Jofric não era
moço de igreja. A luz da janela entrava beneditina pela janela do seu quarto,
mas as cortinas egípcias com votos a Ísis barravam o vento e inflavam-nas como
velas cheias de um barco que não vai.
Pois ali
naquele quarto ele escrevia, e fazia pretas páginas e mais páginas de seus
diários, de seus escritos. Ele perdia-se em linhas retas, seu corpo serpenteava
nas linhas da caligrafia perfeita. Por encomenda escrevera uma ou outra boa
obra catequética. Cansara-se de ocultar nas mensagens suas críticas à igreja e
ao clero local – nunca fora percebido. Ou se fora, fora igualmente ignorado.
Escrevia sobre a fé apenas com a franqueza da encomenda e com a grandeza de seu
talento.
Mas Margarite,
de quem se via noivo desde sempre, só se cria bela sob o véu de ir rezar. Era
por causa dos locais onde ela aceitava ser vista com ele que Jofric não deixara
há muito de aparecer diante das velas debulhadas no altar. Ele não gostava
daquele lacre de madeira que era a igreja da vila – uma confusão de retas e
tábuas, brechas fechadas com cera e madeira lustrosa.
O que fazer,
contudo, quando o destino quer unir um nefelibata que escreve de noite a uma
nefelibata que reza? O jovem decidiu que aquiesceria por tempo indeterminado
com essa mania da moça, tendo ele apenas indiferença e nenhum desprezo pela
igreja e pela fé dela. Tudo o que queria – quando não estava devaneando na
tinta – era vê-la.
Feita esta
introdução cabível a quem não tem em mente, por sorte, aquelas imagens e
pormenores que eu tenho, cabe agora citar que Março trouxera uma quantidade
estranha de vento e de chuva. Raios tropeiros vinham de longe, riscando o céu
com o pó da estrada e alguma luz do outro lado do vale. Os ventos eram
desconhecidos por ali – arredios e rudes, eram como bêbados e mendigos,
verdadeiros indesejáveis, mas quem poderia enxotá-los de lá?
E tão intensas
eram essas tempestades que assolavam a região que as pessoas tinham de ocupar
os ouvidos com outra coisa, caso contrário sucumbiam a uma profunda crise de
medos, pavores inominados, um princípio insuspeito de loucura, um desprazer
tamanho e visceral que as impingia aos mais desvairados e reprováveis dos
comportamentos. Canglores de panelas lavadas, sinos maiores para as vacas que
não eram deixadas em paz, crianças excitadas a seus brinquedos, cuidados
esmerados com os vários porcos, tudo era válido para afastar dos tímpanos as
batidas da chuva e as pancadas do trovão imperioso.
Acontece,
nesse meio pernóstico, que nem tudo na vila era rural e dotado do barulho comum
do campo e da lida pecuária, que bem podem ser aumentados até tornarem-se quase
ensurdecedores. Como se fosse mais nobre, entre as casas longe do feno
amontoado e da horta plantada o que ocupava os ouvidos sensíveis à tormenta era
a música. Que os maestros da lavoura aumentassem o rufar de porcos roncadores e
fizessem a mulher cantar alto o pilão! Ali, naquele recôndito urbano onde havia
alvenaria, as casas tomavam-se de música.
Os mais pobres
reuniam-se aos gordos bêbados que, velhos e ébrios, tocavam suas harmônicas na
rua, sob os beirais das casas fustigadas pela água. Suas sanfonas, quando
dentro das tavernas humildes, evocavam o bater forte das canecas em festa – mas
tudo isso era não por alegria, mas por desespero. Era o gesto do pobre que, ao
invés de sincero, fazia-se apotropaico, afastando uma má sorte e um desvario de
razões que viera com aqueles ventos de longe.
Aqueles que
não podiam com o barulho da chuva – quando esta era tão forte com trovão e
rugido, tanto que nem os instrumentos roídos nem as canecas batendo a todo
momento (até vazias) faziam possível esquecer precariamente o barulho da
tempestade lá fora – estes punham-se a dançar. Nos primeiros dias em que essa
chuva armava-se e arrasava as calmas, essa dança era animada, festejando a labuta
adiada pelo péssimo tempo e o momento de festa. Mas com o passar dos dias, que
tornavam-se mais ventosos e encharcados, essa dança foi virando quase que uma
necessidade impudica, inegável e terrível. Era no bater dos pés, na
concentração dos volteios, no vai e vem dos quadris que muita gente por ali
conseguia realmente furtar-se ao pavor estremecedor que era aquele desfile de
tempestades no céu.
