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Preâmbulo
Hoje, em Mencal, conheci um bruxo pagão que usa lama do brejo local para curar qualquer “aflição do espírito e da carne”. Se ele está certo não me coube dizer, pois estive muito brevemente naquele canto e apenas para refazer provisões depois de uma longa travessia pelos prados a leste da Marca dos Reis. Varyn trocou algumas palavras com o homem e, como sempre faz com esse tipo de gente, fingiu-se de tolo. Fez-se de desentendido até a hora em que o bruxo lhe estendeu um punhado de lama do brejo, ainda pingando a água palustre do odre no qual a terra era mantida. Varyn tomou aquela lama entre as mãos e devolveu-a admirado. Se essa admiração era fingida, jamais o saberei, mas julgo que foi sincero o seu espanto. O que guardarei em minha mente a partir do dia de hoje é que mesmo os homens de maior valia, visão e sabedoria são iguais a mais simplória das crianças quando sai para errar: a terra nos encanta.
Hoje, em Mencal, conheci um bruxo pagão que usa lama do brejo local para curar qualquer “aflição do espírito e da carne”. Se ele está certo não me coube dizer, pois estive muito brevemente naquele canto e apenas para refazer provisões depois de uma longa travessia pelos prados a leste da Marca dos Reis. Varyn trocou algumas palavras com o homem e, como sempre faz com esse tipo de gente, fingiu-se de tolo. Fez-se de desentendido até a hora em que o bruxo lhe estendeu um punhado de lama do brejo, ainda pingando a água palustre do odre no qual a terra era mantida. Varyn tomou aquela lama entre as mãos e devolveu-a admirado. Se essa admiração era fingida, jamais o saberei, mas julgo que foi sincero o seu espanto. O que guardarei em minha mente a partir do dia de hoje é que mesmo os homens de maior valia, visão e sabedoria são iguais a mais simplória das crianças quando sai para errar: a terra nos encanta.
– Craterla,
diário
T
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al como o ferro em brasa que vê na água uma
promessa de alívio e acaba por tornar-se forte e íntegro, eu vi no horizonte
tomado por picos e neve uma promessa de força. Eu colocara-me em desafio. Elão,
vampiro, subiu a montanha com velocidade notável. Deteve-nos a intensidade da
nevasca e a irregularidade do caminho, mas por fim achamos, seguindo rastros,
cheiros, sons e intuições, a grande reunião dos bárbaros das montanhas.
O que
aquela massa de rufiões via de sagrado em um solstício não me interessa senão menos
do que nada. O que tornava esse sagrado digno de sacrifícios de vidas humanas,
entendo pouco. No passado aquela escória sacrificava seus inimigos de guerra
pendurando-os pelos pescoços em longas cordas, que por sua vez eram atadas a
mastros longos que eram cravados nas bordas dos precipícios. Era de sua cultura
sacrificar bois da montanha e cabras para suas divindades bárbaras, e o que
isso significa para eles não me desperta a curiosidade. Entendo a mente do simplório
ao matar e deixar apodrecer o fruto de seu trabalho na pastagem e na lavoura
que muito melhor lhe serviriam na mesa ou no mercado porque espera assim
agradar a uma divindade que não vê, mas teme – o que muito iguala os Deuses dos
homens aos monarcas e seus anjos aos coletores de impostos e vassalos de
pedágios. Mas até esse propósito ingênuo de abrir mão de um bem valioso para
apaziguar ânimos sobrenaturais fora pervertido naquelas tribos. Sacrificar
gente caçada como cordeiros? Que divindade ou ânimo sobrenatural eles esperavam
agradar com tamanha tolice?
Mate-se um
homem na guerra, ou em defesa de suas posses, amigos e família. Ou que o seja
para preservar a própria vida, ou a santidade de seus ideais contra a
ignorância e vileza alheias. Mas abrir a garganta de uma pessoa e ostentar seu
sangue para o sol tão distante, o que isso traria de significativo ao mundo?
Eram
tantas as tendas montadas naquele imenso promontório, o pátio limpo de uma
fortaleza dos séculos passados, totalmente arrasada, e tantas eram as cores nas
bandeiras e fitas agitadas pelo vento que um vidente pensaria estar chegando a
um festival alegre, não a um banho de sangue iminente.
