A charm invests a face
Imperfectly beheld.
The lady dare not lift her veil
For fear it be dispelled.
But peers beyond her mesh,
And wishes, and denies,
'Lest interview annul a want
That image satisfies.
***
Come slowly, Eden!
lips unused to thee,
Bashful, sip thy jasmines,
As the fainting bee,
Reaching late his flower,
Round her chamber hums,
Counts his nectars --enters,
And is lost in balms!
domingo, 30 de junho de 2013
sexta-feira, 28 de junho de 2013
As Rosas e o Punhal, Crônica I, parte IV
*
* 1 *
*
Preâmbulo
Meu coração não conhece a paz. Apenas lembra-se da inviolabilidade, não podendo reconhecer esta porque eu era criança ainda quando meu coração era inviolado. Quando passei a entender das coisas do mundo, crescida, já estava violado o meu coração. Colocaram nos meus cárdios músculos mais coisas do que se pode aceitar no resto da carne – colocaram pregos, colocaram dores, muitas, e colocaram grilhões, estacas de madeira, o gume frio de várias lâminas e balas com pólvora queimando. Ele bate furado desde tão cedo em minha longa vida que não posso nem imaginar nas minhas noites mais embriagadas o que é ter um coração inteiro.
Meu coração não conhece a paz. Apenas lembra-se da inviolabilidade, não podendo reconhecer esta porque eu era criança ainda quando meu coração era inviolado. Quando passei a entender das coisas do mundo, crescida, já estava violado o meu coração. Colocaram nos meus cárdios músculos mais coisas do que se pode aceitar no resto da carne – colocaram pregos, colocaram dores, muitas, e colocaram grilhões, estacas de madeira, o gume frio de várias lâminas e balas com pólvora queimando. Ele bate furado desde tão cedo em minha longa vida que não posso nem imaginar nas minhas noites mais embriagadas o que é ter um coração inteiro.
O pior,
contudo, não foi essa sucessão de violências assaltando-me a casa do meu
sangue. Não, nem posso dizer que tudo isso o enfraqueceu para o que sofro
agora, pois meu coração é incólume como pode ser incólume uma ruína do mundo
antigo. Digo que o pior foi a última coisa aqui, no meu seio, colocada. Eu sou lembrada
disso, desnecessariamente, quando debruço-me ousadamente sobre o parapeito do
castelo e vejo os homens lá embaixo acampados, esperando minha morte. Eu sou
lembrada disso, desnecessariamente, quando olho pela janela aberta das câmaras
aqui frias e vejo um exército ao meu redor.
Colocaram
ausência em meu coração, e essa é a pior das dores que um peito pode sofrer.
– Cartas da
Dama no Castelo de Quartalonge, décimo sétimo dia do cerco
V
|
i tantas coisas aterradoras, assombrosas, pavorosas
e asquerosas que é, devo dizer, muito difícil me aturdir ou causar incômodo.
Incomodam-me as moscas, incomodam-me os tolos, incomodam-me os imorais, mas não
me incomoda a cena terrível da ferida aberta, do sangue perdido, das vísceras espalhadas.
Mas o que Elão de Varraquêz, aquele estranho homem do norte, fizera aos
bárbaros, confesso, causou-me inquietação.
Tombar
pela espada ou pela lança, flechado até, pode ser um fim mais significativo do
que tombar pelos dentes do inimigo. Não que eu tenha me apiedado daquela
escória, pois não desejaria a eles fim diferente da morte, mas a forma como
acontecem os crimes e os atos são de uma esfera completamente apartada dos
crimes e dos atos em si, uma vez perpetrados. Analisa-se a carne tenra do
cordeiro de modo em tudo diferente do modo como se vê o animal sendo abatido
pelo cutelo impiedoso. Vê-se a pérola com apreço, encara-se a ostra gosmenta
com desprezo.
É da sorte
das pessoas refletir a morte, embora seja da de poucas de fato realizá-la. Por
isso as guerras sempre dão errado. Mas eu não sou um homem qualquer, e tão rápido
quanto me enojou a cena da degola daqueles bárbaros pelos dentes de meu sedento
companheiro de viagem, igualmente rápido ocultamos seus corpos por trás de
pedras altas e cobrimos seu sangue ruim com a neve que caía aos montes do céu
de inverno.
