Ontem de
manhã um de meus pupilos perguntou se o Mito do Labirinto, de Tentanagos, no
qual um homem passa horas a fio andando por um labirinto procurando uma saída que
ele eventualmente descobre não existir, serve como alegoria para os momentos de
alegria. Tal pergunta, cuja reflexão despertada aqui registro, é curiosa: Há
labirintos em que nos colocamos nos momentos de tristeza e aflição, dor e medo,
e acreditamos que há saída deles. Mas e nos momentos de alegria, de bonança, de
prazer? Há labirintos para a mente neste momento também? Discutimos o que
Xantaca e Eurextímenes escreveram sobre felicidade e ilusão, mas ao final da
aula, ao deitar minha cabeça sobre o travesseiro, eu ainda me perguntava o que
o discípulo havia me perguntado. Então sonhei com uma mãe dando a luz, mas a
corda da vida que a prendia ao seu filho alongou-se por metros sem fim e a
envolveu em um labirinto. Então, no sonho, vi um marinheiro finalmente
regressando ao seu lar e à família, mas as ondas crispavam-se em um labirinto
de espuma e correnteza. Então vi o gado, gordo e saudável diante da família de
camponeses orgulhosos. Os chifres e as ancas dos animais organizaram-se em um
labirinto terrível sobre as colinas. Eu recebera em meu sono a resposta conforme
os Deuses a sopravam para mim... A tristeza é o caminho curto e reto. O corte
da tesoura da parteira, a proa riscando o mar ao deixar o porto, a faca
abatendo o boi. A felicidade é o labirinto, sem alegorias. As idas e vindas do
parto, a longa viagem para o lar, a espera da vinga do gado. Da alegria, pelo
contrário, não há uma maneira de achar saída. Ela nos desorienta e nos faz
incapazes de vermos qualquer caminho promissor porque aceitamos que todo e
qualquer caminho é tortuoso. Se há um inimigo para a Razão, que cega a mente e
a torna incapaz de tomar o caminho mais claro para o entendimento das coisas,
eis o seu nome: alegria.
– Estudos de Messireme, Filósofa de Lessara
O
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s ventos que trazem são os mesmos que se vão
levando embora, com o tempo, algo daquilo que com eles veio. Assim é o ciclo da
mudança. Dá-se algo para receber outra coisa. Perde-se aqui para ganhar-se algo
adiante. Nunca é certa a noção de falta ou do ser incompleto – se algo faz
falta é porque foi preenchido por outra coisa que veio no momento da perda.
Perde-se
um amigo, perde-se um lar, perde-se um bom negócio, perde-se uma chance
única... Ganha-se uma longa fila de memórias, ganha-se um rol de avisos que
ficam cifrados na carne, ganha-se a cautela sem a qual a vida não segue.
– Eu estive
esperando por tal momento há muito tempo! – ouvi quando diante de mim o vampiro
fez-se uma fonte de ódio frio. Mas não fora a criatura má que o havia dito,
tampouco Viatra, que estava amarrada e estática em um dos pilares do salão.
Aos poucos
uma sombra imensa tomou conta do chão e da parede do fundo. Alguém entrara por
uma das portas principais, por onde há pouco haviam trazido o prefeito de
Varuzal. Era um homem encapuzado e munido de espada, sua voz ecoara no silêncio
de modo imperioso.
– Eis que vejo uma face conhecida se
aproximando, pisando agora as cinzas de meus inimigos vencidos – disse eu,
apertando a lança em minhas mãos – Mas vem o portador de tal face como amigo ou
como inimigo?
– Vem como
homem em busca de vingança e em busca de informação.
A mulher vampiro
desceu da cadeira sobre a qual estava em pé e tomou do punhal que usara para
abrir as veias do prefeito. Tinha na outra mão o cálice de onde sorvera o
sangue. Sua nudez branca como a morte fora manchada por sangue, o que deixava
ainda mais selvagem e ameaçadora a sua aparência. A face estava dominada por
uma expressão selvagem e terrível que até meus olhos, tão acostumados com as
feras, tinham dificuldade em discernir ali algum brilho restante de humanidade.
– Você,
bastardo! – ela vociferou conforme o homem de capuz aproximou-se de nós três –
Vim em seu encalço degolando e apunhalando, e eis que quando perco seu rastro
nauseabundo é porque estava escondido debaixo de meus pés!