O sol do
crepúsculo de inverno baixava no horizonte, e naquele dia viria a noite mais
longa do ano. Ritos de uma semana e um dia culminariam ali naquele momento de
matança. Elão e eu abrigamo-nos atrás de um muro, um dos únicos vestígios do
tempo em que outrora ali houvera uma imponente fortaleza, salvo o pátio
quadrado, amplo e desimpedido.
“Disseste
de um plano. Anima-te a contá-lo?”
“Sim”
respondi ao vampiro “Eu conheço algo desses ritos dos bárbaros. Logo chamarão seu
grande campeão, o filho de seu Deus-Sol, e o prepararão para executar os
prisioneiros.”
“Matemos
este homem. Vamos dobrar os bárbaros pela destruição daquilo que creem
inviolável.”
Não tivemos
de esperar muito. As franjas mais altas do sol estavam abaixo da linha das constelações
dos reis, indicando o crepúsculo que começava. Sob os urros de imensa horda e o
rufar de tambores enormes que sufocavam o clamor de trombetas e chifres, um
homem disforme de tão forte saiu de um buraco na terra. Ele tinha o corpo nu e
a cabeça redonda, calva pela lâmina, estava pintada de amarelo. Sua face fora
pintada com um imenso círculo branco. Era uma clara alegoria ao sol saindo das
trevas, risível pela simplicidade mas repugnante pela circunstância e pela
feiura dos aspectos envolvidos.
O homem
tinha pelo menos dois metros acompanhados de um par de palmos. Os ombros eram
largos como o perfil de um boi, cada braço uma arma esmagadora de carne e osso.
A face pintada era aterradora. Pintaram-lhe a pele nua várias sacerdotisas
daquela gente, e naquele momento vi que teríamos problemas.
A tinta
que cada xamã portava estava embebida em um milhar de substâncias que,
combinadas, atiçavam a fera dentro dos homens a atacar e sentir o sangue do
inimigo. Aquele homem respirava a fúria e entraria no frenesi que desconhece a
dor e o medo. Tiravam-lhe a mente e a retidão com desenhos curvos e espirais
que descreviam a órbita aparente do sol na abóbada da maior armilar.
E, mais do
que isso, meus sentidos de feiticeiro acusaram ali a presença da magia. Aquela gente
fazia seu guerreiro imbatível porque assim o criam, e sua fé misturava-se à magia
dos símbolos e das tintas, e tudo amalgamava-se com o fervor de tantas mentes
brutas. O campeão dos bárbaros era, contra qualquer lâmina, um muro de granito.
Durante sua
preparação, o homem urrava, erguia os braços, ostentava o corpo para a multidão
reunida ao redor do pátio. Acotovelavam-se todos para ver o rito de
sacrifícios, os mais fortes tinham assim os melhores lugares.
“Sinto naquele
homem a força de mil soldados. Ele atacará com fúria desembestada e força
aniquiladora.” Informei a Elão, que pareceu reavaliar seus intentos de matador
conforme percebia a sombra do perigo crescendo em seus sentidos aguçados “Ele
está invencível porque assim o crê seu povo.”
“Que fazer
para derrubar aquela força profana, então?” Mas eu sabia bem a resposta para
esta pergunta, sabendo também o quão difícil seria realizar tamanha façanha.
“Ele está
invencível porque assim o crê seu povo.” Repeti “Se a fé que têm nele falhar, falharão
os sortilégios e falhará ele mesmo.”
“Deitemos seu
sangue. Isso mostrará que ele é vencível.”
“Fácil
dizer. Difícil de ser feito.”
“Não contra
tua feitiçaria, Varyn dos Muitos Caminhos.” Com tais palavras e um olhar
furtivo, aquele diabo daquele vampiro ganhara-me pelo orgulho – devia eu provar
que era feiticeiro mais capaz do que aqueles sortilégios postos por xamãs
ignotos das montanhas e mantidos pela convicção de pelo menos uma centena de
bárbaros irredutíveis.
A matança
tivera começo – o campeão dos bárbaros usava das mãos nuas para matar os pobres
aldeões e camponeses capturados das terras baixas. Ele abria-lhes as bocas até
o rasgar da morte, ou batia suas cabeças no chão até pisar em poças vermelhas.
