Pergunta-se
aqui e ali, com curiosidade impossível de se esconder, qual é a sina do homem.
A resposta, esta eu aprendi ao longo de duros e amargos anos. A sina da gente é
parelha ao tortuoso caminho do sofrimento. Somos todos nascidos de dores e
sangue deitado, agourando o porvir de cada alma, que conhecerá dores e
derramamento de sangue com a mesma certeza que a morte vem. Até que a morte
venha, contudo, nos é dado o direito e o tempo para ganharmos glória, para reclamarmos
tudo aquilo que é efêmero mas contenta nosso coração, aplacando por algum
espaço mínimo de tempo os temores a que se entrega o coração infirme ou
aplacando por algum espaço mínimo de tempo os pesares que se abatem sob a mente
consciente e desperta. Eu tenho muito, seja o assunto conhecimento de mistérios
e fatos da natureza, ou seja o assunto as posses estranhas às quais se apega
o homem. Tudo isso tenho muito, e tenho também histórias e relatos das mesmas.
Tudo isso porque muito vivi. Tudo isso porque, como todos, nasci de dor e sangue
deitado. Porque, como muitos, vivi em meio à dor e ao sangue deitado. Mas
porque, como poucos, tenho consciência destes caminhos tortuosos por onde
escorre o sangue e por onde a dor caminha mais sôfrega, caminho que todos temos
de percorrer até que a dor acabe e o sangue pare. Eu, sozinho tantas vezes
nessa percepção, sei da sina do homem e entendo que ela é inescapável de
maneira diferente que o simplório, que só a pode sentir sendo cruel. Prego,
pois, a visão. Não para escapar do inescapável, mas sentir amenizar os fardos da
sina do homem.
– Varyn, Meditações de um Mudador, vol.2
ontam os relatos no Livro Selmarino que Selmar, o
Homem-Sol, deu sua vida para que a humanidade perdurasse. Sem seu sacrifício o
mundo teria sido perdido em uma era de sombra e caos, no tempo em que o mundo
era todo um único campo de batalha circundado por um mar de sangue. Mas dizem
os crentes que Selmar abriu suas veias no topo do grande Monte Solarrim, no
exato momento em que o sol tocava sua crista de pedra. O sangue do homem lavou
as terras todas e incendiou-se sob a flama do sol, criando uma enchente que
purificou a terra por fogo. Só assim foi possível recomeçar, só assim foi
possível para a humanidade povoar uma terra nova. Creem eles que só os que
sobreviveram ao dilúvio de fogo de Selmar é que eram dignos de viver, mas que
por má arte sobreviveram também outros, o que explicaria todas as levas de
gente de tantos reinos e terras diferentes que, tal como eu, não se deixam
perturbar pela ladainha dos Selmarinos.
Mas que a
igreja de Selmar tinha muito poder, isso não é prudente negar se o que se
almeja é a alcunha de sábio. Através da fé ilógica e do dogma visceral
dominavam massas e massas, e essas massas submissas faziam-nos manipular a
realeza. Poucas coroas reais têm a vontade de descartar a influência da igreja
– seja pela mão de obra que pode recrutar quando desejar, seja pelos fundos de
que dispõe, verdadeiros rios de riqueza, ou seja por sua influência prodigiosa
através das nações.
A presença
de uma enviada da igreja Selmarina em Varuzal só podia indicar que coisas
importantes estavam acontecendo ali. Importantes o suficiente para atrair o
olho da igreja. E porque o carroção de Viatra trazia livros sagrados para o
povo da igreja, algum acordo de grande importância devia ter sido feito.
Não foi o
que de fato eu vi se desenrolando quando espiei a cena que se abatia sobre o
salão do palacete do prefeito de Varuzal, mas isto conto apenas depois de
contar como fiz para infiltrar-me em tal local.
Uma vez
que por mim tombaram os misérrimos desalmados que foram atiçados contra mim,
vasculhei a área em busca de mais defuntos ambulantes. Nada. Mas aquilo já
explicava um pouco dos animais mortos nos arredores da vila: aquelas criaturas
nefandas são mantidas vivas por meio do sangue de animais de casco, e isso,
somado ao relato que eu obtivera sobre a longa medida de tempo durante a qual
várias criações sumiram das casas dos camponeses, permitiu-me concluir que
havia uma força de mortos lutadores estocada ali naquela vila. A presença
daquelas criaturas sórdidas na terra enchia de temor inexplicável o coração das
pessoas, fazia murchar as plantações e deixava o gado louco.
Quanto a
mim, essa presença horrenda trazia inquietação, pois aquelas terras
mantinham-se pacíficas apesar da proximidade com as terras da guerra. Por ali
passavam tantos refugiados. Teriam estes de ir para ainda mais longe?