– Tu nem
mesmo usas do ferro para tirar a vida dos inimigos – disse-me Elão, e ele de
repente mostrou-se mais aberto á conversa. O sangue dos bárbaros aquecera-lhe a
garganta de um modo todo especial que lhe aveludou a voz, tornando-a amigável e
perigosa. Também ele parecia mais saudável, o viço tomava conta de sua face de
maneira muito sutil. Continuou falando-me – Eu vi como tiraste dos bárbaros o
sangue e como raspaste dos ossos deles a carne fazendo flutuar as pedras como
se fossem um turbilhão de facas.
– Eu
confio na minha mão que maneja a espada com igual afinco com que confio em meus
dons de feiticeiro. Acaso negas que uma muito bem completa a outra no ofício de
vencer?
–
Tratemo-nos por você.
E ele fez
uma reverência deveras cortês e refinada diante de minha pessoa. Eu retribui,
um pouco fria e duramente.
– Vamos,
lá vem aqueles cuja vida deve findar. – e dizendo isso eu fiz Elão recuar para
o alto de um rochedo de topo chato. Retirei-me para perto dos corpos dos
bárbaros tombados, ficando oculto por trás das pedras.
Por sortes
Elão tivera a sede de sangue momentaneamente aplacada. Vimos róis de bárbaros
fortes passando diante de nossos olhos, desfilando com seus espólios – traziam as
quinquilharias, ferramentas e armas roubadas das terras planas, e traziam filas
de prisioneiros como se trouxessem arrastados peixes na vara ou bestas caçadas.
Elão
certamente pensou como eu e resolveu não atacar. Era suicídio fazê-lo. Uma
centena e meia, quase, de inimigos que com as forças dos braços e mãos nuas
poderiam quebrar um osso.
Mas toda
aquela turba movia-se a velocidades inconstantes, de modo que mais um grupo de
bárbaros seguiu a centena e meia que passou, sendo esta o grande grupo. Era um
grupo de saqueadores atrasado, e vinha com passo apertado, esperando alcançar
os demais. Encontraram, no caminho, dois estranhos barrando-lhes a passagem: um
estranho tinha vestes castanhas e colete de couro, capuz sobre a cabeça
ocultando o rosto com sombras, e o sabre estava na mão. O outro era eu, as roupas
de couro negro contrastando com a neve.
Os
bárbaros disseram algo em sua língua. Falaram de morte e surpresa, de mais
morte e diversão. Algo sobre audácia. Nunca me preocupei em aprender a língua
de uma estirpe que eu sabia que logo estaria extinta e nada deixaria de
impressionante como legado para o mundo.
Carregaram, largando prisioneiros e saque. Vieram com machados e clavas,
as armas de preferência daquela gente. Elão foi ao seu encontro enquanto meu
poder se empilhava, crescendo, e minha visão focava-se em meus inimigos de tal
modo que só minha mente conseguia perceber o resto do mundo.
E no
espaço de tempo em que Elão decepou os braços dos bárbaros com uma força
profana, fazendo seu aço afiado partir ossos com facilidade estranha, eu estava
atento às torrentes inconstantes da Magia, a Arte falava-me por musas de fogo e
vento que me agitavam as ideias e acariciavam-me as mãos com seus seios de
chama e sutis ventres de vendaval.
Ordenei
que a escória queimasse. O sangue nas veias daquela gente ardeu como água do caldeirão,
e ferveu suas veias, ferveu sua carne, esquentou seus ossos melhor que qualquer
casaco. A pele descolava-se do músculo de maneira a revelar a humanidade frágil
por baixo dela. Quantos assim tombaram somavam dezena.
Sei que
Elão conjurou-me um olhar de lamentação pelo sangue perdido. Ele precisava
daquilo. Então tirei Altala da bainha. Seu ferro negro tinha tanta sede quanto
meu companheiro de jornada, e as runas marcadas em sua folha faiscaram o
vermelho do momento da sua forjadura.
O resto
daqueles ímpios caiu assim por nossa perícia. Não foi por menos que deixamos
seus insultos, que proferiam aos berros salivantes a todo momento – cortamos línguas
e cortamos braços, cortamos pescoços e perfuramos corações. A pilha de
agonizantes seria de melhor valia para ver a lonjura do que o rochedo de onde
Elão descera para pôr-se ao meu lado na estrada diante dos bárbaros que antes
acreditavam ser possível seu regresso para casa.
