava chegando ao fim, mas o céu continuaria escuro sobre Varuzal.
Sombras de grande poder estava estendendo-se sobre as terras com mais potência
do que até mesmo eu poderia supor.
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