Eram quatro dividindo aquele
apartamento. Dois quartos, dois casais. Luís era torneiro mecânico. Um homem
muito simples, muito bom. Daquelas pessoas cuja humildade é tanta que se
esconde de relatos quaisquer, e em uma página caberia tudo da sua vida – pois hoje
em dia é comum repetirem o escritor voador que disse que o essencial é
invisível aos olhos.
Já Ana era vendedora em um loja
dessas de shopping, daquelas em que o olho esquerdo de quem espera dentro da
loja vazia implora que você entre para comprar algo que garanta um natal melhor
para o vendedor; enquanto o olho direito suplica sem brilho que você não pise
ali dentro.
Ana e Luís haviam se “ajuntado”
um pouco depois que Débora e Marcos. Débora trabalhava em uma livraria do
centro da cidade, mas mesmo assim tinha tempo para viver. Gostava tanto de
sapos e rãs que era uma voluntária sem crachá no zoológico da cidade. Ela suspeitava
fortemente que entendia mais de anuros do que o veterinário cansado e já sem
peles para trocar que trabalhava no zoológico entre um turno e uma bebedeira.
Por falar em bebidas, Marcos era
professor universitário em começo de carreira. Ele ensinava literatura para uma
massa pequena de gente que já havia desenvolvido um bloqueio mental para textos
com mais de 200 caracteres. Ele gostava mesmo era de Débora, mas o whisky era
um forte competidor pelos chamegos dele (levando em consideração que ele
deixara o ensino básico e fizera o mestrado para poder comprar presentes
melhores para Débora e whiskies menos baratos para ele).
Decidiram alugar o apartamento
juntos por um misto de comodidade masoquista (já que eram para ser dois quartos
para duas pessoas, não quatro) e camaradagem. Ana e Débora eram velhas
conhecidas, ao passo que Luís e Marcos, conhecidos a bem menos tempo,
compartilhavam uma amizade bem mais forte.
Amizade forte porque quase não conversavam,
e não precisavam conversar com frequência para saberem que se entendiam bem e
que quase não discordavam em nada. Ana pensava consigo, sobretudo quando via os
dois bebendo em silêncio e assistindo algum jogo na televisão, que o casamento
daqueles dois caras era bem mais tranquilo que o dela com Luís, ou que o que
Débora tinha com Marcos.
Mudando de assunto, de casamento
para falar de sexo, havia algumas regras sobre isso e de divisões de tarefas
para os habitantes do apartamento 301 do bloco B. Nada de barulheira depois da
meia-noite se algum dos viventes tivesse que levantar cedo no dia seguinte.
Nada de trazer gente de fora para experiências bizarras. Nada de velas que
arriscassem tacar fogo no ambiente (todos os extintores do prédio estavam
vencidos há tempos). Quando, inevitavelmente, um casal estava transando mais
loucamente, o outro casal limitava-se a rir em silêncio, abraçar-se de
conchinha e, às vezes, aproveitar para fazer o próprio nheco-nheco com aquela
espécie de podcast pornográfico de fundo.
E assim viviam em uma sintonia
que os corpos atingem quando dividem a mesma pouca vontade de lavar pilhas de
louça suja, quando mulheres compartilham a gaveta de coisas para os cílios e
quando homens que não cresceram juntos andavam só de bermuda um na frente do
outro. Tudo igual e sempre diferente até o dia em que Ana não amava mais Luís e
este passou a dormir na sala.
Em uma bela manhã de feriado
nublado de domingo, Marcos foi até a cozinha-sala para preparar uma dose dupla
e individual de o que quer que tivesse alto teor alcoólico. Havia coisas dentro
dele que ele precisava usar o álcool para matar. Débora tinha que bater ponto
no zoológico – novas espécies de rãs da Mata Atlântica, daquelas que vivem
entrando em extinção, haviam sido resgatadas do tráfico ilegal e levadas para
lá.