Dispensei
um olhar de soltura aos prisioneiros dos bárbaros, e uma vez sem suas amarras
fugiram pelo mesmo caminho que antes o levava ao abatedouro.
– Os
patifes são muitos. – disse-me Elão, olhando montanha acima.
– Sim, as
tribos todas estão reunidas para o solstício. É inverno nas montanhas, mas sabem
ser verão no resto do mundo.
– Sei que
há um plano em sua mente. Sei que envolve morte e esforço. – e Elão abaixou-se
para apanhar um dos bárbaros que agonizava sofregamente – Beberei à nossa
vitória, e então seguiremos montanha acima.
Dei as
costas para a cena sugerida pelos barulhos de pele se rasgando e gritos de
horror sofrido. Caminhei montanha acima, sabendo que logo Elão poderia me
alcançar.
Se era uma
hecatombe que os bárbaros queriam ter, eles a teriam. Aliás, desde minha subida
às montanhas, ume hecatombe continuariam tendo.
Eu só não
queria ter encontrado o inferno no alto das montanhas...
segunda-feira, 24 de junho de 2013
Campfire Stories
Tell me again of that lonely soul whose best friends were its own room's walls,
Then tell me of that man whose selfishness made of him a hoarder of himself.
Tell me, then, of that lady whose brow was so dark and cold stars from afar nested on it.
Tell me o tell me of those children whose joy was so strong their agony was laughter.
Tell me again, then, of that troubled kid whose stranged ways lead her to oblivion!
Tell me o tell me of that lad whose shadow was so nigh he could feel touched and gasping.
O tell me, tell me again of those people whose mirth was so contagious their pox was fun.
Tell me, tell me tell me of that creature whose form was so free it could not be seen.
Tell me, then, of those people whose poison was so keen their voice was hissing,
And tell me of those two whose hands were so safe their embrace was shackles.
Tell me, my dear, of those men and women so far and brave their history became true.
Tell me, o tell me my dear, of songs long heard and lost whose echo clings to beauty.
Then tell me, my dear, of those troubles whose troubles were troublesome peace,
And tell me of that long-felt peace whose peace was a trouble of peaceful trouble.
And then, my dear, tell me of something new whose face I've known for sure.
And then, my dear, sing me an old rhyme whose sound is all unknown to me.
Then perhaps finally you'll use some listening.
Then perhaps finally we'll know some truth.
Tell me again of reason.
Tell me again of it all.
Then tell me of that man whose selfishness made of him a hoarder of himself.
Tell me, then, of that lady whose brow was so dark and cold stars from afar nested on it.
Tell me o tell me of those children whose joy was so strong their agony was laughter.
Tell me again, then, of that troubled kid whose stranged ways lead her to oblivion!
Tell me o tell me of that lad whose shadow was so nigh he could feel touched and gasping.
O tell me, tell me again of those people whose mirth was so contagious their pox was fun.
Tell me, tell me tell me of that creature whose form was so free it could not be seen.
Tell me, then, of those people whose poison was so keen their voice was hissing,
And tell me of those two whose hands were so safe their embrace was shackles.
Tell me, my dear, of those men and women so far and brave their history became true.
Tell me, o tell me my dear, of songs long heard and lost whose echo clings to beauty.
Then tell me, my dear, of those troubles whose troubles were troublesome peace,
And tell me of that long-felt peace whose peace was a trouble of peaceful trouble.
And then, my dear, tell me of something new whose face I've known for sure.
And then, my dear, sing me an old rhyme whose sound is all unknown to me.
Then perhaps finally you'll use some listening.
Then perhaps finally we'll know some truth.
Tell me again of reason.
Tell me again of it all.
domingo, 23 de junho de 2013
sexta-feira, 14 de junho de 2013
"There is only one sun", de Marina Tsvetaeva
There is only one sun - but it travels the world everyday.
The sun is all mine and I won't ever give it away!
I will share not an hour of warmth, not a beam of its light!
I'll let cities perish in the constant, unchangeable night!
I will hold it up with my hands, till it ceases to turn!
I don't care if my hands, lips and heart must get burned!
