segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Soneto "Silêncio", de Edgar Allan Poe

Silêncio

Há qualidades tais, de natureza incorporada,
Que vivem duplamente e de modo tal
Que dão gênese a uma entidade geminada
De luz e de matéria, sólido e umbral.

Há silêncio bilateral – o mar e o litoral,
O corpo e a alma. Um de quieta morada,
Relvada, intocada, de solenidade divinal,
Humana memória e lacrimosa lembrada.

Este não assusta: seu nome é Oblívio.
É o silêncio encarnado: não apavora.
Não tem em si poder qualquer do mal.

Mas se uma sina fatal (em má hora!)
Trazer-te  à sua sombra (elfo fantasmal
Que no ermo intocado sozinho se demora),
Entrega em rezas a Deus a tua alma.

(Traduzido de Edgar A. Poe)

domingo, 10 de dezembro de 2017

Tradução de "I felt a Funeral, in my Brain", de Emily Dickinson

Deu-se, em meu Cérebro, um Funeral;
E Carpideiras iam e viam
Com passo peculiar até parecer
Que a Consciência era invasão -
E quando todos se sentaram,
Uma Pregação, tal como um Tambor -
Pôs-se a rufar e rufar - até eu sentir
que minha mente era inação -
Então ouvi erguerem uma Caixa
E rangerem cruzando-me a Alma
Com aquelas Botas de Chumbo, de novo,
Então o Espaço - pôs-se a dobrar,
Como se o Céu inteiro fosse um só Sino,
E o Ser inteiro um mero ouvido,
E eu, e o Silêncio, uma Raça estranha,
Náufragos, solitários, aqui -
E então uma Tábua na Razão partiu-se,
E caí, caí cada vez mais -
Eu atingia um Mundo a cada queda,
E acabei por Saber - então -

Ofélia - Constantin Meunier (1831-1905)

I felt a Funeral, in my Brain,
And Mourners to and fro
Kept treading - treading - till it seemed
That Sense was breaking through -

And when they all were seated,
A Service, like a Drum -
Kept beating - beating - till I thought
My mind was going numb -

And then I heard them lift a Box
And creak across my Soul
With those same Boots of Lead, again,
Then Space - began to toll,

As all the Heavens were a Bell,
And Being, but an Ear,
And I, and Silence, some strange Race,
Wrecked, solitary, here -

And then a Plank in Reason, broke,
And I dropped down, and down -
And hit a World, at every plunge,
And Finished knowing - then -

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

::: Tradução de "I had been hungry, all the Years", de Emily Dickinson

"I had been hungry, all the Years
My Noon had Come—to dine
I trembling drew the Table near
And touched the Curious Wine


'Twas this on Tables I had seen
When turning, hungry, Home
I looked in Windows, for the Wealth
I could not hope—for Mine


I did not know the ample Bread
'Twas so unlike the Crumb
The Birds and I, had often shared
In Nature's—Dining Room


The Plenty hurt me—'twas so new
Myself felt ill—and odd
As Berry—of a Mountain Bush
Transplanted—to a Road


Nor was I hungry—so I found
That Hunger—was a way
Of Persons outside Windows
The Entering—takes away"
~Emily Dickinson


Estive com fome por tantos Anos

Até minha janta poder cear
Tremendo cheguei à Mesa
E provei o Estranho Vinho

Foi nas Mesas que eu vi
Quando só, com fome, na rua
Eu espiava em Janelas as Riquezas
Que não esperava serem Minhas

Não conhecia o Pão inteiro
Tão diferente da Migalha
Que as aves e Eu dividimos tanto
À mesa do relento

A Fartura magoava - era tão nova
Senti-me mal - era estranho
Como Planta de alta Montanha
Transplantada para a Estrada

Nem estava com fome - Percebi
Que a Fome - era um trejeito
De Pessoas de Janela a fora
De quem a Entrada - o leva embora

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Uma bebida e um diálogo no melhor dos mundos possíveis

Eram quatro dividindo aquele apartamento. Dois quartos, dois casais. Luís era torneiro mecânico. Um homem muito simples, muito bom. Daquelas pessoas cuja humildade é tanta que se esconde de relatos quaisquer, e em uma página caberia tudo da sua vida – pois hoje em dia é comum repetirem o escritor voador que disse que o essencial é invisível aos olhos.