Na cozinha ele encontrou Ana
sentada à mesa redonda de fórmica branca corroída. Ela olhava com uma mistura
muito grande de emoções a panela com resquícios frios de um miojo emergencial
de ontem e um garfo esquecido por ali. A mistura de emoções era grande demais
para saber o que tinha de sentimento ali, assim como é difícil saber dizer que
cores deram naquela água escura que as crianças deixam no copo quando lavam os
pincéis ao longo da aula.
Ele não podia julgá-la, disso ele
sabia. Ele mesmo tinha um mélange
considerável de pesos na cuca – duas noites anteriores, todos os donos de
cadeiras do departamento de Letras haviam enviado para o anuário os artigos que
eles avaliaram como os melhores – e todos eram de suas próprias autorias.
Talvez uma dose dupla fosse
pouco, mas era um começo. Ao ver Ana padecendo daquele silêncio estranho –
silêncio feminino como aquele nunca é boa coisa – as prioridades mudaram.
– Bom dia. – o silêncio dela estava prolongado. Não por indisposição e maldade,
ela provavelmente nem percebera ele abrindo a geladeira. Ela ergueu os olhos,
parecia um bêbado desconsolado sem forças para pensar sobre aquele copo vazio
em cima do balcão.
Débora não falaria daquilo com Ana. Daquilo: a situação de Ana e Luís.
Daquilo: um desquite triste e bizarro. Débora era serena demais, tanto que nada
parecia menos transitório a ponto de abalar sua serenidade. Anuros indefesos
sim mexiam com os nervos dela, mas gente crescida não. Já Luís estava em um
estado de miserabilidade corrosiva e não queria falar com ninguém. Marcos
respeitava isso, sobretudo porque era mais cômodo para o momento de ânimos exaltados.
– Você aceita? – Disse ele, mostrando as garrafas – É bem forte. Acho
que você não precisa dizer que não aceita por precisa. – ela continuou com cara
de poucas vendas no final do ano.
Mais uma vez sobrava para ele servir de diálogo naquele muquifo amado
pelos quatro. Eles haviam feito daquele teto bolorento um lar, e um lar não podia
ser desfeito em silêncio. Débora era uma budista que não sabida de Buda. Ana
estava acostumada a escutar as pessoas sem realmente se importar com o que elas
queriam dizer. Luís trabalhava com máquinas e com mais gente que trabalhava com
mais máquinas. Eles três cozinhavam muito bem, e sabiam fazer um alqueire de
coisas melhor do que ele, mas em termos de conversar e ouvir eles tinham ainda
muito o que aprender. Talvez seja essa a maldição dos professores – ser bom
somente e tão somente naquilo que ensina os outros.
Invocando o Bentinho e Capitu que todos temos dentro de nós, com aquele
um por cento de Escobar ou Iago à espreita, Marcos encheu dois copos com a
bebida batida com leite condensado e gelo no liquidificador.
– Ó, molha o bico – e jogou o copo para Ana, que o apanhou sem
entusiasmo.
Ela assim o fez, mas sem tirar os olhos do tampo da mesa. Ela tinha
olhos verdes, e Débora, por algum motivo cabalístico, dizia que aquilo era
ótimo para disfarçar choros recentes.
– Ana, você provavelmente não quer falar sobre aquilo, mas se quiser,
saiba que sou todo ouvidos. E saiba também que eu acho que você deveria sim
falar sobre aquilo. Não querer falar sobre aquilo, na verdade, deve ser um
sinal de que você precisa falar sobre aquilo. Vocês dois criaram isso, o que
vão fazer para resolverem isso?
Ana fechou um pouco a cara desconsolada. Ela não era muito sensível na
lida com os outros, até um pouco geniosa demais para o gosto de Débora, que a
tudo perdoava, e de Marcos, que a tudo relevava.
– Obrigada pela bebida. – e ela se levantou rápido, indo em direção aos
quartos.
– Ana, você pode fugir de uma
conversa quantas vezes quiser, mas não pode fugir de um problema. Eu vou ficar
aqui na cozinha por um tempo. Seus problemas vão ficar com você e vão com você
aonde você for.
A-há. Ela parou no umbral mais próximo. Tomou um ou dois goles e virou
para a mesa. Encostou-se na parede. Ela nunca se encostava na parede.