Aquela barbárie inenarrável o colocaria em um frenesi selvagem e inescapável
dali a pouco.
Ele urrava
conforme matava, e ao fazê-lo erguia um corpo inerte diante do sol que descia
como se o fizesse com um boneco de trapos. Seu povo urrava excitado e feliz, e
xamãs jovens, muitos crianças, esgueiravam-se para molhar no sangue dos
sacrificados panos brancos que certamente usariam para seus ritos bárbaros.
Temiam serem vistos pelo homem e logo vi porque – já meio ensandecido pelas
tintas e pela magia, ele apanhou um menino de seu povo e quebrou-lhe as espinha
erguendo-lhe o corpo acima da cabeça, apenas com a força nos braços. Atirou o
corpo inerte para longe, sobre o povo que assistia a tudo com sanha sádica e
pavorosa. Eu percebi também que o homem não conjurava sombra alguma no chão.
Então os
urros foram atrapalhados. O cheiro de sangue de bárbaros misturou-se ao cheiro
de sangue de inocentes fracos – Elão abria caminho pela multidão. Os ombros e
cabeças eram sua estrada, e pulava rápido de um para outro, a todo tempo
golpeando aparentemente a esmo, na verdade sempre mortalmente.
Cabeças
talhadas e sanhas silenciadas, ele aterrou no pátio sagrado para os bárbaros. Os
jovens que recolhiam sangue fugiram, todos ficaram espantados com aquela
ousadia e sacrilégio, caso eles entendam essa noção, mas o campeão continuou a
matança, parecendo não ter notado nada. Ele caía em frenesi.
Mas Elão
chamou-lhe a atenção – apanhou de sua adaga e atirou-a certeira contra o homem.
A lâmina, que com a força profana de Elão teria enterrado-se mortalmente no
olho de um homem qualquer, apenas riscou a vista daquele matador e caiu no chão
sem ter deitado uma gota de sangue ou arrancado dele mais do que um grunhido de
dor.
Com olhos
arregalados e um urro demoníaco, o campeão dos bárbaros soltou sua próxima
vítima, que como todas as outras berrava sem pausa, e carregou contra Elão como
se fosse um touro louco.
Tanta
violência enojar-me-ia a memória não fosse a genialidade ou simplicidade que de
quando em quando ocorria para facilitar-me a avidez do relato. E, naquele
momento terrível, quem mudava as fortunas era eu. Varyn, o Agoureiro, eu estava
sentado com pernas cruzadas uma sobre a outra, no alto de um muro arruinado, a visão
cravada no coração daquele bárbaro coberto de glifos. Embora aquela magia fosse
potente, eu via claramente suas falhas. Eu via além e por trás daqueles
símbolos. A massa de forças envolvida naquela jaula de espirais e glifos,
alimentada por fé e esporeada por sadismo estava cheia de pontos francos. Era
eu um mestre tecelão vendo buracos imensos, rombos vergonhosos na trama tecida
por um mero aprendiz. Era eu um mestre escultor vendo sulcos comprometedores na
obra de amadores. Era eu um erudito letrado encontrando erros tacanhos e feios
na escrita dos escribas púberes.
Era eu um
arquimago, Cronista-Mor-e-Primeiro da Convocação dos Vários Caminhos observando
e percebendo com desgosto o trabalho bárbaro com a Arte.
Minha visão
virou um dardo inescapável e infalível que atravessou as falhas primárias
daquelas proteções e símbolos de força. Enterrou-se com ponta de cristal,
memórias e vontade mais forte no coração de carne daquele homem selvagem que
tentava agarrar Elão em um abraço de morte.
O campeão dos
bárbaros sangrava copiosamente pelos vários talhos abertos em sua pele por
Elão, mas aquelas feridas superficiais, se houvessem sido desferidas sobre
homens em condição normal, teriam talhado as fibras dos músculos até os ossos.
Mas o que fez aquela criatura possuída pela raiva de seu povo parar não foi a
dor que Elão lhe causava, esta desconhecida para ele, mas foi minha magia,
superior àquela que o enchia de pavoroso vigor.