Já Ana era vendedora em um loja dessas de shopping, daquelas em que o olho esquerdo de quem espera dentro da loja vazia implora que você entre para comprar algo que garanta um natal melhor para o vendedor; enquanto o olho direito suplica sem brilho que você não pise ali dentro.

Ana e Luís haviam se “ajuntado” um pouco depois que Débora e Marcos. Débora trabalhava em uma livraria do centro da cidade, mas mesmo assim tinha tempo para viver. Gostava tanto de sapos e rãs que era uma voluntária sem crachá no zoológico da cidade. Ela suspeitava fortemente que entendia mais de anuros do que o veterinário cansado e já sem peles para trocar que trabalhava no zoológico entre um turno e uma bebedeira.

Por falar em bebidas, Marcos era professor universitário em começo de carreira. Ele ensinava literatura para uma massa pequena de gente que já havia desenvolvido um bloqueio mental para textos com mais de 200 caracteres. Ele gostava mesmo era de Débora, mas o whisky era um forte competidor pelos chamegos dele (levando em consideração que ele deixara o ensino básico e fizera o mestrado para poder comprar presentes melhores para Débora e whiskies menos baratos para ele).

Decidiram alugar o apartamento juntos por um misto de comodidade masoquista (já que eram para ser dois quartos para duas pessoas, não quatro) e camaradagem. Ana e Débora eram velhas conhecidas, ao passo que Luís e Marcos, conhecidos a bem menos tempo, compartilhavam uma amizade bem mais forte.

Amizade forte porque quase não conversavam, e não precisavam conversar com frequência para saberem que se entendiam bem e que quase não discordavam em nada. Ana pensava consigo, sobretudo quando via os dois bebendo em silêncio e assistindo algum jogo na televisão, que o casamento daqueles dois caras era bem mais tranquilo que o dela com Luís, ou que o que Débora tinha com Marcos.

Mudando de assunto, de casamento para falar de sexo, havia algumas regras sobre isso e de divisões de tarefas para os habitantes do apartamento 301 do bloco B. Nada de barulheira depois da meia-noite se algum dos viventes tivesse que levantar cedo no dia seguinte. Nada de trazer gente de fora para experiências bizarras. Nada de velas que arriscassem tacar fogo no ambiente (todos os extintores do prédio estavam vencidos há tempos). Quando, inevitavelmente, um casal estava transando mais loucamente, o outro casal limitava-se a rir em silêncio, abraçar-se de conchinha e, às vezes, aproveitar para fazer o próprio nheco-nheco com aquela espécie de podcast pornográfico de fundo.
E assim viviam em uma sintonia que os corpos atingem quando dividem a mesma pouca vontade de lavar pilhas de louça suja, quando mulheres compartilham a gaveta de coisas para os cílios e quando homens que não cresceram juntos andavam só de bermuda um na frente do outro. Tudo igual e sempre diferente até o dia em que Ana não amava mais Luís e este passou a dormir na sala.



Em uma bela manhã de feriado nublado de domingo, Marcos foi até a cozinha-sala para preparar uma dose dupla e individual de o que quer que tivesse alto teor alcoólico. Havia coisas dentro dele que ele precisava usar o álcool para matar. Débora tinha que bater ponto no zoológico – novas espécies de rãs da Mata Atlântica, daquelas que vivem entrando em extinção, haviam sido resgatadas do tráfico ilegal e levadas para lá.

Na cozinha ele encontrou Ana sentada à mesa redonda de fórmica branca corroída. Ela olhava com uma mistura muito grande de emoções a panela com resquícios frios de um miojo emergencial de ontem e um garfo esquecido por ali. A mistura de emoções era grande demais para saber o que tinha de sentimento ali, assim como é difícil saber dizer que cores deram naquela água escura que as crianças deixam no copo quando lavam os pincéis ao longo da aula.

Ele não podia julgá-la, disso ele sabia. Ele mesmo tinha um mélange considerável de pesos na cuca – duas noites anteriores, todos os donos de cadeiras do departamento de Letras haviam enviado para o anuário os artigos que eles avaliaram como os melhores – e todos eram de suas próprias autorias.