Marcos continuou concentrado no próprio copo. Ele tinha que parecer
menos imaturo que os demais se era para aquele diálogo ter alguma chance de
começar. Deu certo de novo, pois ela foi até a mesa.
Sentou-se muito vagarosamente, como a paciente que enfim resolve vencer
a vergonha e o medo e vir falar de problemas íntimos para o médico para o qual
ela sabe que não pode mentir.
– Como começo a falar?
– Ah, sei lá. Faz um resumo aí da desgraceira toda. – um gole.
– Mas como? Como começo?
– Começa falando porque você não ama mais ele, ou desde quando, ou
porque você acha que não ama mais ele. – um gole grande.
– Bem... Acho que vou tentar.
– Ah – um gole grande interrompido – E eu não julgo, então pode falar
que eu escuto.
Um pouco mais tarde, algum álcool depois, ela começou a falar. A mistura
soltava mesmo a língua.
– Às vezes, quando eu tento lembrar, parece que eu não gosto mais do
Luís faz tempo. Que só agora chegou num nível que não dá mais. Às vezes parece
que um dia eu acordei, olhei para o lado e não gostava mais dele.
Enquanto Marcos bebia ela ia falando. Falou de como ela gostava tanto
dele no início (e por falar em início ela demonstrou já ter uma ideia de fim) e
como ele encantava ela... Mas como que isso foi morrendo, esvaecendo, virando
pó, a ponto dela não ver mais aquele homem trabalhador de sorriso lindo que ela
disse ter conhecido num bailão de sociedade uma vez, mas apenas um torneio
mecânico que chegava suado do trabalhado querendo abraçá-la mais do que ela
queria. Ela tinha planos – planos de ter planos, vontade de ter vontades – e ele
parecia pacato demais, contente demais em ser apenas aquilo que ele já era
desde que ela o conhecera. E isso, por algum motivo, irritava ela. Matava nela
os dois.
– Ana – e Marcos, apesar de não perceber, pela primeira vez começaria a
falar sem repor no copo o conteúdo sorvido – Eu não sei você, mas eu já passei
por isso tudo que você está falando várias vezes. Esse tédio, essa vontade de
ter tanta raiva da sua carametade que tudo o que você quer é que as coisas
acabem logo. E que por mais que você diga que não quer machucar ninguém, no
fundo não se convence disso. Também já passei por isso.
– Você sente isso com a Débora? Já sentiu vontade de terminar com ela?
– Várias vezes – um grande gole – Muitas vezes mesmo. Mas continuamos
juntos. Firmes e fortes.
– Mas por quê?
– Por três grandes motivos. O primeiro é que já me acomodei. Tenho preguiça.
Ia causar muita coisa. Não quero me meter em briga, em confusão. O segundo é
que eu sei que nós todos temos essa tendência olhar por cima do muro e achar
que a grama do vizinho é mais verde, mais macia, tem menos formiga e cresce
mais devagar do que a nossa. Eu sei que se eu estivesse solteiro eu estaria
muito feliz, mas haveria muita coisa para me deixar triste. Então continuo
feliz com a Débora, mesmo ficando infeliz com muitas outras coisas.
Ele tomou um longo gole.
– Somos todos criaturas infelizes Ana. Todos nós estamos condenados à
infelicidade. Ela é nossa companheira, tanto quanto um pulmão. Se você estivesse
triste porque tem contas pra pagar, problemas na família e um problema no
casamento, dali há um tempo as contas poderiam estar pagas, os problemas da
família resolvidos e o casamento bem que você estaria infeliz por outros
motivos. Porque seu cachorro morreu, porque você descobriu que tem tendência à calvície,
porque o trabalho é uma droga. Seremos sempre tristes. Só o que muda são as coisas
que nos causam tristeza. E essa certeza é um pensamento animador. Se você vai
sempre estar triste, para que se preocupar?
Ele continuou bebendo.
– E o terceiro? – Enfim ela perguntou. Diabo de conversa pesada e
difícil.