Bom,
sendo assim, pavorosa, essa situação dos humildes, a situação dos pretensos
humildes em suas casas de alvenaria e mobília não era tão diferente na
essência, embora fosse muito mais aprazível à forma – tanto que me é mais
inspiradora a descrição. Se por um lado gosto daquela lascívia inocente da
dança e da festa no lugar pobre, no muquifo ou na choça, por outro lado tenho
de abominar essas coisas que vez ou outra temos em tais locais. O que a torna
melhor é poder aquiescer com a necessidade de mais cerveja para poder continuar
por lá.
Contudo,
reconheço minha criatura como pertencente aos solares tórpidos, em cujas salas
cheias de móveis e utensílios – mas vazias de gente ou calor – o som das
tempestades era muito pior porque ecoava na vastidão de salões ornados e longos
corredores cheios de quadros.
Nessas
casas ricas, contudo, a música também imperava. Menos intensa, porque o cravo
com facilidade some diante do ronco dos céus. Era necessária uma coleção de
finos músicos para acalmar os ânimos, mas eram poucos os tocadores de
instrumento em cada casa, em cada família, de modo que o que podiam fazer era ficarem
bem próximos à lareira e concentrados, em seu silêncio nada modesto, em escutar
aquele pai que tocava oboé, ou a filha mais talentosa que dedilhava as teclas,
ou os meninos que cantavam em coral, ou a aia bonita que sabia músicas de cor.
Mas
Jofric, nesse ínterim...
Ah,
o que dizer dele? Simpatizo com ele. Sei que simpatizava com ele antes mesmo de
surgir em meus pensamentos. Quando o encontrei nas primeiras linhas de minha
escrita, já sabia que era um querido conviva de outras datas. Não o creio bom
amigo, até porque ele estranha-se com esse negócio de amigos e gente, mas é
pessoa interessante. Gostaria de brindar com ele, mais de uma vez.
Surpreende-me um tanto que Margarite goste tanto dele, pois poucas mulheres
daquela vila deveriam conhecê-lo, tão pouco ele se expunha.
Mas
enfim, ele, neste ínterim de barulho sobre barulho, punha-se extasiado em sua
janela do quarto da pensão e abria os braços para a chuva feroz. Ele
regozijava-se com os trovões e alegrava-se com o vento. Não que aqui caiba uma
metáfora de liberdade – ele já era livre pois amava e conseguia muito bem
trancafiar-se sem ninguém – mas ele fazia isso por alegria intensa, senão por
uma gratidão. O que ele amava mais que a escrita, quando não tinha inspiração
nem para listas de compra e em se tratando de ofícios das mãos, era a música.
Ouvia
a mediocridade aprazível da orquestra local sempre que esta se punha na praça,
normalmente antes ou depois da missa – e essa banda, com dois percursionistas,
uma flautista, um clarinetista, dois sopradores de metais e um velho maestro
não era menos querida por todos os outros que a escutavam dedicados.
Por
isso e mais, ao saber que a vila estava tomada por uma necessidade por música,
simpatizava com todos. Também ele tinha na música um asilo habitual. Nela
abrigava-se da falta de inspiração e da inquietude que a lonjura carola de
Margarite impunha. Ao saber que todos abrigavam-se da chuva na música melhor do
que sob os telhados, respeitava-os na admiração calada e imparcial, ainda que
distante, de quem se identifica com muitos que antes eram ignorados sem
problema.
Mas
a tempestade que ia e vinha todo santo dia também veio a incomodar Jofric,
tirando-o de seu estado de espírito em regozijo. Por duas vezes ele conheceu o
ânimo da tempestade, e narrarei porque ele teria razões de reconciliar-se de
vez com o altar ou então afastar-se dele para sempre.
...narrarei na parte dois...