Fui atrás
da fonte de tanta sordidez. A raiz desta árvore morta e enegrecida estava
dentro do palacete. Passar por uma porta vigiada por seis guardas era um
desafio, contudo, que me estimulou demais a imaginação e não me causou nenhum
nervoso.
Mas este
era, ainda assim, um desafio. Tomei-o com muita alegria.
Eu poderia
ter me disfarçado aos olhos daquela gente. Passar pelo que eu quisesse. A soldadesca
costuma perder o olho bom para o embuste quando é posta plantada na frente da
porta e aprende apenas o nome de quem deve saudar. Mas eu não quis me valer da ignorância
alheia para atestar alguma perícia. Poderia eu ter passado invisível por entre
eles, e pensariam que fora apenas capricho do vento o abrir das grandes portas.
Era provável, contudo, que pensassem nesse caso que fosse obra de mau encanto,
estando a vila tomada pelo pavor suspeito. Poderia me anunciar, mas ao fazê-lo
chamariam seu senhor, que naquela momento poderia estar sendo orientado por
Viatra, que sendo da igreja desprezaria a boa vinda dada a um feiticeiro.
Decidi, sendo
bom amigo de alguma lógica, usar outra porta. Outra entrada, melhor dizendo. Uma
em que não houvesse porta.
Fiz-me de
amigo confiado das sombras e estas, densas, ludibriadas pela Arte e pelo meu
agrado dissimulado, cercaram-me como amantes queridas, como aduladores baratos,
como roupas de honraria. Abraçavam-me braços sem luz, odiosos mas sutis, pavorosos
em sua frieza e escuridão, mas belos pela simplicidade e ausência da pretensão.
Fiz-me, então, denso como a sombra de um fantasma, e deslizei pela área plana e
aberta entre mim e o palacete como deslizam os sonhos, as alegrias e as dores
diante dos olhos humanos.
Ao encontrar
a parede, esse obstáculo ferrenho de pedra e vontade de longo termo,
atravessei-a sem me importar com a intrusão. A sombra guiou-me de um lado da
sombra do muro para o outro lado da sombra do prédio, e lá dentro estava eu,
nas sombras conjuradas pelos archotes e lâmpadas de óleo.
O ambiente
cheirava a decadência.
Silencioso
o suficiente para pegar desprevenidos os pássaros e para causar inveja a um
gato negro, andei pelos corredores como se estivesse em casa de convivas
apreciados. Sem esforço deduzi, pela lógica da arquitetura local, conhecida por
mim, onde ficava o porão. Fui até lá, e aquela vasta sala cortada por mais
paredes tinha adegas e uma dispensa farta, depósitos de material da criadagem e
quinquilharias que foram melhor estocadas longe da vista dos que acima faziam boa
morada. Meus sentidos de mudador me levaram até a pedra fundamental do casarão,
ela estava enterrada sob algumas pedras de piso mas me bastaria estar perto
dela mesmo assim.
Sobre as
pedras que encimavam a fundamental, aquela que fora a primeira do palacete,
joguei minhas runas engastadas em âmbar e desenhei com a ponta da faca meus
glifos de pergunta. A vidência me revelou os segredos todos daquela construção,
e dali saí andando pelo palacete como se estivesse em casa minha de tão familiar
que se tornaram para mim os corredores e cômodos. Eu talvez soubesse da planta
do palacete melhor que aquele que o construiu – e tendo eu mais visão e ousadia
que o arquiteto comum, é provável que de fato eu melhor conhecesse, porque a razão
aguçada traz mais uso a uma simples janela ou porta do que a mente unifocada
daquele que as desenhou e dispôs.
Porque ao
invés de passar pelas portas mais usadas para chegar ao salão principal, fiz
meu caminho pelo alto da construção, nas traves do teto. Por ali caminhei com
peso reduzido, pois assim o quis, e não fiz ranger a madeira velha. Foi assim
que eu pude contemplar a triste cena que mostrava o que era e o que estava para
ser de Varuzal.
Havia um
fogo aceso no centro do salão, e ali assavam talhes generosos de carne. Ao redor
três mesas foram postas, formando uma sorte de triângulo. Os comensais eram
todos gente alta e sinistra, envolta em trapos negros ou marrons, uns vestiam o
couro cru e mal curtido, ainda cheirando a sangue, que retiraram de bovinos com
as próprias mãos.
Viatra
estava ao fundo, amarrada na altura do pescoço, da cintura e das pernas, com as
mãos atadas. Estava estática e muda. Prenderam-na a um dos pilares do salão. Seus
guardas não foram poupados, jaziam pendurados em outros pilares, de cabeça para
baixo e sem elmos, tendo congeladas nas faces as expressões de uma morte à
traição.