– Bom. O terceiro é que eu amo a Débora. Ela me completa. É como
encaixar duas peças cheias de pontas e buracos – e ele tentou mostrar com o
encaixe dos dedos nos espaços entre os dedos da outra mão a sua metáfora
macarrônica – Algumas pontas se encaixam sem problemas, como um quebra-cabeças.
Mas outras já começam a emperrar na tentativa. Outras, forçando muito, se
entortam até se encaixar. Já outras, não tem jeito. Se fosse para ser sem
problemas ela seria uma amiga, não o meu amor. Eu decidi conviver com ela.
Deixar minha intimidade à mercê da tolerância dela. Dividir minha tolerância
com ela. Deixar minha tolerância à mercê da intimidade dela.
Mais goles. Silêncio. Mais goles, mas só dele.
– Eu acho que eu não amo mais o Luís.
– Olha, conheço várias pessoas que passar por isso que você está
passando também. Esse horror à rotina. Essa indisponibilidade para a monotonia
desencantada da repetição.
– Que pessoas?
– Amigos. – um gole, interrompido – Hum, e amigas também, e isso é importante,
porque você é mulher. Somos criados de maneiras diferentes para aprendermos a
esperar coisas diferentes de um relacionamento, e a dar de si mesmo de maneiras
diferentes em um relacionamento. Mas conheço pessoas que passaram por isso que
você está passando.
– E... Como foi?
Ele respondeu durante um gole:
– Todos terminaram. Ficaram solteiros. Alguns ainda estão. Outros já
arranjaram outra pessoa. Ninguém voltou para com quem estava antes.
Ana mergulhou os olhos no resto do conteúdo do seu próprio copo.
– Vocês dois são muito legais – ele disse. Pousou o copo. Agora o jeito
era esperar o gelo derreter para ter mais o que tomar. Naquele calor infernal
seria uma espera curta. – Juntos ou separados. E espero que resolvam isso da
melhor maneira possível.
– O melhor dos mundos possíveis... – disse Ana, deixando ele um tanto embasbacado.
Ela agradeceu com um sorriso e foi embora da cozinha. Foi pensar no
quarto, enquanto se arrumava para ir para o shopping trabalhar. Luís estava
fazendo serão. Débora logo voltaria. Melhor ela não saber que ele tinha bebido
sem a supervisão dela.
– O melhor dos mundos possíveis... – ele disse, olhando ao redor, depois
para o fundo do copo que ele mexeu para ver o gelo moído deslizando,
aparentemente imóvel enquanto ele girava o copo.
Ana e Luís terminaram definitivamente alguns dias depois. Ela foi
embora, voltou para a casa dos pais. Luís ficou por algum tempo, mas sentiu que
estava sobrando ali. Estava morando com um casal de amigos e muitas memórias de
alguns anos idos. Foi dividir uma quitinete com um primo que trabalhava com
ele. Logo arranjou outra com quem podia tirar fotos para colocar na internet e
com quem escolher alianças.
Marcos viu os dois muito pouco depois daquilo. Daquilo: a separação
incontornável. Tudo correra como os sinais pareciam indicar. Depois de um par
de anos ele estava corrigindo uma resenha na sua sala de aula quando o
pensamento voou para aquela manhã de feriado e de conversa esperançosa. Uma pena
que Ana e Luís não tenham continuado juntos. Eles davam esperança a ele. O melhor dos casais possíveis. Comum, mas feliz.
– Vamos lá? – alguém bateu no umbral, falando com voz animada. Era um
dos alunos do quarto ano, chamando o professor Marcos para tomar uma cervejota
no bar mais próximo com os alunos.
– Vão indo! – Marcos gritou, se espichando na cadeira e esfregando a
cara cansada de corrigir e de pensar. Ele terminou a correção pela metade
quando, no meio da folha, encontrou aquela frase lá novamente.
“O autor via Deus como um grande relojoeiro, que a tudo sincronizara de
antemão. Entre os mundos possíveis, Deus escolhe o melhor.”
Ele fechou a pasta, a caneta ficara aberta sobre o texto a ser
corrigido. Acertou o relógio. Era hora de beber um pouco.