Talvez uma dose dupla fosse pouco, mas era um começo. Ao ver Ana padecendo daquele silêncio estranho – silêncio feminino como aquele nunca é boa coisa – as prioridades mudaram.
   – Bom dia. – o silêncio dela estava prolongado. Não por indisposição e maldade, ela provavelmente nem percebera ele abrindo a geladeira. Ela ergueu os olhos, parecia um bêbado desconsolado sem forças para pensar sobre aquele copo vazio em cima do balcão.

   Débora não falaria daquilo com Ana. Daquilo: a situação de Ana e Luís. Daquilo: um desquite triste e bizarro. Débora era serena demais, tanto que nada parecia menos transitório a ponto de abalar sua serenidade. Anuros indefesos sim mexiam com os nervos dela, mas gente crescida não. Já Luís estava em um estado de miserabilidade corrosiva e não queria falar com ninguém. Marcos respeitava isso, sobretudo porque era mais cômodo para o momento de ânimos exaltados.

   – Você aceita? – Disse ele, mostrando as garrafas – É bem forte. Acho que você não precisa dizer que não aceita por precisa. – ela continuou com cara de poucas vendas no final do ano.

   Mais uma vez sobrava para ele servir de diálogo naquele muquifo amado pelos quatro. Eles haviam feito daquele teto bolorento um lar, e um lar não podia ser desfeito em silêncio. Débora era uma budista que não sabida de Buda. Ana estava acostumada a escutar as pessoas sem realmente se importar com o que elas queriam dizer. Luís trabalhava com máquinas e com mais gente que trabalhava com mais máquinas. Eles três cozinhavam muito bem, e sabiam fazer um alqueire de coisas melhor do que ele, mas em termos de conversar e ouvir eles tinham ainda muito o que aprender. Talvez seja essa a maldição dos professores – ser bom somente e tão somente naquilo que ensina os outros.

   Invocando o Bentinho e Capitu que todos temos dentro de nós, com aquele um por cento de Escobar ou Iago à espreita, Marcos encheu dois copos com a bebida batida com leite condensado e gelo no liquidificador.
   – Ó, molha o bico – e jogou o copo para Ana, que o apanhou sem entusiasmo.

   Ela assim o fez, mas sem tirar os olhos do tampo da mesa. Ela tinha olhos verdes, e Débora, por algum motivo cabalístico, dizia que aquilo era ótimo para disfarçar choros recentes.
   – Ana, você provavelmente não quer falar sobre aquilo, mas se quiser, saiba que sou todo ouvidos. E saiba também que eu acho que você deveria sim falar sobre aquilo. Não querer falar sobre aquilo, na verdade, deve ser um sinal de que você precisa falar sobre aquilo. Vocês dois criaram isso, o que vão fazer para resolverem isso?

   Ana fechou um pouco a cara desconsolada. Ela não era muito sensível na lida com os outros, até um pouco geniosa demais para o gosto de Débora, que a tudo perdoava, e de Marcos, que a tudo relevava.
   – Obrigada pela bebida. – e ela se levantou rápido, indo em direção aos quartos.

   – Ana, você pode fugir de uma conversa quantas vezes quiser, mas não pode fugir de um problema. Eu vou ficar aqui na cozinha por um tempo. Seus problemas vão ficar com você e vão com você aonde você for.

   A-há. Ela parou no umbral mais próximo. Tomou um ou dois goles e virou para a mesa. Encostou-se na parede. Ela nunca se encostava na parede.
   Marcos continuou concentrado no próprio copo. Ele tinha que parecer menos imaturo que os demais se era para aquele diálogo ter alguma chance de começar. Deu certo de novo, pois ela foi até a mesa.
   Sentou-se muito vagarosamente, como a paciente que enfim resolve vencer a vergonha e o medo e vir falar de problemas íntimos para o médico para o qual ela sabe que não pode mentir.
   – Como começo a falar?

   – Ah, sei lá. Faz um resumo aí da desgraceira toda. – um gole.

   – Mas como? Como começo?

   – Começa falando porque você não ama mais ele, ou desde quando, ou porque você acha que não ama mais ele. – um gole grande.

   – Bem... Acho que vou tentar.

  – Ah – um gole grande interrompido – E eu não julgo, então pode falar que eu escuto.

   Um pouco mais tarde, algum álcool depois, ela começou a falar. A mistura soltava mesmo a língua.
   – Às vezes, quando eu tento lembrar, parece que eu não gosto mais do Luís faz tempo. Que só agora chegou num nível que não dá mais. Às vezes parece que um dia eu acordei, olhei para o lado e não gostava mais dele.