Observei que
reinava a maleficência. Abaixo de mim festejavam homens vis de má índole, que se
cortavam com suas facas longas apenas pelo prazer da dor e do sangue. Isso para
dali a pouco, ainda em meio a risos, talharem a carne mal cozida e comerem-na
vorazmente, cuspindo pedaços aqui e ali. Eram homens, a maioria, e faziam
daquela casa de governo um prostíbulo forçado ao terem para sua luxúria moças
sequestradas dos campos. Não eram meretrizes de gente torpe, eram gente marcada
pela lida: mãos calejadas e traços firmes, o cabelo seco pelo sol. Estavam sendo
prostitutas forçadas, talvez sob encantos maus de quem sabe algo da Arte e provavelmente
por resultado de ameaças tão ruins que só se indica através delas a procedência
fatal – o coração do homem.
A orgia
tomava forma enquanto os homens brandiam facas cheias de sangue de amigos, de
moças capturadas e de carne de porco e vitela. A cabeça de um suíno, percebi,
fora arremessada ensanguentada por sobre uma das mesas, deixando o rastro de
sangue para estalar-se aos pés de Viatra, que sob sua venda parecia cega e
surda ao que acontecia ali.
Enquanto uns
se cortavam e outros se regalavam com diferentes carnes, vi que sobre todos
reinava um espectro mais medonho: uma mulher estava sentada em uma cadeira de
alto espaldar, mais alto que os das outras, e ela tinha nas mãos uma taça
imensa e vazia, além de um punhal. Ela estava nua, sentada sobre a cabeça de um
touro negro, entre os chifres do animal. Bateu a arma na taça e com esse
comando dois homens à mesa foram buscar o prefeito.
Sim, ele
estava lá. Se estava ciente do horror, não soube dizer. Quando o trouxeram de
seu quarto, mostraram para mim, sem saber, um homem debilitado e desprovido de
forças. Sôfrego, ele levou sua palidez até os pés da mulher nua que tinha nas mãos
a taça. Jogaram-no, na verdade, e o que ele de imediato fez não foi procurar
revolta ou explicação: foi virar-se para cima adorador e estender um braço para
sua amada.
Espero eu
que quem me lê seja intuitivo e sagaz o suficiente para deduzir o que
aconteceu. Em respeito a este que pensa ligeiro e a esta que sabe que só se é
sábio ao usar a sabedoria, dispenso minuciar o triste ocorrido. Após a mulher
abrir mais um furo no pulso do prefeito ele, com o que bem poderia ser um
último fôlego, declarou a ela seu amor profundo. Enquanto ele balbuciava no
limiar das forças de seu peito, ela apenas encheu a taça.
De longe
vi ali naquele rosto pervertido uma sombra terrível. Duas, na verdade. No lugar
do clarão de olhos vivos e tenazes de mulher que impera eu vi dois rombos
hediondos por onde vazara toda a humanidade. Aquela sombra era familiar: Elão
de Varraquêz não fora o único daquela estirpe maldita que eu vira em tão pouco
tempo. Lá estava eu diante de um vampiro.
A criatura
nefanda bebeu da taça com avidez, e o que não coube em sua boca já cheia e na garganta
já inflamada, deixou cair livre pela face, ensanguentando a seguir o busto e o
colo. O sangue do prefeito parou ao pingar do focinho do touro decapitado.
Foi demais
para mim. Eu não suporto esse tipo de decadência. Não havia ali valores, não havia
ali decência. Embora eu abnegue os valores do tolo e ria da decência dos
medrosos, eu digo que nada é da vida longa do homem sem que ele direcione sua
capacidade de pensar para o bem de seu semelhante sempre que possível. Má é a
pessoa que tripudia na desgraça alheia. Uma coisa é matar o animal que vai para
a mesa, ou dar misericórdia ao moribundo, e é compreensível dar cabo do inimigo
que não perdoa ou se detém, e aceitável torna-se a morte de um monstro cruel
que ameaça com sua existência. Eis aí de onde derivam os valores que defendo:
da verdade. Da constatação, da observação, da compreensão da brutalidade das
coisas. Não de dogmas iníquos e de verdades impostas, mas daquela verdade que
segue o que é amante da observação e amigo do pensar cuidadoso.
Desse modo
estava eu diante de tamanha depravação que não pude me abster. Se eu tivesse
tido menos paciência, teria feito daquele palacete fogueira que queimaria pela
noite e seria vista por toda a cidade.
Com
desprazer de ter de fazer o que devia ser feito, pulei do alto do teto e caí
sobre o fogo aceso. Já com as palavras certas para conjurar a amizade das
chamas, fiz com que a fogueira se excedesse em sua forma e agarrasse com garras
de incêndio aquela gente grotesca e animal, pois animal pleno é aquele que
abandona sua sabedoria para saciar seus instintos mais básicos. Como assim
dispensavam sua sabedoria e razão, queimei-lhes as cabeças, e o cérebro
queimado fez incendiar ideias torpes e maus encantos que reinavam sobre aquela
terra.
