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Preâmbulo
As ruínas estão vazias. Não há mais nada de novo nos mapas do Sul. Os caçadores de tesouro roubam, ou morreram de fome. Eu possuo relíquias, algumas, e todas me são muito estimadas. Guardo-as com o zelo com o qual se guarda em casa os filhos das mazelas da rua e guardo-as com o ciúme com o qual se tranca em pesadas arcas tesouros que me incitam toda a avidez.
As ruínas estão vazias. Não há mais nada de novo nos mapas do Sul. Os caçadores de tesouro roubam, ou morreram de fome. Eu possuo relíquias, algumas, e todas me são muito estimadas. Guardo-as com o zelo com o qual se guarda em casa os filhos das mazelas da rua e guardo-as com o ciúme com o qual se tranca em pesadas arcas tesouros que me incitam toda a avidez.
Se há
tesouros maiores no mundo, não quero saber. Basta apenas qualquer coisa que eu
possa ter entre as mãos, sentir o peso, esconder, trancar. Todo o resto está
condenado ao silêncio pavoroso e patético que sobrevém a um instante de caos e
delírio. A relíquia não – ela nasceu para o silêncio e, entre as idas e vindas
das guerras e da história, em silêncio irredutível ela se mantém.
- Varyn
Q
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uem diria
que, com o tempo, o silêncio se mostraria teimoso. Eu não sou um homem de
palavras, delas não sou companheiro bom. Sou comedido até em meu comedimento,
de modo que evito dar sopro àquilo que, se no olvido do silêncio, não faria
diferença ou não conheceria a falta que faz. Desse modo, pouco daquela jornada
desde o bosque com neve e sangue até as soleiras das portas dos gigantes pode
ser narrado por mim, pois houve quase nenhuma troca de palavras entre aquele
homem estranho com quem me deparei em minha andança por Auglandoc.
Disse que
saímos do bosque com neve e sangue, onde lá derrubamos os bárbaros, e seguimos
em direção às terras planas e quietas perto dos grandes rios, passando pelas pedras enormes e postas de pé por mãos esquecidas e estranhas, pedra em pé chamadas de portas dos gigantes pelos locais. Ali, naquela região, havia um
número grande de vilas de pescadores e fazendas, embora a maioria tivesse sido
saqueada ou abandonada em virtude dos eventos que antecederam e se seguiram à
destruição de Deltim e o morticínio autorado dentro de seus muros.
Tanto quanto pouco falo, ando muito. Ando em demasia. Perco-me em passos
esparsos e confino-me nas vastidões do mundo. Minha alma esparziu-se pelas
terras que pisei tal como as tranças de minhas esposas um dia esparziram-se em
meu peito, com igual carinho e afoiteza. Assim sendo, acompanhar-me o passo era
proeza para o homem comum, que é homem dado a não caminhar e contentar-se com
cadeiras e sobejos.
Mas o homem que eu encontrara no bosque caminhava comigo. Não me
acompanhava – de fato, pura e simplesmente, caminhava comigo. Seguíamos lado a
lado, coisa que não acontece em minhas andanças a menos que eu o queira. Eu
soube no meio da jornada pelas terras quietas que ele seria capaz de
ultrapassar meu passo quando quisesse.
Falamos de portento e maldição, de tristezas e esperança – sempre tão
pouca, o luxo dos homens. Foi quando atentei-o, desnecessariamente, para a
urgência do silêncio: estávamos próximos a uma vila ribeirinha que ardia em
chamas. Desnecessariamente, digo-o, porque o homem passava tanto tempo quanto
possível em silêncio. Suas palavras, quando ele as proferia, eram quase sempre
para a obstinação que mostrara em querer eliminar os bárbaros que haviam
descido das montanhas para roubar gente das terras planas.
Ouvimos gritos e choro, urros e risos. As criações gritavam e as
labaredas rugiam como bestas. Os escombros tomando forma pelo fogo abafaram
nossos passos furtivos para trás das pedras que nos ocultaram enquanto
observamos o encontro entre as gentes da montanha e da planície.
Uma fila longa de homens e mulheres atados uns aos outros por laços de
corda nos pescoços e tornozelos seguia em desespero e sangue a direção que
apontavam as lanças e braços de sujeitos altos e fortes. Eram os prisioneiros
dos bárbaros, seriam dali a pouco sacrificados como cordeiros de abate para as
divindades irascíveis daquele povo rude. Que pode o homem fazer pelo ódio e
pelo medo, e que pode o homem fazer contra o ódio e o medo?
A decisão do homem ao meu lado me espantou – ele fez menção de abandonar
nosso ponto de vantagem e atacar os bárbaros sem cerimônia. Não o detive senão a
muito a custo: ele estava tomado pela vontade inegável de derramar mais sangue,
e isso não me pareceu bom em um companheiro de viagem, mesmo que um tão fugaz.
Disse-lhe do caminho que teriam de fazer até voltar às montanhas, de como estariam
lentos, porém mais numerosos, e de como seria mais fácil emboscá-los nas
alturas. A cada palavra, contudo, amaldiçoava-me um pouco por tê-lo trazido até
ali, enquanto satisfazia-me conhecer a violência que nele se mostrava
abertamente e sem detenções.
Se andamos durante hora até chegar ali, pareceu-me tempo mais infindo
aquele que levei para dissuadi-lo do ataque imediato. Ao fim, minhas palavras o
dobraram. Ele aquiesceu. Ele sentou-se. Ele pensou. Fiz outro homem aquiescer,
parar e pensar. Que mais posso querer dessa vida senão esse tipo de ato? Agrado
os inúmeros futuros por vir ao permitir a reflexão necessária para que o melhor
dos destinos tome forma.
– Você está me manipulando para que salvemos o maior número possível de
miseráveis das mãos dessa gentalha. – disse-me ele enquanto eu mesmo já estava
absorto em reflexão.
– Miseráveis, sim, mas miseráveis inocentes. Não é de meu feitio ser cruel
como parece ser para ti. – e eu pus-me diante dele de modo a não ocultar minha decisão.
Ele não podia sentir medo ou infirmeza em mim.
– Guarde sua língua na bainha da boca. Vamos às montanhas então,
seguindo esses patifes. Quanto mais deles tombarem por minha mão, mais sereno
ficarei sabendo que os refugiados do norte não serão massacrados por eles.
Eu aproveitei e olhei mais uma vez no fundo dos olhos daquele homem,
cavando-lhe a mente com dons insuspeitos. Não havia uma alma ali, onde devia ficar
– por trás daquela máscara de carne e osso e sangue que todos vestimos.
Vendeu-a? Perdeu-a? Nunca a teve?
Dali a três horas, quando vimo-nos nas estradas estreitas e geladas das
montanhas, eu obtive minha resposta quanto à natureza da alma do homem que eu
já guiava pela região. Sua alma não era nem faltante, nem quebrada, nem
mascateada. Era negra, invisível aos meus olhos, que são acostumados a
perderem-se na escuridão. E o que consegui ver além encheu-me de apreensão, asco... e pena.
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