A Cabeça
I - Há um fardo que nascerá comigo
É involuntário. Quando acordo, olho para minha escrivaninha. Ela está lá, de olhos fechados. Ainda é de mármore, ainda é fria.
É uma cabeça, não tem expressão. Às vezes, não tem olhos nem lábios, é lisa e tem uma única protuberância (o nariz). Outras vezes é completa, é inteira, parece a cabeça de uma Deusa grega que dorme após matar as filhas de Niobe, e não sei de qual das duas formas tenho mais medo, da clássica ou da abstrata.
Eu tenho que levantar e carregá-la pelo resto do dia. Por onde quer que eu vá – trabalho, casa, rua, bar – ela está comigo. Eu carrego e a sinto pesada. Eu a levo e a sinto gelada. É um peso que carrego, sim, uma cabeça que não posso largar, uma cabeça que faz minha cabeça doer.
Quando vou dormir, não a vejo mais. Ela não está em minhas mãos. Ela sumiu. Juro pela última vez que não vou olhar para nada quando acordar.
Mas eu acordo.
Mas eu olho.
II - Para relembrar os que assassinados jazem
Sou um tolo. Sou um tolo que se atém à pureza da forma. A beleza do mármore me é mais cara que a essência da forma talhada, mesmo sendo mais clara. O que mais amo, porém, é o ato de esculpir. A criação, o resgate do corpo atônito de dentro do mármore é que me excita conjecturas e conjugações, iludindo-me com o mero fato da pedra trabalhada, ou aplacado pela máscara significativa que a estátua coloca entre mim e ela. A estátua se esconde bem; faz-me ver o que não é através do que não sou. Meus olhos não a procuram. Mas sei do ato da criação, e ele é inviolável.
III - Uma visita à galeria das sabidas ignorâncias
Que importa aos olhos meus, tão leigos, a origem e qualidade da pedra, se tão fácil me acalma e desconcerta o descante da curva esculpida? Sejam nós chorosos de Lacoonte ou o silêncio triunfante de Perseu, sejam águas espraiadas pela Ondina que se levanta ou a tez marmórea de uma Vênus - dão-se, os escultores, ao trabalho de driblar meus sentidos que tão fácil já se fascinam, fascinando-me assim mil vezes mais. Ah, o cicládico já bastaria na intenção de me enganar.
IV - Um motivo vago e sua resposta abismada
Entremeios, com algum receio pergunto-me não ver maldade na sanha do escultor em talhar a pedra para transformá-la em algo familiar - e ao mesmo tempo despondente - aos olhos. É dicotômico, é perguntar se não seria mais justo, ainda que talvez menos arte, contentar-se com a pura e solene somente figura alégorica debilmente desnudada das asperezas e retas do bloco despercebido. A alegoria grita, pois desconstroi-se ao tentar fazer-se real, morre se tenta buscar a vida. Não morre o que nunca viveu. Uma mão boa (e, em minha pergunta, narcisista) salva-a da reta e angular perpetuidade. Dá-lhe deformidade, dá-lhe morte e dá-lhe razão, metamorfose da pedra em figura, do tema, na alegoria.
V - No momento do jejum, apenas uma luz acesa
Fazer fibrilar o ósseo tom da face no mármore... Há olhos querendo falar, uma boca querendo olhar e dois ouvidos tentando escutar. Há algo de errado em imitar sua postura imóvel? Fazer mímica do que é irreclinado? Vejo a alegoria empedrada encarando a quimera encarnada - ou será realmente o contrário? Posa para mim a estátua ou ela imita-me em minha admiração, conhecendo-nos assim pouco a pouco? Ela veio de sonhos, marmóreos relembrados, e eu vou aos sonhos, por pedras recebidos.
VI - Há um peso que carrego comigo
A estátua, enfim, talvez nasça do sonho de alguém que sem perceber deixa-se dormir e, inocentemente, esquece de voltar, para sempre buscando dentro de pétreos fetos aquela face sua, que se perdeu.
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