Ele tombou
sobre um de seus joelhos quando faltou-lhe a força. Eu atacara o ponto certo –
minha mente estava devagar, pois devagar eu queria seu coração. Não me
interessava controlar aquela mente caótica, não me interessava controlar aquele
corpo disforme, por isso eu controlava seu coração. Eu roubava-lhe os
batimentos cardíacos, escutava o fantasma de sua cadência em meus pensamentos. O
sangue pulsava em seu peito imenso conforme minha vontade e pensamento assim
desejassem, e eu os fiz vagarosos e ineficazes como as ideias mais desesperadas
do tolo em apuros.
Elão
aproveitara a chance. Naquele momento de fraqueza eu senti a fé dos bárbaros
fraquejar. O exército de noções debandou com a morte do rei. O bando de raivas
fugiu com a morte do alfa. E com a queda daquela fé, veio a queda da magia que
tornava a carne daquele homem quase que inviolável.
Com três
cortes ferozes, sedentos de sangue e som, Elão decepou as mãos do inimigo, uma
de cada vez, e castrou-lhe de maneira terrível.
Os
bárbaros não emitiam mais som algum. Os gritos de dor e fúria de seu campeão
roubaram o que restava de fé nele. Era apenas um homem mutilado – que nem mais
homem era.
Elão
cuspiu-lhe a face e recuou. Encarou a todos os bárbaros com sanha diabólica nos
olhos. Arriscáramos uma revolta terrível, talvez até a eleição de outro campeão
– mas não. A perda da fé é a perda da fé, e por si só se implica a derrota de
todas as convicções. Aquela gente perversa perdera o gosto pela batalha,
perdera a fé em seus ritos.
O vampiro
do norte pegou as correias dos prisioneiros e levou-os consigo pela estrada
principal que levaria para as terras baixas depois de muitos volteios por
caminhos congelados e tortuosos. Eram espólios de um vencedor, isso os bárbaros
reconheceram. Afastaram-se quando Elão passou, e ele partiu puxando inúmeras
vidas salvas, para sempre marcadas pela violência. A fé de muitos morreu
naquele dia, a de tantos outros acabava de renascer.
Eu pus-me
de pé. Pensei se seria útil encontrar Elão novamente. Eu sabia que seria inútil
alongar-me com tais pensamentos, pois sabia com maior clareza que independente
de minha vontade e ligeireza eu o veria novamente. Eu sabia também que o
vampiro estava satisfeito – tinha alegria em saber que os bárbaros perderam a
fé em seus ritos mais selvagens e sangrentos, mais alegria do que teria se
tivesse, como antes dizia, matado a todos os saqueadores.
Evadi a visão
da cena que seguiu, e evado meus comentários da mesma agora. Basta dizer que o
que o povo tornado descrente fez com o campeão e com os xamãs foi
indescritível. Não achariam entranhas inteiras deles no fim daquela noite mais
longa.
Pela noite
eu deixei as montanhas. Não sei se Elão levara os libertos até as terras baixas
ou se logo os largara e seguia seu próprio caminho. Não me interessava muito.
Como tributo à providência que em primeiro lugar nos unira naquele dia, eu me desvencilhara
dele e esperava o reencontro por capricho da mesma força. Apenas queria que ele
não fizesse mal àquela gente débil e maltratada.
Quanto às amputações
que testemunhei na montanha, elas me lembraram de algo muito grave cuja urgência
de súbito cresceu em minha mente. Um inimigo meu, um castrado, aparecia naquele
tempo com frequência em meus sonhos e adivinhações. Eu sentia que nosso
reencontro desfavorável estava por vir, e que por algum motivo Elão estava
relacionado a isso.
Enquanto a
ameaça séria que aquele eunuco vingativo representaria para mim e para Elão
crescia em meu pensamento, eu ainda divertia as conjecturas com outras ideias.
Pois uma
vez Seraf, meu pupilo mais impetuoso, perguntou-me o que eu tinha a dizer sobre
o sexo. Ele fugira por pouco de uma turba de fazendeiros revoltados que
estimavam grandemente a virgindade de suas filhas. Ter se deitado com três de
uma mesma família em uma única noite foi demais para o senso de decência local,
de modo que Seraf fugiu de um estábulo de amores apenas com a calça e usando o
chapéu de uma das moças.
Mas sua
pergunta eu respondi com orgulho, anoto-a: o que dizer sobre o sexo?
Um pacto
de almas e carnes, meu caro.
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