   Enquanto Marcos bebia ela ia falando. Falou de como ela gostava tanto dele no início (e por falar em início ela demonstrou já ter uma ideia de fim) e como ele encantava ela... Mas como que isso foi morrendo, esvaecendo, virando pó, a ponto dela não ver mais aquele homem trabalhador de sorriso lindo que ela disse ter conhecido num bailão de sociedade uma vez, mas apenas um torneio mecânico que chegava suado do trabalhado querendo abraçá-la mais do que ela queria. Ela tinha planos – planos de ter planos, vontade de ter vontades – e ele parecia pacato demais, contente demais em ser apenas aquilo que ele já era desde que ela o conhecera. E isso, por algum motivo, irritava ela. Matava nela os dois.
   – Ana – e Marcos, apesar de não perceber, pela primeira vez começaria a falar sem repor no copo o conteúdo sorvido – Eu não sei você, mas eu já passei por isso tudo que você está falando várias vezes. Esse tédio, essa vontade de ter tanta raiva da sua carametade que tudo o que você quer é que as coisas acabem logo. E que por mais que você diga que não quer machucar ninguém, no fundo não se convence disso. Também já passei por isso.

   – Você sente isso com a Débora? Já sentiu vontade de terminar com ela?

   – Várias vezes – um grande gole – Muitas vezes mesmo. Mas continuamos juntos. Firmes e fortes.

   – Mas por quê?

   – Por três grandes motivos. O primeiro é que já me acomodei. Tenho preguiça. Ia causar muita coisa. Não quero me meter em briga, em confusão. O segundo é que eu sei que nós todos temos essa tendência olhar por cima do muro e achar que a grama do vizinho é mais verde, mais macia, tem menos formiga e cresce mais devagar do que a nossa. Eu sei que se eu estivesse solteiro eu estaria muito feliz, mas haveria muita coisa para me deixar triste. Então continuo feliz com a Débora, mesmo ficando infeliz com muitas outras coisas.

   Ele tomou um longo gole.
   – Somos todos criaturas infelizes Ana. Todos nós estamos condenados à infelicidade. Ela é nossa companheira, tanto quanto um pulmão. Se você estivesse triste porque tem contas pra pagar, problemas na família e um problema no casamento, dali há um tempo as contas poderiam estar pagas, os problemas da família resolvidos e o casamento bem que você estaria infeliz por outros motivos. Porque seu cachorro morreu, porque você descobriu que tem tendência à calvície, porque o trabalho é uma droga. Seremos sempre tristes. Só o que muda são as coisas que nos causam tristeza. E essa certeza é um pensamento animador. Se você vai sempre estar triste, para que se preocupar?

   Ele continuou bebendo.
   – E o terceiro? – Enfim ela perguntou. Diabo de conversa pesada e difícil.

   – Bom. O terceiro é que eu amo a Débora. Ela me completa. É como encaixar duas peças cheias de pontas e buracos – e ele tentou mostrar com o encaixe dos dedos nos espaços entre os dedos da outra mão a sua metáfora macarrônica – Algumas pontas se encaixam sem problemas, como um quebra-cabeças. Mas outras já começam a emperrar na tentativa. Outras, forçando muito, se entortam até se encaixar. Já outras, não tem jeito. Se fosse para ser sem problemas ela seria uma amiga, não o meu amor. Eu decidi conviver com ela. Deixar minha intimidade à mercê da tolerância dela. Dividir minha tolerância com ela. Deixar minha tolerância à mercê da intimidade dela.

   Mais goles. Silêncio. Mais goles, mas só dele.
   – Eu acho que eu não amo mais o Luís.

   – Olha, conheço várias pessoas que passar por isso que você está passando também. Esse horror à rotina. Essa indisponibilidade para a monotonia desencantada da repetição.

   – Que pessoas?

  – Amigos. – um gole, interrompido – Hum, e amigas também, e isso é importante, porque você é mulher. Somos criados de maneiras diferentes para aprendermos a esperar coisas diferentes de um relacionamento, e a dar de si mesmo de maneiras diferentes em um relacionamento. Mas conheço pessoas que passaram por isso que você está passando.

   – E... Como foi?