– Pisou-me
porque assim deixei, condessa – disse o recém-chegado, enchendo o ar com a
surpresa. Nunca imaginaria eu que aquela criatura vil tinha títulos nobres – Eu
estou aqui há dias e mais dias, mais do que você mesma estava. Por meus feitos
os refugiados que por aqui passaram tiveram comida, abrigo e alívio. Tudo o que
não pude lhes dar foi nova terra e boa esperança. Tudo o mais garanti que
Varuzal lhes desse.
– Porco!
Cão chifrudo! Besta linguaruda! Vou voltar para o norte com seu coração nos
meus dentes! – e ela pulou sobre o homem como um gato sobre o rato, de modo que
nenhum ser humano era capaz. Talvez a falta de decência e de uma alma a
deixasse assim mais leve e ágil.
Mas o
recém-chegado não a recebeu como presa surpresa. Atracou-se com ela de modo não
menos feroz, e grunhiam e berravam conforme um combate animalesco tomou forma
no salão. Atacavam-se com punhais e com a pura força profana de seus braços.
Fui até
Viatra, a enviada da igreja de Selmar, e libertei-a dos nós que a prendiam. A mulher
então virou para mim a face vendada, e seu lábios pintados de branco finalmente
esboçaram alguma emoção. A fúria.
– Mataram
meus soldados. – e os fogos do salão, apagados quase todos, acenderam-se de
pronto – atiraram os livros de Selmar no estrume e no sangue dos porcos! – e as
chamas elevaram-se, lambendo as paredes do salão e saltando para fora das
lamparinas, archotes, velas e braseiros – depois queimaram cada página do livro
sagrado em fogos onde assaram seu alimento sujo! Cada livro de Selmar é uma
obra sagrada, um pedaço de Selmar no mundo. E eles profanaram essas relíquias
manuscritas após terem vilmente encomendado tantas sob o falso pretexto de
divulgar a fé!
E o grito
que ela emitiu foi cheio de dor e revolta, a revolta que os crentes sentem ao
verem violadas suas frágeis ideias de verdade. Haviam insultado e atacado o que
ela queria inatingível e prístino, e por isso mesmo eu não conseguiria dissuadi-la
ou sugerir-lhe o pensamento racional.
Conforme
as chamas no recinto tomaram as formas de asas que esvoaçavam um incêndio pelo salão,
os dois nortistas estava digladiando de maneira animal. Já haviam dispensado os
punhais, e ela arrancara quase todas as vestes dele. Nacos de carne faltavam
nos corpos de ambos, arrancados a mordidas.
Eu saí do salão
envolto em chamas e fumaça branca, deixando para trás Viatra, que parecia um
pilar de mármore pintado no centro da sala incendiada. Parecia-se em algo com
uma estátua que ornasse um templo saqueado.
Também deixei
para trás a mulher vampiro e seus embustes, perguntando-me porque ela viera em
perseguição de tão longe.
E deixei
também Elão de Varraquêz, o vampiro que eu encontrara nas montanhas longe dali
numa hora de exterminar bárbaros.
O prédio
queimava em pouco tempo. O fogo da revolta selmarina quebrara as janelas com
mais presteza que a de vândalos ensandecidos. Mas esse som foi quase abafado,
pois o que exigiu mais de minha audição foram os gritos da mulher vampiro que
saíram do prédio e ganharam meus ouvidos:
– Vieste
de longe, cavando um caminho para uma enchente de encardidos! Pastor sujo que
guia uma vara de porcos covardes! Seus refugiados morrem agora, e morrerão
todos antes que eu mesma morra!
E eu
escutei o som de uma garganta lacerada como se eu estivesse diante da cena que se
desenrolara lá dentro. Um último rugido de revolta e ódio também me aterrou o
coração, mas era tarde para lamentar.
Varuzal
queimava. Os sinos começaram a soar demasiado tarde porque não haveria mais
jeito de contornar a situação.
Os fogos
começaram de praticamente todos os cantos da vila. Os mortos que a mulher
vampiro trouxera do túmulo profanado estavam em todas as ruas, quebrando portas
e janelas para violar as casas e trazer os cidadãos para as ruas para que lá
pudessem ser assassinados. A guarda da cidade fora pega de surpresa por uma
imensa horda sem vida, que chegara silenciosa conforme sua senhora ordenara
apenas com um único pensamento mal. Só então eu entendia porque a mulher
vampiro me encarara durante tanto tempo sem dizer palavra ou fazer ação alguma:
estava conferindo ordens para seus mortos escravos enquanto eu ficara tolamente
na defensiva.