Let it vanish in darkness and rusghint, I'll follow its way!
My darling, my sunlight! I won't ever give you away!
-- Marina Tsvetaeva, translated by Andrey Kneller
The sun is all mine and I won't ever give it away!
I will share not an hour of warmth, not a beam of its light!
I'll let cities perish in the constant, unchangeable night!
I will hold it up with my hands, till it ceases to turn!
I don't care if my hands, lips and heart must get burned!
Let it vanish in darkness and rusghint, I'll follow its way!
My darling, my sunlight! I won't ever give you away!
-- Marina Tsvetaeva, translated by Andrey Kneller
As Rosas e o Punhal, I, parte III
*
* 1 *
*
Preâmbulo
A filha de minha irmã já era velha quando eu nasci. Como pode, deviam se perguntar os meus vizinhos, como pode um casal de velhos cuidar de uma criança? Como pode uma velha de útero empoeirado dar a luz e como pode ela amamentar com um seio murcho que já devia ter secado? E o velho, como pode tê-la impregnado quando mal aguenta levantar uma enxada ou forcado? Mas eu fui bem cuidado, sim, e meus pais velhos me deram o que restava de amor neles. Morreram, logicamente, bem antes do que o filho pode esperar ou aguentar ver os pais morrerem, mas não fiquei mal no mundo. Minha infância fora singular, e minha juventude era, para mim, então, um espetáculo de possibilidades que desfilavam diante de meus olhos, as mais finas e caras cortesãs que, dispensadas pelos nobres falidos, ofertam seios e risos a mim, diante do rei.
A filha de minha irmã já era velha quando eu nasci. Como pode, deviam se perguntar os meus vizinhos, como pode um casal de velhos cuidar de uma criança? Como pode uma velha de útero empoeirado dar a luz e como pode ela amamentar com um seio murcho que já devia ter secado? E o velho, como pode tê-la impregnado quando mal aguenta levantar uma enxada ou forcado? Mas eu fui bem cuidado, sim, e meus pais velhos me deram o que restava de amor neles. Morreram, logicamente, bem antes do que o filho pode esperar ou aguentar ver os pais morrerem, mas não fiquei mal no mundo. Minha infância fora singular, e minha juventude era, para mim, então, um espetáculo de possibilidades que desfilavam diante de meus olhos, as mais finas e caras cortesãs que, dispensadas pelos nobres falidos, ofertam seios e risos a mim, diante do rei.
- Elão de
Varraquêz, Memórias
M
|
atar muitos homens é fácil. Matar um homem é fácil.
Matar é fácil. Basta fazer a ponta da lança aparecer do outro lado do peito do
oponente e o serviço está, diga-se de passagem, feito. Não que eu seja dado à
matança, mas Varyn é conhecido também pela mão inescapável. Jamais tive de
poupar um inimigo miserável em tempo de guerra, nem tive de deter minhas armas
diante de um oponente infame. Conheço a misericórdia, contudo, aprendi-a muitas
vezes em minha vida embora tão pouco eu tenha sentido dela. Sentir e sentido,
inclusive, são palavras muito mais malignas do que a ideia inglória e o
pensamento mórbido podem supor. Há tempos e mundos em que a piedade é o pior
dos castigos ou o primeiro passo para a derrocada maior, quando a morte limpa é
a única portadora do alívio verdadeiro.
Mas não
era o que acontecia em tal ocasião. Matar os bárbaros que aprisionavam os
aldeões de Auglandoc tornara-se, em algum tempo de andança silenciosa, uma
questão maior do que minha mente podia supor. Eu sabia que estava preparando-me
não para um banho de sangue contra os rudes e vis habitantes das montanhas, mas
para um passo além do limiar que separava minha vida antes da surpresa de minha
vida depois de aceito o desafio – os primeiros passos, eu já havia os dado, e eu
estava aceitando aquele desafio cujo vulto tempestuoso ainda era apenas uma
imagem fugaz em minha mente.
Nada
comparada, esta imagem fugaz, com a bem distinta imagem de dezenas de homens
armados, da estirpe de maior altura, atando com cordas seus prisioneiros sem distingui-los
das ovelhas e cabras que roubavam também. Estavam juntando os espólios de outra
vila queimada. Levaram somente os plebeus e trabalhadores braçais que ali se
abrigavam – o nobre, dono daquela vila, este eles queimaram vivo e amarram-lhe
o corpo em uma estaca que ergueram no meio do terreno incendiado.