   Ele respondeu durante um gole:
   – Todos terminaram. Ficaram solteiros. Alguns ainda estão. Outros já arranjaram outra pessoa. Ninguém voltou para com quem estava antes.

   Ana mergulhou os olhos no resto do conteúdo do seu próprio copo.

   – Vocês dois são muito legais – ele disse. Pousou o copo. Agora o jeito era esperar o gelo derreter para ter mais o que tomar. Naquele calor infernal seria uma espera curta. – Juntos ou separados. E espero que resolvam isso da melhor maneira possível.

   – O melhor dos mundos possíveis... – disse Ana, deixando ele um tanto embasbacado.

   Ela agradeceu com um sorriso e foi embora da cozinha. Foi pensar no quarto, enquanto se arrumava para ir para o shopping trabalhar. Luís estava fazendo serão. Débora logo voltaria. Melhor ela não saber que ele tinha bebido sem a supervisão dela.
   – O melhor dos mundos possíveis... – ele disse, olhando ao redor, depois para o fundo do copo que ele mexeu para ver o gelo moído deslizando, aparentemente imóvel enquanto ele girava o copo.

   Ana e Luís terminaram definitivamente alguns dias depois. Ela foi embora, voltou para a casa dos pais. Luís ficou por algum tempo, mas sentiu que estava sobrando ali. Estava morando com um casal de amigos e muitas memórias de alguns anos idos. Foi dividir uma quitinete com um primo que trabalhava com ele. Logo arranjou outra com quem podia tirar fotos para colocar na internet e com quem escolher alianças.
   Marcos viu os dois muito pouco depois daquilo. Daquilo: a separação incontornável. Tudo correra como os sinais pareciam indicar. Depois de um par de anos ele estava corrigindo uma resenha na sua sala de aula quando o pensamento voou para aquela manhã de feriado e de conversa esperançosa. Uma pena que Ana e Luís não tenham continuado juntos. Eles davam esperança a ele. O melhor dos casais possíveis. Comum, mas feliz.
   – Vamos lá? – alguém bateu no umbral, falando com voz animada. Era um dos alunos do quarto ano, chamando o professor Marcos para tomar uma cervejota no bar mais próximo com os alunos.

   – Vão indo! – Marcos gritou, se espichando na cadeira e esfregando a cara cansada de corrigir e de pensar. Ele terminou a correção pela metade quando, no meio da folha, encontrou aquela frase lá novamente.

   “O autor via Deus como um grande relojoeiro, que a tudo sincronizara de antemão. Entre os mundos possíveis, Deus escolhe o melhor.”


   Ele fechou a pasta, a caneta ficara aberta sobre o texto a ser corrigido. Acertou o relógio. Era hora de beber um pouco.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

"Mal de Amor", de Anna Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça

Toda pena de amor, por mais que doa,
no próprio amor encontra recompensa.
As lágrimas que causa a indiferença,
seca-as depressa uma palavra boa.

A mão que fere, o ferro que agrilhoa,
obstáculos não são que amor não vença.
Amor transforma em luz a treva densa.
Por um sorriso amor tudo perdoa.

Ai de quem muito amar não sendo amado,
e depois de sofrer tanta amargura,
pela mão que o feriu não for curado.

Noutra parte há de em vão buscar ventura.
Fica-lhe o coração despedaçado,
que o mal de amor só nesse amor tem cura.


(1896)

terça-feira, 26 de abril de 2016

"Fica, minha choça, onde habita gente", de Tao Yuanming

Fica, minha choça, onde habita gente, Mas perto de mim não fazem barulho cavalo e carroça. Saberias como isso é possível? Um coração distante cria ermo para se cercar. Pego crisântemos sob a sebe a leste, Então olho ao longo para as colinas veranis ao longe. O ar da montanha é fresco quando o dia anoitece: Voltam, dois a dois, os pássaros voando. Nessas coisas reside um sentido profundo; Mas quando o expressássemos, as palavras falhar-nos-iam. ~Tao Yuanming (365–427) "My hut in a zone of human habitation, Yet near me there sounds no noise of horse or coach. Would you know how that is possible? A heart that is distant creates a wilderness round it. I pluck chrysanthemums under the eastern hedge, Then gaze long at the distant summer hills. The mountain air is fresh at the dusk of day: The flying birds two by two return. In these things there lies a deep meaning; Yet when we would express it, words suddenly fail us." (Traduzido por Arthur Waley, 1919)



segunda-feira, 28 de setembro de 2015

"Balada de Neve", de Augusto Gil

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho…

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria…
Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho…