Eu poderia
ter evitado aquilo. Com meus pensamentos eu poderia ter invadido os dela, e com
minha concentração eu poderia ter quebrado a dela. Seus mortos cairiam no chão,
sem mentes, e ela estaria sem sua tropilha de amaldiçoados.
Mas não.
Varuzal queimava. Cada casa queimava porque eu não agira rápido. Cada pessoa
sangrava a morte porque eu não pensara melhor. Faltara visão para um homem como
eu, e essa era uma falta tão grave, julgou o destino, que o preço foi pago por
toda uma vila.
Aqui e ali
mais chamas estouravam. Como isso era possível eu não soube tão cedo, pois as
criaturas mortas tinham total aversão às chamas e delas escapavam com um
resquício de instinto que trouxeram do túmulo. Soube, contudo, que era obra de
mão humana mandada e pensante, pois as partes da vila que queimavam eram
aquelas que não estavam sob ataque dos mortos. E eu poderia ter evitado aquilo.
Os portões
ardiam e ali havia um obstáculo para a fuga de qualquer um. Eu caminhara quase
que sem saber até o portão sul, onde uma multidão considerável havia se
encontrado apenas para deparar-se com a porta trancada e em chamas, tornando
impossível sua fuga. Haviam trancado a casa mas o assassino já estava escondido
dentro do quarto. E eu poderia ter evitado aquilo.
Os mortos
que foram ao seu encontro já os abatiam, incapazes de misericórdia. Estavam
entre a lâmina velha e a chama devoradora, e muitos não sabiam escolher seu
fim. Ninguém ali lutava pela sua vida, já haviam entregue as almas para o
destino de morte. Eu poderia ter evitado aquilo.
Mas eu não
podia falhar com mais gente aquela noite. Não depois de meu erro fatal. Eles
haviam perdido casa e sangue, não podiam perder tempo e futuro. E, se eu acredito
de vez em quando em tal coisa, não podiam eles perder esperança.
Com meu
comando inenarrável e com o abrir de meus braços envoltos em pano negro, tendo
a luz da lua refletida em minha face, os portões em chamas apagaram-se com um
sopro frio das alturas em único segundo, e desabaram sobre o fosso seco como
ponte de pedra inquebrável.
Então,
enquanto eles fugiam, eu exigi para mim a atenção de todos os filhos da tumba
que ali estavam concentrados em matar, e todos desviaram para mim seus olhares
vazios e sem cor. Investiram com a última vontade de sua senhora dominando suas
mentes vazias.
E desta
vez eu não me fiz invisível para seus olhos ausentes. Eu encontrei cada um com
minha lâmina: eu deixara a lança cravada no chão e tomara de minha espada,
Altala, e com ela clivei a maré de maldição como se fosse o raio de sol
matutino que corta a treva sem resistência escura. Quantos caíram por mim eu não
sei narrar, pois dali a pouco todos os mortos que assaltavam a cidade deviam
estar atacando a mim, chamados por algum encanto horrível que ainda perdurava em
suas mentes violadas.
Quando
tombei de joelhos eu já quase não era mais senhor de minha carne: eu havia
perdido meu corpo para o cansaço. Meus tendões ardiam e meus músculos eram
tortura. Altala estava presa às minhas mãos, as runas engastadas no ferro
brilhavam como brasa. Eu tentei olhar a lua, mas pilhas de cadáveres
amaldiçoados barravam-me a visão. Eu havia caído da pilha de inimigos que
eu mesmo formara.
Minha lâmina
enfeitiçada mantinha suas formas vis sobre a terra, então eu reuni meu resto de
força e embainhei-a. De pronto aquela pilha desfez-se em fumaça horrível e troféus
de guerra conforme os mortos perderam suas formas mundanas. Eram só lembrança
perturbada novamente.
Minha face
encontrou o calçamento. Eu ouvi passos, mas era mais gente fugindo pela porta
do sul, escancarada por mim. Não sabia o que era de Viatra, nem o que era de
Elão, nem o que seria de Varuzal. Preocupava-me mais saber como estava meu
pupilo Sarão, mas eu estava além da capacidade de conseguir procurá-lo.
A única
força naquele lugar, naquela hora, capaz de me acolher em face à vergonha e a
exaustão foi a noite. Mas logo ela ia embora, dando lugar à manhã.
Naquela
rua, com a face colada no chão, depois de um tempo tão longo, eu reencontrei em mim
aquela capacidade de salgar o mundo com a alma dos olhos.
A manhã
rompeu pelo céu. Vergonha. A luz do sol me encontrara em pranto.
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