Quando os
bárbaros finalmente aprontaram sua turba para partir em direção a um novo
destino, eu olhei para o homem ao meu lado. Ele os observava com os olhos de um
corvo, ou de um lobo que espreita. Ele queria sentir em sua própria pele o
calor do sangue dos bárbaros como se isso fosse aplacar aquele frio imenso que
lhe assolava a alma de tal modo que eu podia senti-lo enrijecendo-me o senso de
tranquilidade. Fazia inverno naquele homem, gelo e frio silencioso estavam
soterrando o vazio onde devia ficar sua alma exposta.
– Sabe que
não sou mais homem do que tu, que também não é dos mais normais. – Disse-me
ele, para minha surpresa. Mas minha face é quieta e sendo assim em nada imita
minha mente ou meu coração, que foram pegos despreparados por tais palavras.
– Tu vês
em minha mente algo que, de fato, não fiz questão de esconder. Como podes
ler-me os pensamentos com essa facilidade?
– Diante
do perigo, o homem transcende a humanidade. Temos nós, os dois, pouca
humanidade para transcender, pois grande parte do que somos não é humano que
chegue para ser humanidade.
As palavras
dele teriam confundido a muitos, mesmo a meus pupilos, tão bem treinados, mesmo
a tantos homens e mulheres ilustres e eruditos a quem conheci em anos de andança.
Para entender aquelas palavras era necessária uma distinção das coisas e das
pessoas que não se tem pela leitura, nem se ganha pela audição, tampouco se
adquire pela barganha. Eu sabia bem do que falava ele porque muito eu sofrera,
porque muito eu andara, porque muito eu perdera. As revoluções da roda do mundo
atropelaram várias vezes meu coração, soterrando-me as dores nos sulcos que
abria para continuar as evoluções do tempo.
– Eu sou
um mudador, é verdade. Mudo coisas e pessoas, e aquilo que vi e fiz me difere
tanto dos outros homens que entre eles sinto-me um intruso, um estranho, um
passante. Por que tu sentes isso, homem do norte, e porque não vejo ao certo o
que há em tua alma, que nem parece haver?
– Tu és Varyn.
Que outro sábio da Convocação dos Vários Caminhos andaria assim, sozinho e sem
garbo, trajado como viajante comum, sem medo da estrada? Tua fama é grande, ó
mago, e vai até onde o vento norte não conhece paredes que lhe barrem a
corrida, nas terras selvagens onde o jugo do inverno parece infindo e onde é
crime acender fogueiras. Sabes tu quem eu sou?
– Tudo o
que entendo de heráldica e de história não me permite reconhecer-te. O que queres
em troca de me dar teu nome?
– A ajuda em
minha mais nova empresa: a de ceifar a vida de todos esses bárbaros que agora vão.
Olha-os atravessando a ponte que logo vão derrubar.
Eu
considerei a oferta do homem com o misto da intriga e da indiferença. Ele não era
um homem comum, mas não me despertava tanta curiosidade como, por um momento,
eu esperava que o tivesse feito. Derramar sangue de bárbaros não era minha missão
ali, e já não era de minha vontade inquieta tudo aquilo de caçar e libertar
pessoas inocentes das mãos rudes da violência.
Mas em
minha mente ecoavam sussurros de futuro e gritavam para meus sentidos mais
quietos as vozes do portento e do augúrio. Varyn, o agoureiro. É assim que me
chamam aqueles com mais estudo e mais coragem, com mais visão e impulsividade –
as virtudes que mais estimo. O futuro me falava como uma amante sussurrando uma
jura dúbia de amor ao pé do ouvido. Se eu seguisse aquele homem de alma marcada
eu estaria pondo-me perto de um destino de tão grande tribulação e
possibilidade que meus feitos ecoariam durante anos a fio sobre terras mais
vastas do que a vontade dos homens de conhecê-las sempre fora.
Conhecendo-me como só eu conheço, vi-me diante de uma possibilidade que
eu não podia deixar passar.