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança…

E descalcinhos, doridos…
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!…

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!…
Porque padecem assim?!…

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
e cai no meu coração.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

"The Cloud", de Percy Byshhe Shelley

I bring fresh showers for the thirsting flowers,
         From the seas and the streams;
I bear light shade for the leaves when laid
         In their noonday dreams.
From my wings are shaken the dews that waken
         The sweet buds every one,
When rocked to rest on their mother's breast,
         As she dances about the sun.
I wield the flail of the lashing hail,
         And whiten the green plains under,
And then again I dissolve it in rain,
         And laugh as I pass in thunder.

   I sift the snow on the mountains below,
         And their great pines groan aghast;
And all the night 'tis my pillow white,
         While I sleep in the arms of the blast.
Sublime on the towers of my skiey bowers,
         Lightning my pilot sits;
In a cavern under is fettered the thunder,
         It struggles and howls at fits;
Over earth and ocean, with gentle motion,
         This pilot is guiding me,
Lured by the love of the genii that move
         In the depths of the purple sea;
Over the rills, and the crags, and the hills,
         Over the lakes and the plains,
Wherever he dream, under mountain or stream,
         The Spirit he loves remains;
And I all the while bask in Heaven's blue smile,
         Whilst he is dissolving in rains.

   The sanguine Sunrise, with his meteor eyes,
         And his burning plumes outspread,
Leaps on the back of my sailing rack,
         When the morning star shines dead;
As on the jag of a mountain crag,
         Which an earthquake rocks and swings,
An eagle alit one moment may sit
         In the light of its golden wings.
And when Sunset may breathe, from the lit sea beneath,
         Its ardours of rest and of love,
And the crimson pall of eve may fall
         From the depth of Heaven above,
With wings folded I rest, on mine aëry nest,
         As still as a brooding dove.

   That orbèd maiden with white fire laden,
         Whom mortals call the Moon,
Glides glimmering o'er my fleece-like floor,
         By the midnight breezes strewn;
And wherever the beat of her unseen feet,
         Which only the angels hear,
May have broken the woof of my tent's thin roof,
         The stars peep behind her and peer;
And I laugh to see them whirl and flee,
         Like a swarm of golden bees,
When I widen the rent in my wind-built tent,
         Till calm the rivers, lakes, and seas,
Like strips of the sky fallen through me on high,
         Are each paved with the moon and these.

   I bind the Sun's throne with a burning zone,
         And the Moon's with a girdle of pearl;
The volcanoes are dim, and the stars reel and swim,
         When the whirlwinds my banner unfurl.
From cape to cape, with a bridge-like shape,
         Over a torrent sea,
Sunbeam-proof, I hang like a roof,
         The mountains its columns be.
The triumphal arch through which I march
         With hurricane, fire, and snow,
When the Powers of the air are chained to my chair,
         Is the million-coloured bow;
The sphere-fire above its soft colours wove,
         While the moist Earth was laughing below.

   I am the daughter of Earth and Water,
         And the nursling of the Sky;
I pass through the pores of the ocean and shores;
         I change, but I cannot die.
For after the rain when with never a stain
         The pavilion of Heaven is bare,
And the winds and sunbeams with their convex gleams
         Build up the blue dome of air,
I silently laugh at my own cenotaph,
         And out of the caverns of rain,
Like a child from the womb, like a ghost from the tomb,
         I arise and unbuild it again.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Da Soror Mystica, de Dora Ferreira da Silva

Donzela sem espelho atenta ao seu tear,bordando pelo avesso dragão de irado olhar. A pétala e o donzel de leve suspirar,falcão preso á corrente , pavão a cintilar. Bordando pelo avesso o escuro parecer . o mal torna-se bem , a terra em florescer. A cor e seu contorno se encontram de repente e o olhar que nada vê só vê o que presente. Se fosse o mundo só a fria geometria, tão certa não seria a exata fantasia.Não fosse o desamor a mágoa que persiste, do amor não nasceria a bela face triste.Donzela que tão só teces o adivinhar, recria pelo avesso o pranto e o esperar.Partiu o cavaleiro em guerras a guerrear,tua mão traçando a prata recrie o seu voltar.