Mas como
eram rudes e frios os seus corações, incapazes de se regozijarem na piedade que
se tem da gente trabalhadora e incapazes de se contentarem com a admiração que não
destrói ou profana, queimei-lhes também o peito, abrasando aquela frieza
horrível. Corações queimados deixaram em brasas e cinzas cálidas as emoções mais
vis que pulsam na carne humana.
E como
usavam de seu sopro e sangue apenas para ferir e macular, queimei-lhes sem
cerimônia as mãos e os braços, e cada dedo virou uma chama desconhecida para a
palma, castiçal. O calor daquelas feridas fez tórridos tantos atos passados de
tortura, sortilégio e assassínio que a fumaça que se desprendeu conforme
murchavam tantas mãos de gente ruim foi incapaz de ganhar a altura e encarar a
noite lá fora, de modo que caiu sobre o chão em mantos negros e sinistros.
E enquanto
os berros retumbavam, senti tantas mentes que escaparam da chama se armando
contra a surpresa e contra mim. Tomaram de facas e facões, e em várias línguas
armou-se o mau encanto.
Ai daquele
que contra mim desperta a sanha de colocar o feitiço. Torna-se fúria toda a minha
paciência e faz-se em ódio minha complacência quando usam contra mim a Arte.
Aquela gente baixa falou coisas para murchar meu coração dentro peito, e para
que ele parasse, e tentaram roubar meu fôlego, deixando-me oco de ar, e
tentaram roubar a fluidez de meus tendões e carne para que eu tombasse seco.
Tentaram, os mais audazes, expulsar minha alma de meu corpo para que morto eu
caísse de pronto, ou ordenaram que me agarrassem pelo pescoço sombras infernais
e que me arrastassem para terras longínquas onde existir dói.
Mas minha
pele é grossa porque sobre ela correu a água de chuvas estrangeiras. Meu pelo agrisalhou
sob estrelas desconhecidas para eles. O pó de estradas já esquecidas cobriu-me
os poros, e luzes de casas tão distantes me iluminaram também. Toque de gente
estranha alcançou-me os nervos em lugar longe dali, e a minha aura cresceu com
as canções de pássaros e de mulheres que habitam além das fronteiras
percorridas com afinco.
Não, nada
daquele rol de maus desejos ganhou entrada e morada no meu ser. Eu andara demais
por muito chão e vivera demais por muita vida para me deixar cair por fim assim,
nas mãos de gente baixa e egoísta. Mais uma vez eu estava cercado por nada além
da morte, que em sua nudez me estendia a mão. Aquele era novamente um dia de
morte, um dia de superação. Mas eu sou senhor de meu destino por razões que em
demasia me repito a elencar, de modo que eu faria claro que a morte não viera
por mim, e que não seriam aqueles iludidos que me superariam.
É certo
que Varyn é homem, e homem morre. Algum dia morrerei. E nesse dia tal coisa
acontecerá porque alguém há de me superar. Mas aquele dia não é tal dia, e esse
alguém não estava ali entre aquela gente.
Eu vivi
porque nada me dobrou a vontade. Fiquei incólume diante daquela vileza baixa e
ignorante. Aquela falsa, pretensa sabedoria era mesquinha demais para entender
a Arte como eu sou capaz. E a Arte, ultrajada, obedeceu meus comandos para
livrar mais uma terra de gente que faz mal uso dos dons da mente e da
obstinação: eu chamei os nomes de ventos ancestrais da respiração humana e na
minha mão que não portava a lança eu agarrei as correias de relâmpagos e uma
trança dos céus. Abri os dedos e por entre eles eu vi escorrer a luz das nuvens
mais negras, e calei os gritos com o estampido do trovão. O raio solitário estalou
pelo salão, conquistando carne e voz como conquista a luz mais humilde a
vasta habitação da sombra.
E quando
tudo enfim quedou silencioso, e quando as camponesas pisaram fugidas as pilhas
de cinza de má gente, eu estava em um salão quase deserto. Restaram ali, para o
diálogo sem paz, um vampiro depravado e cruel vindo do norte, Viatra, ainda
aprisionada, mas em pensamentos plenamente atenta a mim, e eu, que estava de pé
no centro do salão, cercado por um notável anel de cinzas, onde se misturavam
as cinzas da fogueira inocente que se apagara, as cinzas das maledicências das
quais eu me recusara a ser vítima e as cinzas de meus inimigos.
A mulher,
nua e pavorosa em sua crueldade, encarava-me com maldade e fúria. Seus olhos
desalmados eram presas geladas procurando meu coração.
A primeira
palavra ali desferida, contudo, não foi de nenhum dos três.