– Eles vão
agora para o leste. Buscarão as demais aldeias de pescadores no pântano, nos
poços de argila. Voltarão para suas montanhas em pouco tempo, pois executarão
seus rituais profanos antes mesmo do ocaso deste sol. Eles celebrarão o
solstício, exaltando seus deuses do sol e do sangue com sacrifícios desde a
primeira hora do novo dia até o ápice do sol de verão. Vamos esperá-los nas
montanhas, por onde terão de passar aos poucos por causa das passagens
estreitas.
– Para as
montanhas, então – dizia-me ele, de novo. Os bárbaros sanguinários foram para o
sul e depois para o leste enquanto nós fomos para o norte e depois para o
oeste. Nosso reencontro, contudo, não tardaria, e em nada seria agradável.
Matar é
fácil. Se um dia duvidei disso como penso ter duvidado, naquele tempo e neste
eu padecia de certezas. Não havia espaço para a dúvida entre minha mão e o
punho da espada ou a haste da lança, nem havia espaço para a dúvida no
intervalo entre o gume e o pescoço ou o peito de meu inimigo. Altala, a lâmina
que matara tantos reis, era a espada que em meu cinto lembrava aos poderosos –
quando eu punha-me diante deles em audiências e missões como porta-voz – que mesmo
a vida dos soberanos é frágil e que mesmo seu sangue vaza fácil.
O que
estava me causando apreensão e estranhamento enquanto estávamos no frio das
montanhas, esperando os bárbaros atravessarem um desfiladeiro ladeado por altas
escarpas, não era a ideia de ter de combater uma força de bárbaros tão grande
como aquela que viria. O que me causava estranha apreensão era a sanha daquele
homem estranho em matá-los tão avidamente; e o que me assolava a calma habitual
com estranhamento apreensivo era a força que ele estava fazendo, cada vez mais
visível porque crescente, de não desembestar com raiva para cima de mim. Ele
queria matar, e esse desejo o sufocava, enchia-o de desespero como se alguém o
impedisse de respirar ou o privasse de água e alimento quando tinha sede e
fome.
Ouvi
passos. Ele os ouvira antes. Senti o cheiro de suor seco e sangue cru. Ele os
sentira antes. Os bárbaros vinham pela passagem, seus cheiros e ruídos
atormentavam meus sentidos e a paisagem.
Doze. Era
um grupo pequeno, apenas, precediam a vasta hoste que descera das montanhas
porque, ao certo, tinham mais pressa em voltar e menos desejo em puxar os
prisioneiros. Não vinham apressados pela falta de saque, contudo, pois
atrasavam-lhes quilos de tesouros roubados nas vilas.
Apertei
uma de minhas mãos no cabo da espada. Estávamos em um desnível que nos ocultava
perfeitamente de um grupo tão pequeno e despreocupado. Eles estavam confiantes,
jamais esperariam um ataque em suas próprias terras. Ainda mais de modo tão selvagem
como estava por vir.
Pois antes
mesmo que uma estratégia se formasse em minha mente, antes mesmo que eu
preparasse os músculos e tendões para a batalha, veio aos olhos de minha mente
uma visão escurecida pela fatalidade – a morte sorria sobre aquele lugar, ela
esticou um braço preto e longo em direção aos presentes e fez seu gesto
pavoroso de quem chama para perto de si um número qualquer de futuros
cadáveres.
Meu
companheiro de viagem estatelava-se sobre os bárbaros com a espada em punho.
Ele tinha no rosto a cólera de uma besta, a frieza de um assassino e nada de
seu bom senso, a afoiteza do louco e a sede de um condenado. Logo ele deixou a
espada enterrada na carne dura do bárbaro mais alto, os outros cinco que ele
deixara de pé ele estava matando com os dentes – arrancava-lhes a carne da
garganta com mordida tão pavorosa que não penso descrever nem em voz.
Tive de
fazer muito pouco, mais o tive, para que pudesse saber o nome daquele homem
desgraçado. Eu manipulei os nomes e as vontades da pedra e do fogo, e fiz
lascas do granito das montanhas girarem tão rápido pelo ar que atravessaram os
bárbaros que ainda restavam como se fossem flechas contra o papel. As lascas
afiadas flutuaram acima do chão e fizeram dos homens que restavam uma nuvem
indistinta de sangue e pedaços que espalharam-se pela neve assim que o furacão
de pedra e vontade mais forte desfez-se quando cessei minha encantação.
O meu
companheiro novo de viagem estava me observando. O capuz encobrira metade de
seu rosto, e pela sombra deste capuz escapava um brilho mortiço e diabólico de
um dos olhos, que estava à mostra. Sua boca, seu queixo, seu pescoço, lavados
na água vermelha que correra nos canais de seus inimigos mortos, armavam-se em
um sorriso maníaco e apavorante por causa do modo como seus dentes tingidos de
vermelho apareciam enquanto falou-me:
– Sou Elão
de Varraquêz. Vim do norte e para o norte logo pretendo voltar. Não agora, há
mais bárbaros para matar. Obrigado pela ajuda.
Eu dera o
passo derradeiro em direção a um novo capítulo no livro de minha vida. Aquele
passo do qual não há escapatória – ou se dá esse passo, ou se retrocede por
muito tempo. Eu estava, então, diante de uma nova jornada.
– Limpe
sua boca ao falar comigo – Disse-lhe eu, sentindo menos respeito por ele –
Procure sua espada e prepare-se. – eu escutava, sabendo assim que melhor ainda
ele escutava, as centenas de bárbaros vindo pelo desfiladeiro – Nossos inimigos
vem vindo com os prisioneiros. Hora de encarar o riso e o aceno da morte...
vampiro.
domingo, 9 de junho de 2013
sábado, 8 de junho de 2013
As Rosas e o Punhal - I, parte II
*
* 1 *
*
Preâmbulo
As ruínas estão vazias. Não há mais nada de novo nos mapas do Sul. Os caçadores de tesouro roubam, ou morreram de fome. Eu possuo relíquias, algumas, e todas me são muito estimadas. Guardo-as com o zelo com o qual se guarda em casa os filhos das mazelas da rua e guardo-as com o ciúme com o qual se tranca em pesadas arcas tesouros que me incitam toda a avidez.
As ruínas estão vazias. Não há mais nada de novo nos mapas do Sul. Os caçadores de tesouro roubam, ou morreram de fome. Eu possuo relíquias, algumas, e todas me são muito estimadas. Guardo-as com o zelo com o qual se guarda em casa os filhos das mazelas da rua e guardo-as com o ciúme com o qual se tranca em pesadas arcas tesouros que me incitam toda a avidez.
Se há
tesouros maiores no mundo, não quero saber. Basta apenas qualquer coisa que eu
possa ter entre as mãos, sentir o peso, esconder, trancar. Todo o resto está
condenado ao silêncio pavoroso e patético que sobrevém a um instante de caos e
delírio. A relíquia não – ela nasceu para o silêncio e, entre as idas e vindas
das guerras e da história, em silêncio irredutível ela se mantém.
- Varyn
Q
|
uem diria
que, com o tempo, o silêncio se mostraria teimoso. Eu não sou um homem de
palavras, delas não sou companheiro bom. Sou comedido até em meu comedimento,
de modo que evito dar sopro àquilo que, se no olvido do silêncio, não faria
diferença ou não conheceria a falta que faz. Desse modo, pouco daquela jornada
desde o bosque com neve e sangue até as soleiras das portas dos gigantes pode
ser narrado por mim, pois houve quase nenhuma troca de palavras entre aquele
homem estranho com quem me deparei em minha andança por Auglandoc.
Disse que
saímos do bosque com neve e sangue, onde lá derrubamos os bárbaros, e seguimos
em direção às terras planas e quietas perto dos grandes rios, passando pelas pedras enormes e postas de pé por mãos esquecidas e estranhas, pedra em pé chamadas de portas dos gigantes pelos locais. Ali, naquela região, havia um
número grande de vilas de pescadores e fazendas, embora a maioria tivesse sido
saqueada ou abandonada em virtude dos eventos que antecederam e se seguiram à
destruição de Deltim e o morticínio autorado dentro de seus muros.
Tanto quanto pouco falo, ando muito. Ando em demasia. Perco-me em passos
esparsos e confino-me nas vastidões do mundo. Minha alma esparziu-se pelas
terras que pisei tal como as tranças de minhas esposas um dia esparziram-se em
meu peito, com igual carinho e afoiteza. Assim sendo, acompanhar-me o passo era
proeza para o homem comum, que é homem dado a não caminhar e contentar-se com
cadeiras e sobejos.
Mas o homem que eu encontrara no bosque caminhava comigo. Não me
acompanhava – de fato, pura e simplesmente, caminhava comigo. Seguíamos lado a
lado, coisa que não acontece em minhas andanças a menos que eu o queira. Eu
soube no meio da jornada pelas terras quietas que ele seria capaz de
ultrapassar meu passo quando quisesse.
Falamos de portento e maldição, de tristezas e esperança – sempre tão
pouca, o luxo dos homens. Foi quando atentei-o, desnecessariamente, para a
urgência do silêncio: estávamos próximos a uma vila ribeirinha que ardia em
chamas. Desnecessariamente, digo-o, porque o homem passava tanto tempo quanto
possível em silêncio. Suas palavras, quando ele as proferia, eram quase sempre
para a obstinação que mostrara em querer eliminar os bárbaros que haviam
descido das montanhas para roubar gente das terras planas.
Ouvimos gritos e choro, urros e risos. As criações gritavam e as
labaredas rugiam como bestas. Os escombros tomando forma pelo fogo abafaram
nossos passos furtivos para trás das pedras que nos ocultaram enquanto
observamos o encontro entre as gentes da montanha e da planície.
Uma fila longa de homens e mulheres atados uns aos outros por laços de
corda nos pescoços e tornozelos seguia em desespero e sangue a direção que
apontavam as lanças e braços de sujeitos altos e fortes. Eram os prisioneiros
dos bárbaros, seriam dali a pouco sacrificados como cordeiros de abate para as
divindades irascíveis daquele povo rude. Que pode o homem fazer pelo ódio e
pelo medo, e que pode o homem fazer contra o ódio e o medo?
A decisão do homem ao meu lado me espantou – ele fez menção de abandonar
nosso ponto de vantagem e atacar os bárbaros sem cerimônia. Não o detive senão a
muito a custo: ele estava tomado pela vontade inegável de derramar mais sangue,
e isso não me pareceu bom em um companheiro de viagem, mesmo que um tão fugaz.
Disse-lhe do caminho que teriam de fazer até voltar às montanhas, de como estariam
lentos, porém mais numerosos, e de como seria mais fácil emboscá-los nas
alturas. A cada palavra, contudo, amaldiçoava-me um pouco por tê-lo trazido até
ali, enquanto satisfazia-me conhecer a violência que nele se mostrava
abertamente e sem detenções.
Se andamos durante hora até chegar ali, pareceu-me tempo mais infindo
aquele que levei para dissuadi-lo do ataque imediato. Ao fim, minhas palavras o
dobraram. Ele aquiesceu. Ele sentou-se. Ele pensou. Fiz outro homem aquiescer,
parar e pensar. Que mais posso querer dessa vida senão esse tipo de ato? Agrado
os inúmeros futuros por vir ao permitir a reflexão necessária para que o melhor
dos destinos tome forma.
– Você está me manipulando para que salvemos o maior número possível de
miseráveis das mãos dessa gentalha. – disse-me ele enquanto eu mesmo já estava
absorto em reflexão.
– Miseráveis, sim, mas miseráveis inocentes. Não é de meu feitio ser cruel
como parece ser para ti. – e eu pus-me diante dele de modo a não ocultar minha decisão.
Ele não podia sentir medo ou infirmeza em mim.
– Guarde sua língua na bainha da boca. Vamos às montanhas então,
seguindo esses patifes. Quanto mais deles tombarem por minha mão, mais sereno
ficarei sabendo que os refugiados do norte não serão massacrados por eles.
Eu aproveitei e olhei mais uma vez no fundo dos olhos daquele homem,
cavando-lhe a mente com dons insuspeitos. Não havia uma alma ali, onde devia ficar
– por trás daquela máscara de carne e osso e sangue que todos vestimos.
Vendeu-a? Perdeu-a? Nunca a teve?
Dali a três horas, quando vimo-nos nas estradas estreitas e geladas das
montanhas, eu obtive minha resposta quanto à natureza da alma do homem que eu
já guiava pela região. Sua alma não era nem faltante, nem quebrada, nem
mascateada. Era negra, invisível aos meus olhos, que são acostumados a
perderem-se na escuridão. E o que consegui ver além encheu-me de apreensão, asco... e pena.
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